Prédica: 1 Coríntios 1.26-31
Leituras: Miqueias 6.1-8 e Mateus 5.1-12
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 28/01/1996
Proclamar Libertação – Volume: XXI
1. Considerações Introdutórias
A jovem comunidade de Corinto enfrenta problemas de divisão (1.10-18). Ao que tudo indica, o motivo dessa divisão é a supervalorização de certos fenômenos pneumáticos-extáticos. Estavam em alta a sabedoria e o conhecimento, dos quais alguns se orgulhavam como se estivessem de posse de um carisma especial. O apóstolo Paulo desmascara essa sabedoria como sendo ambígua e segundo a carne. Ela é própria do mundo. É um saber que as pessoas podem acumular mediante o uso de suas faculdades naturais. Ela tende a exaltar a sua independência em relação ao Criador. Leva à glorificação da criatura. O orgulho se instala. A competição, a busca de honra e poder levam a divisões. E o mais grave: na corrida por sabedoria, os coríntios desconsideram a palavra da cruz. Esta justamente se opõe a toda tentativa humana de autopromoção.
Paulo, ao contrário dos coríntios, desiste de proclamar o evangelho em roupagem de sabedoria humana. Mas isso não significa falta de poder carismático! É da própria essência do evangelho ser palavra da cruz que se opõe a toda sabedoria humana com suas construídas concepções de Deus. O apóstolo se entende enviado para proclamar a Deus, mas não em sabedoria de palavra, para que a cruz de Cristo não se torne vã. Porque a palavra da cruz de Cristo é loucura para os que perecem, mas para nós, que somos salvos, é poder de Deus. (V. 18.) Lança a pergunta retórica e provocativa: onde está o sábio? onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Na sua sabedoria o mundo não conheceu a Deus. Por isso lhe aprouve salvar as pessoas pela loucura da pregação da palavra da cruz. Assim, para o apóstolo não é possível pregar outro que não o Cristo crucificado. O poder de Deus se manifesta na fraqueza!
O nosso texto (vv. 26-31) praticamente tem a função de ser argumento em favor desta afirmação básica. O apóstolo aponta para uma experiência muito familiar aos coríntios. Ele chama a atenção para o próprio surgimento da comunidade. Convida a olhar para a eleição da mesma. Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento. O argumento de Paulo é de brilhante coerência lógica. Afinal, ele domina bem as regras da retórica do seu tempo. Aos valores segundo a carne, sabedoria, poder e nobreza, ele opõe o que Deus escolheu: loucura, fraqueza e o que é desprezível. O motivo deste estranho agir de Deus é para que ninguém se glorie diante dele (v. 29). O v. 30 vai ainda além. Aponta para a finalidade última dessa maneira de Deus chamar pessoas. Deus deseja que os crentes recebam a salvação exclusivamente em Cristo, pois não podem receber vida e salvação a partir de méritos próprios. O texto finaliza com uma citação de Jeremias: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
A comunidade cristã — isto fica claro na vocação dos coríntios — não tem absolutamente nada a apresentar de que pudesse se orgulhar. Sua única glória é o Cristo crucificado.
2. Alguns Detalhes Adicionais
No v. 26, quando Paulo conclama os coríntios a observarem sua vocação, não quer que se fixem em seu estado sociológico de pobreza e miserabilidade. Ele não quer cultivar um espírito de resignação e derrota. Chama, antes, a atenção para o ato divino de vocação. Quanto à situação social da comunidade de Corinto deve-se dizer, a bem da verdade, que havia nela também algumas pessoas abastadas e influentes. G. Theissen, em seus estudos neotestamentáríos, tem destacado este aspecto. Pensemos em Erasto, procurador da cidade (Rm 16.23), em Tito Justo, que generosamente acolheu o apóstolo em sua casa (At 18.7). Em Rm 16.1 é citada uma senhora influente, de nome Febe. Supõe-se que também Estéfanas (l Co 1.16; 16.15) tenha sido uma pessoa de posses, em condições de colocar sua casa e seu tempo à disposição da comunidade. Esses nomes, sem dúvida, foram importantes para a comunidade. Mas permanece: na sua maioria ela era constituída de pessoas muito humildes.
Deus escolheu as coisas loucas, fracas, que nada são (v. 27). Esta é a realidade! Dissemos que também havia algumas pessoas de posses e de influência. Mas o peso está sobre o que nada é. Tudo isso é sublinhado pelo emprego do neutro as coisas loucas. É assim que escravos e trabalhadores são vistos pelos poderosos. São nada, são coisa, são objeto. Até parece não se tratar de pessoas. Deus, porém, aniquila esse juízo do mundo acerca dos fracos. Elegendo os que nada são, deixa claro o lugar que ele próprio atribui àqueles que se julgam importantes e donos do mundo. Eles simplesmente não contam. O agir gracioso de Deus livra as pessoas de todo vangloriar-se. Não merecer, mas receber de graça é o que caracteriza a comunidade cristã.
No v. 30 é desenvolvida uma pequena eclesiologia. Deus é sujeito! É por ele que Jesus foi feito sabedoria para nós todos. li ele quem chama e cria do nada. Isto se manifesta justamente na eleição daqueles que aos olhos do mundo nada são. O fundamento para a existência da comunidade cristã é Cristo. Ele é sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção. Toda a sua existência está alicerçada nele, no Cristo crucificado.
3. A Cruz Escandaliza
Outro dia, à saída da igreja (centro de Porto Alegre), duas senhoras me procuraram para manifestar suas dificuldades com a prédica que acabáramos de ouvir. O colega pastor tematizou a questão da Santa Ceia. Sobretudo, esforçou-se para destacar o dom precioso do perdão dos nossos pecados, que nos é dado ao recebermos o corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. Somos libertados do peso da nossa culpa e fortalecidos para a jornada. Em última análise, no encontro com o Cristo crucificado se dá o fim das nossas próprias possibilidades e recebemos a salvação gratuitamente do Senhor. As duas senhoras, ambas de classe média, consideraram esse discurso demasiado negativo, muito baixo astral. Na opinião delas, dever-se-iam reforçar as tentativas que as pessoas fazem para agradar a Deus. Agora, acordar cedo, vir para a igreja e ouvir que somos pecadoras… Ah! tenha paciência!
Podemos, também, citar um pensador muito ilustre que teve enorme dificuldade com as afirmações centrais da fé cristã. Trata-se de Friedrich Nietzsche. Ele defendeu justamente a vontade da auto-afirmação. Em nome do poder e da vontade de poder, rejeitou a convicção cristã de que Deus escolhe o que nada é. Suspeitava que o cristianismo leva os fracos a se acomodarem. Nietzsche viveu numa época empolgada com os estudos darwinistas. Ele aceitou a ideia do processo seletivo da vida. Isto é, sobrevivem as espécies mais fortes. Aí está uma das raízes do tão conhecido conceito de ser humano superior (Übermensch), de Nietzsche. Os contemporâneos de Nietzsche esperavam que esse ser humano superior pudesse vencer as dificuldades nas quais se encontravam os países europeus industrializados. Era necessário arrancar o ser humano da massificação. Era necessário vencer ressentimentos e submissão! O cristianismo, porém, que vê o poder de Deus revelado na fraqueza, é tido como inimigo da felicidade do ser humano sobre a terra. Resta a pergunta se Nietzsche de fato entendeu o que significa a cruz como determinante de todo o pensamento cristão.
Que Deus escolheu as coisas fracas não significa menosprezar as potencialidades humanas, colocar-se contra o progresso e desenvolvimento, sacrificar valores culturais. A questão é simplesmente esta: o ser humano não é capaz de operar sua salvação. Muito bem o expressa Lutero em um hino que diz:
Perante ti não têm valor
virtudes e cuidados;
somente tua graça e amor
absolvem dos pecados.
Ninguém se pode enaltecer,
a ti devemos só temer,
vivendo em tua graça.
Deus desce! Mas nós queremos subir. Imaginemos a seguinte situação: está aí alguém a fazer compras num grande shopping center. Carregado de compras, insiste em subir a escada que vem descendo. É um desastre! O inevitável acontece. Ele sofre terrível queda com todos os seus embrulhos e entulhos.
4. Rumo à Prédica
Entendo que não devemos levar a comunidade a se fixar na sua eventual situação de pobreza em termos sociológicos. Não pode ser nossa tarefa levar à acomodação e ao conformismo com a pobreza e miséria. É decisivo, isso sim, que a comunidade perceba que deve a sua existência única e exclusivamente ao Cristo crucificado e não a méritos próprios. Ela sempre está de mãos vazias diante de Deus. Indicaria os seguintes passos para a prédica:
a) Para que ninguém se glorie! — a comunidade de Corinto e nós
O apóstolo Paulo se dirige à jovem comunidade da cidade portuária de Corinto. Podemos imaginar todo o movimento típico de uma cidade que tem o porto como seu centro comercial. Vem-nos à mente o grande número de trabalhadores, de escravos, de pobres. Essas pessoas sem expressão e sem influência constituíam basicamente a comunidade cristã de Corinto.
Deus congregou exatamente essas pessoas. Aliás, esse é mesmo o seu jeito de agir. A sintonia na qual Deus se comunica com a criatura humana é justamente a da fraqueza, do vazio, do não ter nada e não ser nada. (V. Lückemeyer.) Em outra faixa se podem ouvir outras mensagens e receber outras orientações. Deus, porém, comunica seu poder através da fraqueza. A composição da comunidade de Corinto é uma ilustração para o agir de Deus.
Qual é a composição das nossas comunidades, hoje? Certamente fazem parte delas muitos empobrecidos. Mas temos também nelas muitos membros influentes e bem situados financeiramente. Estão aí industriários, comerciantes, profissionais liberais. Seja qual for a composição das comunidades hoje, uma coisa certamente permanece: a tentação de nos gloriarmos, de apontarmos para os nossos méritos, para nossa sabedoria. Deixar Deus ser Deus é difícil. Nós é que queremos determinar como ele deve ser e agir. Queremos subir a escada que desce!
Para nós, como para os coríntios, vale a mensagem: não há motivo para exaltação e orgulho. Diante de Deus estamos Iodos de mãos vazias. Somente ele poderá enchê-las.
b) A centralidade da cruz de Cristo
A cruz de Cristo se opõe a toda tentativa humana de usurpar o lugar que cabe unicamente a Deus. Somos criaturas! Ele é o Criador! Ele é o Senhor! Ele confirma o caminho daquele que proclama bem-aventurados os pobres e humildes (Mt 5.1-12 é o Evangelho para o domingo). Identifica-se com o Crucificado. A cruz, por isso, é o símbolo de maior significado para a Igreja. Ela não é objeto de decoração, mas sinal que identifica a comunidade cristã como comunhão de pecadores agraciados. Aqui toda a glória cabe a Deus!
c) Liberdade para viver
Vivemos num mundo que se orienta pelos parâmetros da eficiência, da produção e do consumo. Valemos o quanto consumimos! Somos aceitos/as se o merecemos, isto é, se somos influentes e temos posses. Atribui-se tão alto valor às coisas que elas acabam ocupando o lugar reservado às pessoas. Por todos os meios se tenta convencê-las do valor dos objetos. Claro, a finalidade é o lucro. O meio para adquirir qualquer coisa é o dinheiro. Por isso, as pessoas se tornam obcecadas por ele. Tudo o que se pode comprar passa a ter um valor extraordi¬nário. Assim, as pessoas são coisificadas. O que faz uma pessoa ser aceitável é o dinheiro que possui e o que é capaz de comprar. Deus, porém, nos aceita assim como somos. Não necessitamos, antes, merecer o seu amor. Isto é graça! Essa experiência da graça livra-nos da necessidade da autocomprovação. Livra-nos de nós mesmos/as e nos remete à irmã, ao irmão.
Dessa forma, a mensagem evangélica (a Boa Nova) da graça de Deus é inspiração poderosa para trabalharmos os desafios que se nos colocam na sociedade de hoje. Estamos livres para nos voltar aos excluídos e lutar com eles por vida digna. Vivência na fé não nega o mundo! Lembro Dietrich Bonhoeffer. Diz ele: Só quem ama a terra e Deus ao mesmo tempo pode crer no reino de Deus. Podemos amar a terra e ouvir o grito do oprimido exatamente por termos sido chamados/as por Deus, sem merecimento de nossa parte. Comunidade sob a cruz de Cristo é, assim, espaço de liberdade para viver.
5. Subsídios Litúrgicos
Liturgicamente vai ser muito importante observar que se trata da época após Epifania. Poder-se-ia destacar que a presença de Jesus, hoje, se dá através e na forma da sua Igreja, composta por pessoas que nada têm e nada são. Nela, livres de nós mesmos/as, podemos viver em amor. Na comunidade experimenta-se que não o amor ao poder, mas sim o poder do amor tem a promessa de vida.
Sugiro incluir na liturgia o seguinte texto:
O poder diz: Eu me orgulho do que sou capaz.
O amor diz: Eu sou alegre em minha humildade.
O poder diz: Eu oprimo os inimigos.
O amor diz: Eu amo até os meus inimigos.
O poder diz: Eu faço as pessoas obedecer.
O amor diz: Eu faço as pessoas amar.
O poder diz: Eu destruo os maus.
O amor diz: Eu transformo os maus através da bondade.
O poder diz: Eu tomo a espada.
O amor diz: Eu tomo a cruz.
Meu Jesus, tira de mim o amor ao poder.
Ajuda-me a realizar o poder do amor. Amém.
A bênção: Para vivenciar doação e entrega, a bênção poderia ser compartilhada, com canto e gesto:
Deus te abençoe. Deus te proteja. Deus te dê a paz. Deus te dê a paz.
O canto Deus te abençoe… é acompanhado pelos seguintes gestos: Deus te abençoe (colocar as mãos sobre a cabeça da pessoa mais próxima); Deus te proteja (colocar as mãos sobre os ombros dessa pessoa); Deus te dê a paz. Deus te dê a paz (dar dois abraços). Conceder espaço suficiente para que muitos venham a se abençoar e abraçar em nome de Deus que nos aceita gratuitamente.
6. Bibliografia
LÜCKEMEYER, Valdemar. Meditação sobre l Coríntios 1.26-31. In: KIRST, N., coord. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1983. vol. IX, p. 24-33.
ROLOFF, Jürgen. Meditação sobre l Coríntios 1.26-31. In: Neue Calwer Predighilfen. Stuttgart, Calwer, 1981. vol. 4A, p. 113ss.
SCHRAGE, Wolfgang. Der erste Brief an die Korinther. Braunschweig, Benzinger; Neukirchen, Neukirchener, 1991. vol. 1.
THEISSEN, Gerd. Sociologia da Cristandade Primitiva. São Leopoldo, Sinodal, 1977.