Prédica: João 11.47-53
Leituras: Ezequiel 37.1-3,11-14 e Romanos 8.11-17
Autor: Dirk Oesselmann
Data Litúrgica: 5º. Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 24/03/1996
Proclamar Libertação – Volume XXI
1. Primeiras Impressões
A sentença de morte de Jesus. Um acontecimento histórico. Mais uma morte? Ou melhor, um assassinato ordenado pelo poder? O que levou a essa morte? Quais são os interesses que estão por trás desse conflito que sacrificou uma pessoa que reconhecemos como Filho de Deus?
Mais tarde, essa morte de Jesus se tornou um ponto-chave da teologia dogmática. Morte e ressurreição, um dos fundamentos do nosso ser-cristão. Porém essa visão isolada tende a abstrair de um conflito concreto e real.
O texto de Jo 11.47-53 nos confronta diretamente com o diálogo entre as lideranças que chegam a pronunciar a sentença. Aqui temos um relato da condenação à morte de Jesus Cristo que revela nas entrelinhas a lógica e os interesses do poder político-religioso daquela época. No meio do evento histórico descobre-se um comentário teológico posterior, uma tentativa de querer entender a morte daquele que trouxe a vida.
O que fica para nós hoje, além da descrição do evento histórico e da análise das palavras? O que podemos descobrir atrás das palavras? O que permanece desse conflito até hoje? Pretendemos ir além da abstração do discurso dogmático reconsiderando o conflito para a nossa realidade brasileira atual.
2. O Texto
(V. 47:) Os sumos sacerdotes e fariseus, então, reuniram uma sessão do Conselho e diziam: O que fazemos? Este homem realiza muitos sinais. (V. 48:) Se o deixamos continuar assim, todos vão aderir a ele, e virão os romanos e destruirão o nosso lugar sagrado e inclusive a nossa nação. (V. 49:) Mas um, que era do seu número, Caifás, sendo sumo sacerdote naquele ano, lhes disse: — Vocês não sabem nada; (v. 50:) nem sequer calculam que convém a vocês que um só homem morra pelo povo e que não pereça a nação inteira. (V. 51:) Isto ele não disse por conta própria; sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus ia morrer pela nação; (v. 52:) e não só pela nação, mas também para reunir em unidade os filhos de Deus dispersos. (V. 53:) Assim, naquele dia resolveram matá-lo.
3. Os Atores e a Cena
Sumos sacerdotes = chefes dos sacerdotes com funções fixas no templo, 'leni voz ativa no sinédrio, que é composto, além dos sumos sacerdotes, de anciãos e escribas. O sinédrio assume o governo interno da região, sendo o sumo sacerdote presidente a autoridade político-religiosa suprema diante do Império Romano. Desta forma, este órgão é responsável pela ordem social e política interna.
Fariseus = grupo de lideranças de um movimento religioso.
Caifás = naquele momento, presidente dos sumos sacerdotes e, conseqüentemente, do templo.
Um homem — Jesus = personagem de liderança que surgiu no meio do povo questionando a legitimação e atuação do poder religioso.
Romanos = o Império Romano ocupou a Palestina e a incluiu na província da Síria. Os romanos, ou os interesses do Império, são representados pelo poder político-religioso local.
O texto é formulado quase integralmente a partir da ótica do poder político-religioso. A sua lógica e as suas preocupações transparecem nas palavras. Porém é duvidoso que esta cena realmente corresponda a um fato histórico. Provavel¬mente o autor imagina que deva ter acontecido dessa maneira. Mesmo assim, o resultado final, a sentença de morte, aconteceu realmente.
Os sumos sacerdotes, então, são os sujeitos nesta cena. Também o comentário posterior nos vv. 51 e 52 fala de Caifás como sujeito na terceira pessoa.
4. Olhar mais de perto — Anotações e Observações
V. 47: Está sendo convocada uma reunião do Conselho entre os sumos sacerdotes e fariseus por causa de um acontecimento anterior (então). Além de certa emergência nesta convocação, nota-se uma desorientação daqueles que ocupam o poder supremo. A preocupação foi causada pela atuação de um homem que realiza sinais. O nome deste homem não é mencionado, mas parece que todos sabem de quem se trata.
V. 48: Os sinais chamam, aparentemente, muito a atenção da população. E não é só isso. Em volta desse homem formou-se um grupo de adeptos. A atuação dele é tão convincente que os sumos sacerdotes e os fariseus temem que todos possam passar para o lado dele. Atrás destas palavras esconde-se o perigo de que exista uma contraforça fora do controle do poder estabelecido. Torna-se necessária uma intervenção por parte do poder supremo. Mas que tipo de intervenção, para não criar mais confusão ainda?
Segue-se na segunda parte do v. 48 a justificativa pública para uma possível medida: Virão os romanos e destruirão…. Os romanos reagiriam imediatamente a uma desestabilização da paz interna na província caso uma força política fora do controle da representação romana ameaçasse a garantia das fronteiras no sudeste do Império. Sem dúvida, os próprios sumos sacerdotes, o poder político-religioso da Palestina, temem uma intervenção de cima se não conseguirem amenizar o movimento contrário interno. O nosso lugar sagrado, o templo como centro do domínio político-religioso, corre perigo. Acrescenta-se que isso corresponde ao perecimento da nação judaica, com a qual os sumos sacerdotes finalmente se identificam. A justificativa política se constrói a partir do pretenso bem-estar geral da nação.
Vv. 49-50: Caifás, o líder dos sumos sacerdotes, se destaca ao tomar uma iniciativa para propor uma solução. Ao fazê-lo, ele apenas conclui aquilo que já foi preparado na discussão anterior, mas que, aparentemente, não foi colocado por receio de encarar a última consequência. Tem-se que sacrificar um homem para salvar a nação: … um só homem morra pelo povo e que não pereça a nação inteira.
É necessário distinguir povo e nação. O povo inclui toda a dinâmica da população que é o povo de Deus, tendo este feito uma aliança com aquele. A nação representa a estrutura do poder judaico estabelecido, fundamentada nas leis religiosas. Com isso, nesta justificação da sua proposta o sumo sacerdote usa essas duas dimensões de uma forma que induz uma identificação de interesse a fim de conquistar o povo.
Vv. 51-52: Entra neste lugar o comentário do evangelista, que — e isto é típico do Evangelho de João — reflete o evento a partir da distância proporcionada pelo conhecimento da história geral da salvação. Dentro dessa história, Jesus teve que morrer, e até a pessoa do sumo sacerdote se submete a ela, tornando-se profeta da morte de Jesus. Nesta perspectiva, tudo encontra o seu sentido maior: a morte de Jesus não é apenas uma medida do poder político-religioso, mas tem a finalidade de reunir os filhos de Deus dispersos.
Nestes dois versículos não se usa mais a palavra povo. Fala-se apenas de nação.
V. 53: A sentença de morte não causa surpresa ou espanto. Ela representa uma consequência quase natural dentro da lógica do poder ameaçado. Todos os evangelhos relatam um conflito severo de Jesus com as autoridades religiosas judaicas durante a sua atuação. Desde o começo nasceu a intenção de eliminá-lo.
5. Olhar em Volta do Texto — o Contexto
a) A Ressurreição de Lázaro
O nosso texto encerra o cap. 11, que ao mesmo tempo nos situa no contexto maior. O v. 47 se refere, implicitamente, aos acontecimentos anteriores, à ressurreição de Lázaro (11.1-44). Ela é o último sinal do livro dos sinais' (Jo 1.19-12) (|iic marcam a atuação de Jesus assim como ela aparece no Evangelho de João. A ressurreição de uma pessoa conhecida que falecera há quatro dias teve, sem dúvida, uma forte repercussão entre os judeus: Muitos dos judeus que tinham vindo à casa de Maria, tendo visto o que ele fizera, creram nele (v. 45). O aumento da movimentação em volta de Jesus é a razão da emergência da reunião do Conselho dos sumos sacerdotes e fariseus, como está subentendido no v. 47.
b) Conflito com o Poder Religioso dos Judeus
No Evangelho de João os judeus representam a contraparte de Jesus. Isso explica-se mais ainda a partir do ponto de vista posterior da composição do Evangelho, após uma separação dos judeus, numa situação altamente conflitiva. Assim, nos textos os judeus se confundem, muitas vezes, com o poder religioso e também com os grupos fanáticos dos judeus. Porém os adeptos de Jesus também eram recrutados do povo judeu (v. 45).
A briga com o poder religioso perpassa todo o Evangelho de João, desde que Jesus subiu pela primeira vez na sua atuação para o templo central (Jo 2.13…). A primeira ordem dos fariseus de prendê-lo é pronunciada em Jo 7.32, mas fracassou porque os próprios guardas se recusaram (7.45-47). O conflito culminou quando Jesus se aproximou do centro do poder, Jerusalém na Judéia. Depois de quase ser apedrejado pelos judeus no templo (10.31), ele foi para o outro lado do Rio Jordão, porém, após receber a notícia da doença de Lázaro, decidiu voltar à Judéia. Rabi, há pouco os judeus procuravam apedrejar-te, e vais outra vez para lá? (11.8.)
A sentença de morte em 11.53 é o resultado oficial desse conflito, introdu¬zindo com este fato a história da crucificação de Jesus.
6. As Chaves da Mensagem
A mensagem deste texto parte do conflito entre Jesus e o grupo de sacerdotes e fariseus que mantêm o poder político e religioso. Os versículos em questão expressam a seriedade do conflito, que chega até as últimas consequências — a sentença de morte de Jesus. Não é uma briga sobre interpretações bíblicas. Jesus chega a questionar ativamente os fundamentos de uma instituição religiosa que procura se manter no poder — o poder que se estabeleceu no pacto, não mais com Deus, mas com o Império Romano. Este é a primeira referência quando se avalia a situação dos sumos sacerdotes e fariseus no Conselho. A partir desse compromisso decide-se a direção da sua política.
O texto mostra outro fato: a repercussão da atuação de Jesus. Politicamente, a decretação da sua morte não é tranquila. Jesus já tem muitos adeptos. A expectativa do povo diante dele é grande. A morte poderia provocar revoltas.
Precisa-se armar uma justificação ideológica e religiosa para esta decisão: primeiro, o perigo da intervenção direta dos romanos é mencionado no nosso texto. Mais adiante, a suposta blasfêmia de Jesus cumpre a segunda parte religiosa (Jo 18).
O poder religioso se apresenta aqui como o conhecemos a partir de muitos exemplos até hoje. Um poder que atua e vive preocupado com a sua própria persistência e manutenção. Ele se autojustifica e se auto-sustém — este é o seu único interesse. As leis religiosas servem para estabelecer o grupo dos poderes, as contribuições dos adeptos religiosos financiam a estrutura de poder. E mais ainda, o poder religioso é político — naquela época e até hoje em outras feições —, confundindo-se e se coligando nos seus interesses.
Jesus realiza sinais entre as pessoas. São sinais de vida. Vida que se sobrepõe à morte. Vida que dá nova esperança. Vida que é de todos. Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mini, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mini jamais morrerá. (11.26.) Jesus anuncia e dá a vida para as pessoas que sofrem, que estão doentes, que são excluídas, que perderam a esperança. Jesus foi condenado à morte por um poder que se fundamentava numa sociedade injusta. Por isso, ele era o pior inimigo deste poder ao questionar a sua justificação divina. Ao mesmo tempo, o próprio Jesus manifestou esse poder de Deus, mas como um poder de serviço, um poder que promove a vida e encontra o seu único interesse nisso.
7. Bibliografia
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