Prédica: 1 Coríntios 1.1-9
Leituras: Isaías 49.1-6 e João 1.29-34 (35-41)
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: 2º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 14/01/1996
Proclamar Libertação – Volume: XXI
O princípio social básico da ética objetivista é que, assim como a vida é um fim em si mesma, assim também todo ser humano vivo é um fim em si mesmo, e não o meio para os fins ou o bem-estar dos outros (…) Só é correio um indivíduo ajudar outro em uma emergência metafísica (…) Doença e pobreza não são emergências metafísicas (…). (Ayn Rand, fundadora do objetivismo e inspiradora do pensamento neoliberal, in: A Virtude do Egoísmo.)
Dos campos, das cidades, das frentes dos palácios,
os sem terra, este povo de beira de quase tudo,
retiram suas lições de semente e história.
Assim, espremidos nessa espécie de geografia perdida
que sobra entre as estradas,
que é por onde passam os que têm pra onde ir,
e as cercas,
que é onde estão os que têm onde estar,
os sem terra fazem o que sabem fazer: plantam.
E plantam porque sabem que terão
apenas o almoço que puderem colher,
e sabem que terão
apenas o país que puderem conquistar.
(Paulo Rufino, cineasta, in: O Canto da Terra — Um Filme de Beira de
Estrada, 1991.)
1. Primeira Leitura
Abri l Coríntios com a intenção de registrar apenas as primeiras impressões da leitura dos nove versículos iniciais. Mas não foi possível embarcar no trem sem levar bagagem, sem me lembrar de parte do que já sabia da carta, do autor, de Corinto, das controvérsias e afirmações marcantes nos trechos seguintes: comunidade de pobres, dividida, cruz, ética sexual, comunhão com hipocrisia, corpo de Cristo, ágape, ressurreição. Tampouco foi fácil resistir ao desejo de atualizar logo, de indagar pela relação com desafios de hoje. Os pensamentos iam e vinham soltos: Corinto — pastoral urbana hoje, numa realidade complexa e de mudanças rápidas; cidade portuária — migração, pessoas desenraizadas; comércio ativo — neoliberalismo, idolatria do mercado; religiosidade, glossolalia — pentecostalismo, empresas de cura divina; cultos de fertilidade — opressão da mulher; miseráveis, trabalhadores pobres e artesãos, e ricos beneficiários do Império — luta pela cidadania, contra a fome e miséria; comunidade viva, mas cheia de conflitos — que eclesiologia!?
Assim, senti que a leitura podia ser primeira somente em termos, visando a elaboração de um subsídio de pregação. Pois a carta tinha deixado marcas fortes na vida pessoal e no fazer teológico. Não obstante, num esforço de abstração que me parecia artificial, concentrei novamente a atenção no texto, à espreita de alguma novidade que os versículos pudessem revelar. O olhar parou no irmão Sóstenes (v. 1). Quem era? Por que este co-remetente ou co-autor? Nossa tradição se esqueceu dele à sombra do grande apóstolo?
Depois fixei-me nas formas dos verbos, imaginando que estrutura de ação elas significavam: Paulo, chamado para… (v. 1); santificados, chamados para… (v. 2); dou graças pela graça que vos foi dada (v. 4); fostes enriquecidos (v. 5); … confirmado em vós (v. 6); Jesus vos confirmará (v. 8); fiel é Deus…, fostes chamados à… (v. 9). Há algo em comum? Sim, predomina a forma passiva. Isso parece importante. O peso está no agir de Deus, que chama, dá e confirma. Além disso, o ser chamado faz uma moldura. No início define o para que do autor (ao apostolado) e da comunidade (à santidade), e, no final, novamente dos destinatários (à comunhão). No meio fica aquilo que foi dado e confirmado: graça, palavra, conhecimento, testemunho, culminando nos que serão confirmados, os próprios coríntios. Notei que neste trecho central acontece uma transição nas formas verbais: do passado-presente (vv. 3-7) para o futuro (v. 8). Enquanto isso a moldura (vv. 1-3,9) enfatiza a ação passada, que, no entanto, aponta para uma finalidade clara e concreta. Resulta daí uma dinâmica tensa, muito intrigante. A impressão é que o texto está sendo extremamente afirmativo. Pensando num contexto de desesperanças e ambiguidades (tanto em Corinto como hoje), fiquei com vontade de intitular preliminarmente a prédica de: Afirmando certezas. Refletindo mais, penso que afirmar certezas (de ação extra nos) é diferente de afirmar verdades (de conceitos, bem ou mal interiorizados por nós). Ocorreu-me que tal enfoque permite uma boa associação com a época da Epifania, que privilegia a revelação de Cristo no mundo.
2. Aprofundando Curiosidades
Como segundo passo fiz incursões, não muito exaustivas, na literatura especializada e no texto grego. Algumas curiosidades foram satisfeitas, novas indagações surgiram. E aos poucos amadureceu uma posição discordante da tradição de interpretação (europeia?) que caracteriza o trecho como uma captação da benevolência dos destinatários. Enaltecer as riquezas e virtudes espirituais da comunidade possibilitaria a aceitação das duras críticas e exortações que vêm em seguida (Stollberg, p. 54). O elogio estaria preparando o terreno para a repreensão, o mel adoçando o chicote (cf. 4.21). Tal leitura parece-me uma tentativa de desculpar ou justificar o tom manso e positivo em nosso trecho, que em seguida passaria a ser veemente e acusador (p. ex., v. 13; 3.2; 4.6). No fundo, gera a sensação de que neste trecho Paulo e Sóstenes não estão sendo honestos e que suas verdadeiras intenções aparecem nos trechos críticos posteriores. A meu ver, ignora-se desse modo que, assim como nesta saudação e introdução, também nos trechos seguintes os autores são teologicamente afirmativos e propositivos: a loucura da cruz (v. 18); a força da fraqueza de Deus (v. 25), que escolhe os fracos e humildes pequenos (v. 27); vós sois edifício de Deus (3.9); etc.
Na verdade, a forma verbal passiva detectada acima direciona a gratidão e o elogio para Deus, e não para os fiéis de Corinto, provavelmente cheios demais de si próprios. Paulo e Sóstenes estão ajustando o foco para uma nitidez tal que permite desde já detectar distorções na fé da comunidade. Estes versículos iniciais realizam no atacado (e talvez indiretamente) o que o restante da carta mostrará diretamente no varejo. Toda a carta é um apelo só: Vivam a nova consciência, desfrutem livremente desta comunhão de bens, não descansem enquanto na comunidade (e fora dela!) houver gente à margem, como excluídos, ou no centro, como dominadores (Porath, p. 53). Por causa dessa unidade e coerência da carta, a prédica deveria evitar o esquema: agora positivo e depois negativo, ou primeiro elogiar para depois criticar. Ela deve ter a coragem de apontar para questionamentos e correções necessárias a partir da própria afirmação do agir de Deus nestes primeiros versículos.
Neste contexto é interessante mencionar que, verificando o texto grego e perguntando se caberia, então, aos fiéis somente uma atitude passiva e acomodada diante do agir gracioso de Deus, notei um verbo na forma medial-ativa que passou despercebido na primeira leitura. É o tendo vós esperança (v. 7)! Ou seja, o princípio ativo da comunidade resume-se em esperar pela revelação do próprio Cristo, ou, conforme Gl 5.5, em aguardar, a partir da fé, a esperança da justiça. Além disso, outra forma verbal no presente é o agradeço sempre a Deus por vós (v. 4). Ou seja, a gratidão também é um princípio ativo, não exclusivamente do apóstolo, pois pelo chamado(s) (vv. l e 2) ele se colocou lado a lado com a comunidade. Em tudo o mais, os créditos são de Deus, que fortalece/confirma o testemunho de Cristo na comunidade e que fortalecerá/ confirmará a comunidade para o esperado dia de Cristo. Nisto, e não como quebra-galho em qualquer situação, Deus é fiel. É ele o protagonista do enriquecimento espiritual, em palavra e conhecimento, e da missão da comunidade (a martyría refere-se ao testemunho da comunidade toda, não apenas à pregação de um ou mais líderes: missão dos leigos!).
O trecho central, portanto, propõe diversos temas para a pregação. Nem todos poderão ser esgotados. Mas o importante é articular cada afirmação (da graça, da dádiva, da riqueza na palavra, no conhecimento, da esperança, etc.) como um convite para a revisão desse aspecto na vida da comunidade. Sugiro que a prédica exercite isso exemplarmente em um dos temas, de acordo com o momento da respectiva comunidade, e não na lista toda.
Voltando do trecho central para a moldura (é difícil dizer qual é teologicamente mais marcante), destaco de início que é incomum para a época citar co-remetentes (e geralmente cartas eram endereçadas ao líder, não ao povo). Ao fazê-lo, Paulo quer expressar que não está enviando uma correspondência particular. Ele formula a carta em consenso com outros, não como lutador solitário (cf. Schrage, p. 98 e 101). Isso é significativo para o sentido da autoridade do escrito. Pouco se sabe da identidade de Sóstenes (cf. At 18.17), mas, por ser chamado de irmão, pode-se supor que ele seja oriundo de Corinto ou pelo menos conhecido daquela comunidade. Ainda que em meio aos conflitos Paulo tenha que afirmar sua autoridade como apóstolo de Jesus Cristo, e não 'como emissário de si próprio ou de uma comunidade humana, penso que é preciso ver a menção de um co-autor na mesma linha da humildade que aparece em relação a Apoio e outros obreiros em Corinto (l Co 3.6s.). A autoridade pastoral não está ligada a personalismos, mas à construção de consensos em torno da causa maior, de cujo avanço cuida o próprio Senhor. Que consequências isso traz para a prática ministerial (pastorcentrismo) e para a política eclesiástica!
Mais significativa e desafiadora considero a observação do ser chamado, ser vocacionado para. Já mencionei o paralelismo dos vv. l e 2, que coloca Paulo e a comunidade sobre uma base de igualdade. Mas essa raiz grega de kletos/kletois tem a ver diretamente com ekklesia, Igreja (v. 2). O termo é tomado do mundo político da época, quando o mais natural, segundo Schrage (p. 102), seria o uso do termo religioso judaico sinagoga. A Igreja de Deus que se encontra em Corinto quer expressar que uma comunidade local, ou um grupo reunido, não é um clube religioso particular, mas representa, no concreto, a Igreja em sua totalidade (cf. 16.19) e que é inaceitável surgirem partidos de fulano e de beltrano (v. 12). Ademais, essa formulação (genitivo de autoria) indica novamente Deus como fonte criadora do ser Igreja. Como Deus faz isso? Ele cria Igreja santificando pessoas através de Cristo (no Batismo; cf. 6.11), as quais conservam sua santidade em Cristo, não em si próprias (cf. 3.16s.; 6.19). A percepção dessa rica dimensão eclesial e comunitária hoje é obscurecida, ou percebida de forma conflitiva e negativa, por causa do peso do eclesiástico e do institucional. Mais c mais pessoas se escandalizam com os descaminhos, o jogo de poda e os procedimentos pouco cristãos da estrutura, que, no entanto, é minimamente necessária. A prédica terá que trabalhar essa distinção entre o eclesial e o eclesiástico.
A vocação à santidade é conjunta com todos os que em todo lugar invocam o nome do Senhor (Schrage, p. 104). Com isso dá-se uma ampliação ecumênica que descreve a comunhão (koinonia) do v. 9 e que novamente questiona individualismos ou excludências entusiastas. Afinal, há muitos outros, diferentes, que invocam o mesmo Senhor, presente não apenas no culto, mas no cotidiano. Esse aspecto ecumênico no v. 2, de inculturação do evangelho nas culturas oprimidas de nosso continente, é um grande atrativo para uma prédica atual, na época de Epifania. Por outro lado, nos dias em que escrevo, celebra-se o cinquentenário do martírio de Bonhoeffer, que se referia a esse versículo para afirmar que, como vimos acima, a Igreja universal é concretizada integralmente em cada comunidade local (Sanctorum Communio). Que desafio devemos dirigir, então, à comunidade, o da abertura ecumênica ou o da verificação de suas qualidades comunitárias, ou ambos?
Aos cristãos em Corinto, que apesar de todos os problemas (de falta de santidade!) são afirmativamente Igreja de Deus, Paulo e Sóstenes dirigem a saudação (v. 3), tão frequente como introdução ou conclusão de prédicas (cf. Fp 4.7; Rm 16.20; etc.): graça e paz! Para Paulo graça é mais fortemente definida a partir da salvação escatológica em Cristo que a misericórdia (Schrage, p. 106). A paz (shalom) em Rm 14.17, juntamente com justiça e alegria no Espírito, constitui um sinal perceptível da antecipação do Reino.
3. Bibliografia
PORATH, Renatus. l Co 1.3-9; Auxílio Homilético para o lo Domingo de Advento. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1990. vol. XVI, p. 51-55.
SCHRAGE, Wolfgang. Der erste Brief an die Korinther (I Kor 1.1-6,11). Zürich; Braunschweig;
Neukirchen, 1991. (EKK, VII/1).
STOLLBERG, Dietrich. Captado Benevolentiae (I Kor l.(4-5)6-9. In: HÄRTLING, Peter, ed. Textspuren. Stuttgart, 1991. vol. 2, p. 54-56.