Prédica: Isaías 25.6-9
Leituras: Filipenses 4.4-8 (9-13) e Mateus 22.1-10 (11-14)
Autor: Renatus Porath
Data Litúrgica: 21º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/10/1996
Proclamar Libertação – Volume XXI
1. Um Texto que Ultrapassa Limites no AT
Estamos acostumados a recorrer ao NT quando queremos ouvir o testemunho do Deus cujo agir não se limita a Israel, mas alcança todos os povos, ou quando queremos falar do Deus que supera a realidade de sofrimento e morte. O texto proposto para a pregação deste domingo quer refletir sobre esse horizonte amplo do agir de Deus a partir do AT. A Epístola e o Evangelho poderão enriquecer a palavra que vem do AT.
2. O Texto na Comunidade de Origem
Is 25.6-9 faz parte do material litúrgico reunido em Is 24-27 que se tornou conhecido como Apocalipse de Isaías. O material deve ter sido coletado em diferentes momentos, mas uma mesma preocupação perpassa esses textos.
O horizonte se alarga, ultrapassando o palco da história para incluir a dimensão universal. Não se fala mais da intervenção de Deus em uma realidade específica de um povo ou país, mas fala-se da terra, do mundo como um todo que é abalado pelo próprio Deus (Is 24.1-6). A cidade, uma grandeza hostil para os autores desses textos, não é identificada com uma cidade específica, mas é o centro do poder opressor, arrogante e tirânico de todos os tempos (25.2,13; 24.10-12; 26.5; 27.10). A referência a Moabe em 25.10b é secundária (cf. Croatto, p. 147).
A falta de detalhes históricos na descrição das catástrofes evidencia que nenhuma ameaça iminente pendia sobre as cabeças dos seus autores. Daí a insegurança quanto à datação na história da interpretação destes capítulos. Houve quem visse no anúncio da destruição da cidade uma referência à tomada da Babilónia por Ciro em 539 a.C, por Xerxes em 485, por Alexandre em 331 ou ainda uma alusão à destruição da cidade moabita de Dibon em 270 (cf. R. Albertz, p. 643). Mais acertada parece ser a proposta de ver nesses textos uma crítica ou até negação da cultura urbana (cf. O. Kaiser, p. 142s.). O período persa não se caracterizou pela reconstrução de cidades na Judéia como meio de levantar os tributos do império; pequenos burgos administrativos com seus respectivos funcionários serviam para tal (mas veja Croatto, p. 147). O período helenístico, sim, valeu-se da estrutura urbana, introduziu novas mercadorias, novos valores, enfim, um novo estilo de vida que ameaçava a fé e a vida da população judaica. Pensa-se no período helenístico entre 331 e 221 a.C., i. é, antes da oposição acirrada que os macabeus fizeram aos ptolomeus e seus colaboradores em Jerusalém (cf. R. Albertz, p. 643s.).
Pode-se dizer algo sobre o perfil da comunidade que se manifesta aqui?
Ouvindo o lamento formulado em Is 26.7-21, as angústias que marcam essa comunidade vêm à tona. Tomados por um sentimento de impotência diante dos outros senhores que têm domínio sobre eles (26.13), parece só restar-lhes a busca de Deus em culto como espaço para encher os pulmões e assim ter fôlego para o dia-a-dia (26.9,13b,17). Pouco aquela comunidade tem a apresentar diante de seu Deus. Seus projetos e suas atividades não produziram os resultados desejados. Aliás, dizem expressamente: o que demos à luz foi vento; não trouxemos à terra livramento algum. Devem ser porta-voz daqueles que ficaram à margem dos benefícios que o domínio helenístico trouxe para a terra. O sumo sacerdote gozava de honras reais e tinha parte na tributação, juntamente com a aristocracia judaica. É verdade que se pode atestar um crescimento populacional (cf. 26.15), mas simultaneamente o endividamento, o empobrecimento e a escravidão assumiram proporções tais que exigiram medidas de anistia de dívidas.
Infelizmente não temos maiores dados sobre a vida dessa comunidade alternativa, que alimentava a expectativa de um juízo de Deus que pusesse fim a esse abismo que separava o povo do sacerdote (sumo sacerdote?), o escravo do seu senhor, a escrava da sua patroa, o comprador do seu vendedor, o devedor do seu credor (24.2).
Neste círculo pintou-se também o quadro que expressa sua expectativa escatológica.
3. Um Quadro em Forma de Texto
Espera-se a intervenção de Deus que porá fim às grandes relações de poder, para então estabelecer o reinado de Javé a partir de Jerusalém (24.21-23). Os reis da terra, que, com sua arrogância, ganância e idolatria do poder, causam a angústia do mundo todo e conseqüentemente dessa comunidade, precisam ser afastados do poder. Igualmente os potentados celestiais, que se acreditava estarem na retaguarda dos poderosos deste mundo, deverão ter o mesmo fim: o reinar de Deus e o exercício do poder por parte desses governantes (e de seus colaboradores na aristocracia judaica?) se excluem. Aqui se manifesta a visão de alguém que nada mais espera dos que estão em cargos de mando na sociedade (no império!).
Inconformado diante dessa situação, espera-se um reinar alternativo de Deus. Como ele se configurará?
1) Uma mesa farta para todos os povos (v. 6).
2) O fim da realidade de luto e morte (vv. 7-8):
a) para todos os povos (v. 7);
b) para cada um individualmente (v. 8a);
c) para Israel em especial.
3) A resposta da comunidade: Este é o nosso Deus em quem temos esperado — motivo de festa antecipada (v. 9)!
1) Mesa Farta para Todos os Povos (v. 6)
O reinar de Deus se caracteriza, antes de mais nada, pelo servir à mesa, e isto sem distinção. Não são convidados apenas os grandes, como governantes da terra o fazem (Is 21.5; Dn 5.1), mas todos os povos têm lugar à mesa. A exemplo do que se narrava no Sinai — que os anciãos, juntamente com Moisés, banqueteavam-se com Deus (cf. Êx 24.9-11) —, o futuro é descrito com imagens ainda mais fortes. O privilégio de dividir a mesa com Deus, participar de sua comunhão e fartar-se com o que ele tem a oferecer não é mais de alguns poucos escolhidos de Israel, nem é de Israel como um todo, mas sim da totalidade dos povos. Todos sentados à mesa farta de Javé é garantia de paz entre os povos. Se de lá os povos saírem satisfeitos, reconhecendo a soberania de Deus, a ganância e a exploração não se justificarão mais; toda a arrogância que pisa em cima dos mais fracos estará esvaziada. O importante não é o que se leva para o banquete de Javé no monte, como ainda Trito-Isaías insistia (Is 56.7), mas o que interessa é a fartura que Deus tem a oferecer. A comunidade ainda lamentava que não tinha nada a oferecer além de vento (Is 26.18). Descobrira que paz e bem-estar em seu meio dependiam daquilo que Deus fez e fará por ela (26.12).
Parece uma característica comum da fé israelita e da fé cristã que em primeiro lugar elas confessam o agir salvador de Deus (Êx 15.21) e não festejam nossos próprios sucessos e realizações.
As carnes suculentas e os vinhos depurados são sinal da fartura e expressam a presença acolhedora de Deus em relação ao que está em aperto (SI 63.5; 23.5). Será que assim falam pessoas que estão passando fome e sede?
O banquete, símbolo do reinar de Deus, passou a ser paradigma para o reino da alegria do Messias tanto no judaísmo como no cristianismo. Não é por acaso que Jesus emprega a figura do banquete em suas parábolas (Mt 22.1-10; Lc 14.16-24) e visualiza a aceitação incondicional de Deus sentado à mesa para tomar uma refeição (Lc 7.36-50). Quando Jesus senta com publicanos e pecadores à mesa (Mt 9.10-13; Lc 19) e permite que mulheres e crianças fiquem em sua companhia, ele está colocando sinais desse reino. Essa radicalidade do Deus que convida indistintamente para seu banquete é a mesma que causa estranheza entre os contemporâneos de Jesus, quando afirmam: Este recebe pecadores e come com eles! (Lc 15.2.)
2) O Fim da Realidade de Luto e Morte (vv. 7-8)
A comunidade que não se conforma com as relações de poder existentes — porque a presença helenística ameaça sua liberdade, leva seus tributos e introduz um estilo de vida estranho — continua a descrever o alcance do reinar de Deus.
Os povos não são só chamados a participar da comunhão de mesa e festejar com Deus o início de sua tomada de poder, mas assistem também à inauguração de um novo tempo. O tempo do luto acabou. O véu do luto (cf. Jr 14.3-4; 2 Sm 15.30), que os povos trouxeram para o banquete de início de governo de Javé no Sião, será destruído. Não será mais necessário porque as causas de tanto sofrimento e morte foram eliminadas. Já em Is 2.2-5 os povos que chegam ao monte de Sião podem transformar armas em ferramentas de produção, porque a guerra deixou de existir. Aqui todo e qualquer motivo de luto deixará de existir. Quando a soberania pertence a Deus, nenhum povo tem mais necessidade de lutar para estabelecer sua hegemonia, causando sofrimentos incalculáveis e provocando mortes entre os povos e grupos subjugados. Os interesses económicos e a sangria através de tributos, que estão atrás de todo expansionismo imperialista, perderão seu sentido diante da mesa farta de Javé.
Além desse traço universalista no agir divino, o anfitrião Javé passa agora a revelar seu lado maternal e pessoal, cuidando de cada lágrima que corre pelo rosto dos seus convidados. A história de sofrimento, dor e morte de cada um não passará despercebida.
3) A Resposta da Comunidade: Este É Nosso Deus em quem Temos Esperado! (v. 9)
Essa comunidade que crê na soberania de seu Deus, avança para a confissão de maior alcance no AT: a morte com suas inúmeras causas não poderá restringir mais a esfera de ação de Deus.
Com isso o grupo que aqui se expressa descobriu uma nova fonte para sustentar uma postura livre diante dos causadores de morte. Aqueles que se dizem donos de sua terra, de suas vidas, de seus tributos não podem ser levados a sério, porque não têm a última palavra. Quem atribui a última palavra sobre vida e morte a Deus, como o faz a comunidade cristã desde a ressurreição de Jesus Cristo, torna-se livre e crítico diante de todo e qualquer poder. Por isso louvar a esse Deus é o início de um foco de resistência a todo poder que tira a liberdade, amedronta e ameaça a vida (26.13). Desse louvor nasce a certeza de que o consolo a enlutados não é em vão, mas também nasce a ousadia para reorganizar espaços, repensar estilos de vida e reestruturar relações de poder.
Paulo, ao lembrar a comunidade de Corinto que tragada foi a morte pela vitória (l Co 15.54), faz alusão à esperança que a comunidade no período helenístico já alimentava. E acrescenta a exclamação: Graças a Deus que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo (l Co 15.57). Aos olhos da fé no ressurreto, a realidade marcada por sinais de morte e por negação de Deus (inclusive da nossa parte!) já recebeu o golpe mortal; por isso podemos encará-la firmes e inabaláveis” (l Co 15.58a).
4. Encaminhando o Culto
Motivado pelas imagens fortes do texto da prédica e das leituras que falam de mesa, fartura e alegria, foi realizado um culto em torno do tema Podemos viver do banquete da fartura e da alegria em meio aos conflitos do dia-a-dia. Como era culto com Santa Ceia, a liturgia e a pregação deveriam conduzir para ela. A mesa da Ceia pôde ser deslocada para o centro do ambiente, o que permitiu que a comunidade se sentasse ao seu redor, visualizando, assim, parte daquilo que o texto expressava.
5. Subsídios Litúrgicos
Confissão de pecados (pressupõe que o tema tenha sido explicado no início): Senhor, não precisamos esconder nossa situação diante de ti. Sentimo-nos frustrados quando não conseguimos apresentar conquistas, realizações e resultados. Esquecemos que vivemos daquilo que tu pões na mesa e não daquilo que nós podemos oferecer.
Participar da tua mesa, ter comunhão contigo é garantia de vida liberta, de aceitação apesar de nossa culpa.
Tu sabes da nossa ansiedade de querer garantir nossa sobrevivência; temos gasto todas as energias para o nosso bem-estar e nunca sobram forçar para repartir com os outros os nossos bens, os nossos dons e a nossa fé. Perdoa-nos o egoísmo.
Na nossa vida individual e de comunidade pouco se nota que cremos no Deus que em Jesus Cristo se identificou com a nossa dor e nossas carências; pouco se nota que cremos em ti, Senhor, que venceste a própria realidade da morte. Tem piedade de nós, Senhor!
Palavra de graça: Graças a Deus que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo (l Co 15.57).
6. Bibliografia
ALBERTZ, R. Religionsgeschichte Israels in alttestamentlicher Zeit. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1992. (ATD-Ergänzungsreihe, 8/2).
CROATTO, J. S. Isaías — A Palavra Profética e Sua Releitura Hermenêutica; vol. I: 1-39. Petrópolis, Vozes; São Bernardo do Campo, Metodista; São Leopoldo, Sinodal, 1989. (Comentário Bíblico).
KAISER, O. Der Prophet Jesaja — Kapitel 13-39. 3. ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1983. (ATD, 18).