Prédica: João 17.1-11
Leituras: Atos 1.8-14 e 1 Pedro 4.13-19
Autor: Guilherme Lieven
Data Litúrgica: 7º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 19/05/1996
Proclamar Libertação – Volume XXI
1. Introdução
Quero ajudá-lo na tarefa pastoral. O nosso texto, primeira parte da oração de despedida de Jesus, propõe um enfoque estimulante para o anúncio da glorificação de Deus na história e em nossos dias. A sua grandeza e exclusividade, a princípio, intimidam um pouco. Mas prossigamos.
Pai, chegou a hora; glorifica o teu filho, para que teu filho te glorifique. Assim inicia a oração de Jesus. Aponta para o final da obra a ele confiada pelo Pai (17.4). Como pregar e trabalhar em grupos e comunidades a glorificação de Deus em Jesus Cristo? Jesus está sendo glorificado o suficiente? A glorifica¬ção de Jesus é ou não um serviço teológico descomprometido com os crucificados dos nossos dias?
Vamos enfrentar estas questões. Fazemos isso na época litúrgica (7° Domingo da Páscoa) do início da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos e a uma semana da festa de Pentecostes.
Concretamente, vivemos o tempo da idolatria. Nossos medos, lutas e angústias se deparam com um deus mercado que também sacrifica e glorifica, que compromete-se com poucos e exclui totalmente a maioria. O mercado, a globalização da economia se apresentam como um caminho para o bem de todos. Assistimos à implantação de um sistema de crenças que se configura como o maior movimento idólatra da História humana. Percebemos a elaboração de uma linguagem desse sistema sagrado subvertendo todos os valores, encampando símbolos, temas e lutas até então exclusivas do anúncio do Deus libertador, de Jesus o Cristo, encarnado, salvador e doador da vida.
Jesus enviou seus discípulos ao mundo. Anunciamos hoje o envio ao mundo da idolatria. Já não estou no mundo, mas eles continuam no mundo, ao passo que eu vou para junto de ti. Pai santo, guarda-os em teu nome, que me deste, para que eles sejam um, assim como nós (17.11).
2. Contexto e Texto
Os caps. 13 a 21 de João são conhecidos como o livro da comunidade (a última ceia e os discursos de despedida de Jesus). Cremos que o livro de João IIMII como pano de fundo uma comunidade, uma minoria perseguida, certamente uma comunidade de judeus que confessam Jesus como o Cristo, perseguida por judeus comprometidos com a sinagoga, que não reconhecem a Jesus Cristo como o enviado do Pai. Este contexto promove uma teologia específica, convicções de lê exclusivas. Nosso texto, Jo 17.1-11, e toda a oração de Jesus (sacerdotal) são partes deste material e elaboração teológica exclusivos; p. ex.: a glorificação do rilho como obra do Pai.
A perícope de 17.1-11 é uma parte da oração de despedida de Jesus que ocupa todo o cap. 17. Para a análise do texto apresento o seguinte resumo dos versículos:
— Chegou a hora da glorificação do Filho — a glorificação do Pai.
— A glorificação dá a vida eterna aos seus.
— Vida eterna vem da aceitação de Jesus como enviado do único e verdadeiro Deus.
— A obra de Jesus glorifica a Deus na terra (na História humana).
— A glorificação devolve Jesus para o Pai. Encerra a intervenção de Deus, por meio do Jesus histórico, na terra.
— Aos que guardaram a palavra Jesus revelou a Deus.
— Estes reconheceram em Jesus aquele em que Deus está.
— A Palavra, o Logos em Jesus, dialogou com a História. Os que guardaram a Palavra creram no Logos encarnado.
— Jesus intercede em favor dos que o reconheceram como o Logos.
— Nestes Jesus também é glorificado.
— Jesus pede a proteção para os seus que ficam no mundo. Essa proteção cria a unidade. Para que sejam um como nós — Jesus e o Pai.
O resumo acima impõe certos destaques para a nossa meditação. Precisamos aprofundar a hora, a glorificação e o envio dos discípulos para o mundo através do pedido de proteção que cria a unidade.
3. Destaques
a) Chegou a hora: a indicação hora está presente muitas vezes no livro de João (2.4: minha hora não chegou; 4.21: vem a hora; 7.30 e 8.20: não chegara a sua hora; 12.23 e 13.1: é chegada a hora; 16.32: chega a hora). A proposta do Evangelho conforme João é apresentar Jesus como aquele filho de Maria e José em que está Deus, o Verbo que se fez carne, o enviado do Pai, a unidade entre o Filho e o Pai. A intervenção salvífica de Deus na História é apresentada como uma obra que tem um final, uma hora para se consumar. Conforme João (19.30), as últimas palavras de Jesus na cruz são: Está consumado (nos sinóticos as últimas palavras são outras). A hora está vinculada com o final da obra de Deus realizada em Jesus Cristo (17.4 e outros). O Logos, em Jesus, dialogou com a História humana. Esse diálogo configurou-se como uma obra da salvação — para a teologia de João é a vitória sobre o mundo (16.33), o julgamento do Príncipe do mundo (16.11).
b) A glorificação: a glorificação de Jesus é ao mesmo tempo a glorificação do Pai. A glorificação se mostra na cruz e na ressurreição, no final da intervenção do Pai na história através de Jesus. Porém em toda a obra de Jesus está presente a glorificação de Deus. Esta conclusão é importante! Creio que a cruz e a ressurreição concluem a obra de glorificação, a nova aliança (1.29). Especialmente em João encontramos a elaboração que anuncia o sacrifício de Deus e a vitória sobre (os projetos do) o mundo, presentes desde que a Palavra se fez carne e habitou entre nós.
A glorificação identifica o projeto dos glorificados e do glorificador. Na Bíblia encontramos a glorificação de Deus vinculada especialmente com atos históricos salvíficos, com atos em favor do seu povo. Tomamos como exemplo o ato de libertação desencadeado no Egito, o êxodo (Êx 14.17-18). A glorificação é resultado de libertação.
c) O envio dos discípulos: no envio dos discípulos em João estão presentes o pedido de proteção e a indicação de unidade. A proteção relaciona-se com o reconhecimento em Jesus do enviado do Pai, com a percepção da obra salvífica de Deus via a intervenção histórica.
Os discípulos ficam no mundo que nega a presença de Deus em Jesus (1.10). Ele prepara os discípulos (lava-pés; o mandamento: amai uns aos outros; o anúncio do caminho, verdade e vida; a vinda do Espírito Santificador; a oração sacerdotal) para permanecerem no mundo. E a glorificação de Jesus continua neles (17.14,18). A intervenção de Deus na História chamou e preparou pessoas para continuarem a obra da glorificação. O envio dos discípulos está intimamente ligado à participação dos enviados na obra de intervenção de Deus no mundo para vencer a morte. Nessa participação se dá a continuidade da obra de Deus no mundo e, conseqüentemente, a continuidade da glorificação.
4. Meditação
Com os apontamentos acima percebemos que a glorificação de Deus em Jesus Cristo é uma obra de sacrifício, perseguição, morte. Não é algo bonito no sentido romântico e contemplativo. A glorificação cria o novo. É ação viva que interfere! Rompe com o mundo. Usando as metáforas de João, podemos afirmar rompe com as trevas, a mentira, a fome, a sede, os descaminhos, o ódio. Pois a intervenção de Deus se dá no mundo que não tem o pão da vida, a verdade, o caminho, a vida em abundância, a luz, a água que mata a sede para sempre. Desde que o Verbo habitou entre nós a crise do mundo é constante (krisis/ julgamento, separação, juízo). A glorificação de Jesus criou uma nova situação intolerável para o mundo. Denunciou e venceu os projetos de morte.
A conjuntura atual aponta para um grande golpe do projeto neoliberal nos dois terços da população mundial. A aldeia global, articulada pelo mercado, glorifica projetos que incluem o sacrifício e a idolatria. Deuses são esculpidos também subjetivamente. O deus mercado exige sacrifício, fome, exclusão, morte, desintegração. A linguagem do Deus libertador é atrofiada. Sistemas diferentes e sofisticados de crenças elaboradas pela Nova Ordem econômica, social, política e cultural se impõem e confundem a intervenção salvífica de Deus em favor da vida abundante. A glorificação de Jesus, o Cristo, está comprometida.
Na Igreja de Jesus Cristo há muito tempo aspectos centrais da obra de Deus vêm sendo teologizados em favor do mundo que exclui, mata e nega Jesus Cristo. Por exemplo: a cruz deixou de ser escândalo, deixou de ferir e interferir na caminhada das comunidades. Modelos e esquemas teológicos, ao buscarem explicar a cruz, especialmente pelo aspecto soteriológico, insistem em encobrir o assassinato de Deus. As teologias da cruz transformaram-se na cruz da teologia.
Como reação surge entre nós o retorno à palavra de Deus, à realidade dos empobrecidos, revelando como serviço o anúncio do Deus libertador do êxodo, dos profetas e em Jesus Cristo. Os temas e assuntos da teologia, do falar de Deus, foram peneirados para escapar do comprometimento com a linguagem idólatra que leva à morte. Entre eles está a glorificação de Jesus, porque este aspecto e tema da fé transformou-se em aparelho ideológico para encobrir e impedir a luta pela vida, pela transformação das estruturas sociais, pela comunidade participativa onde todos são sujeitos na História e experimentam a cidadania.
O texto de Jo 17.1-11, no momento atual, ajuda em nossa pastoral. Ele traz de forma explícita o tema da glorificação de Jesus. Quer dizer: a obra salvífica de Deus instalada no mundo por meio de Jesus. A ajuda consiste em assumir que diante da nova Ordem Mundial a crise (krisis) é ainda maior. A obra de Deus está sendo sistematicamente negada. A crucificação dos enviados, das comunidades, do povo de Deus é ainda um escândalo sem proporções.
Para combater a idolatria e identificar a obra salvífica de Deus, a intervenção de Deus na História por meio de Jesus Cristo, proponho anunciar em alto som a glorificação de Jesus: da ordem da vida, da ordem do amor, da verdade, do distribuir do pão, da água, da abundância, da solidariedade… Glorificar a Jesus em nossos dias significa participar da luta contra o sacrifício e a morte, significa participar da obra de vida de Deus. Nosso texto possibilita o resgate do tema da glorificação de Jesus, no momento em que é serviço santo identificar a obra libertadora de Deus, em Jesus Cristo, e glorificá-la. É chegada a hora!
5. Sugestões para a Prédica
1) Situar o texto na obra teológica de João. Apresentar a glorificação de Jesus como a obra salvífica de Deus instalada no mundo. Ajuda muito o exemplo da glorificação de Deus no ato libertador do êxodo, para apresentar a glorificação como um ato histórico a favor da vida dos filhos de Deus. Proponho o uso das metáforas do Evangelho de João. As metáforas comunicam facilmente e inspiram a contextualização.
2) Confrontar a glorificação de Jesus com as glorificações dos deuses da Nova Ordem Internacional presentes no nosso dia-a-dia. Não fugir da tarefa de facilitar à comunidade a leitura da idolatria do mercado instalada entre nós. Assim, resgatar o espaço de Deus — deixar Deus ser Deus na comunidade —, a sua presença no mundo com a sua obra que vence a morte, a idolatria e cria o novo.
3) Apontar para o envio dos discípulos, daqueles que reconhecem a Deus em Jesus Cristo. Apresentar o envio como comunitário, coletivo, para a comunidade. Respaldar o envio com a proteção de Deus que une. Anunciar a glorificação de Deus que continua hoje através das comunidades. A comunidade glorifica a Deus quando vive a crise, aponta a idolatria e contrapõe a obra salvífica de Deus aos projetos de morte.
4) Não se esqueça! O próximo domingo é Pentecostes. A questão do envio pode já introduzir a celebração e a reflexão no Dia do Espírito Santo.
Espero que as sugestões acima ajudem o seu trabalho. Sugiro, ainda, trabalhar este texto em grupos da comunidade. Certamente, nestes espaços, o tempo maior e o debate colaborarão para o aprofundamento.
6. Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. Observações Introdutórias Referentes ao Evangelho de João, in: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1982. vol. VIII.
COMBLIN, José. Evangelho de João — Epístolas. Polígrafo, CEBI.
VELOSO, M. Comentário do Evangelho de João. Santo André, 1984.
VV. AA. O Livro da Comunidade — João 13-17. Belo Horizonte, CEBI.