Prédica: Mateus 13.1-9
Leituras: Isaías 55.10-11 e Romanos 8.18-23 (24-25)
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 8º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/07/1996
Proclamar Libertação – Volume: XXI
1. Comparação entre Marcos e os Demais Evangelhos
O texto de Mt 13.1-9 tem paralelos no Evangelho de Marcos (4.1-9), no de Lucas (8.4-8) e no Evangelho de Tomé (cap. 9). Todos os evangelhos contam uma história com traços idênticos: após o semear narra-se inicialmente o destino de sementes que não deram fruto; no final, apresenta(m)-se a(s) semente(s) que dá(dão) muito fruto.
Na pesquisa tem-se por certo que, no mínimo, Mateus e Lucas basearam-se no relato de Marcos, modificando-o em maior ou menor escala para adaptar a parábola à situação de suas comunidades e aos seus interesses teológicos. É também muito provável que a explicação posterior da parábola (Mc 4.10ss. e par.) seja antes uma reflexão da comunidade primitiva do que propriamente a explicação dada por Jesus. É o que pensa um exegeta como J. Jeremias, p. ex. (pp. 81s.). Assim, um exame da parábola na situação de Jesus deve orientar-se primariamente pelo texto de Marcos.
O que diferencia o relato de Marcos do de Mateus são, sobretudo, dois detalhes:
1) Nos vv. 4-7, onde descreve o que ocorre com as sementes que não dão fruto, Marcos usa o singular. Trata-se, sempre, de sementes isoladas. Já no v. 8, em que se fala das que dão fruto, usa o plural: Outras, enfim, caíram em boa terra… A história parece, pois, estar querendo diferenciar entre o que ocorre com sementes isoladas e com a grande maioria das demais sementes. A grande maioria das sementes dá fruto!
2) No v. 8 a quantidade da produção é descrita em números crescentes: produzindo a trinta, a sessenta e a cem por um. Enquanto que Lucas diz unicamente que produziu a cento por um, Mateus curiosamente apresenta a produção em números decrescentes: (…) a cem, a sessenta e a trinta por um (13.8). Parece-nos claro que, de acordo com o relato de Marcos (e Lucas), o interesse da história c ressaltar uma boa colheita produzida pela maioria das sementes. Hm Marcos a grande colheita produzida pela maioria das sementes contrasta com a falta de frutos em poucas sementes isoladas!
Se partirmos da hipótese de que a parábola, assim como é narrada por Marcos, é a que mais se aproxima da pregação de Jesus, então a sua mensagem, o seu evangelho nos parece muito simples: Jesus estaria anunciando a boa nova de uma colheita abundante, a despeito de um ou outro grão improdutivo.
2. A Parábola como Expressão da Realidade do Reino que Jesus Anuncia e Vivência com as Pessoas
2.1. A Parábola e a Escatologia Agrária
O que queria Jesus repassar com esta parábola, o que queria que seus ouvintes assimilassem?
A pesquisa dos últimos decénios descobriu que, por via de regra, as parábolas de Jesus são expressões metafóricas para a realidade do reino de Deus que ele veio anunciar e vivenciar com o povo. Que características do reino de Deus estaria, pois, querendo expressar esta parábola?
O relato de Marcos não nos parece deixar margem a dúvidas: Jesus está querendo repassar a ideia de abundância, de fartura. Abundância e fartura são metáforas conhecidas para os tempos salvíficos. Por ocasião da libertação do Egito, lemos em Êx 3.8 a promessa de Deus: Por isso desci a fim de livrá-lo das mãos dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e espaçosa, terra que mana leite e mel… Outra expressão para a fartura e abundância dos tempos salvíficos encontramos em Is 65.21s.: Edificarão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão o seu fruto (…) não plantarão para que outros comam… E, por último, seja ainda citado o texto pseudepígrafo de l Enoque 10.18ss.: E então toda a terra será cultivada na justiça, tudo será plantado com árvores e estará cheio de bênçãos (…) E eles plantarão vinhas aí: e estas vinhas darão frutos em abundância, e, para toda semente que for plantada, cada medida será um milheiro, e cada medida de olivas dará dez porções de óleo. Purificai a terra de toda opressão, injustiça e pecado (…) Naqueles dias abrirei os céus e derramarei bênçãos a fim de espalhá-las sobre a terra cobrindo o trabalho e o esforço da humanidade (cf. Myers, p. 222).
Esses exemplos de escatologia agrária (Myers, p. 222) poderiam ofere¬cer-nos uma primeira chave para a compreensão da parábola: Jesus teria em mente o grande número de agricultores arrendatários ou endividados e sob constante pressão de perda da terra. Estaria lhes repassando a seguinte certeza: quando vier o Reino, o tempo será de fartura; haverá abundância de colheita; haverá sobra para comer, para pagar dívidas, inclusive para recuperar luras vendidas sob pressão e angústia. Ched Myers acha, concretamente, que Jesus estaria vislumbrando com a parábola a abolição das relações opressoras de produção que determinavam os horizontes do mundo social do agricultor palestinense. A parábola estaria, assim, articulando uma ideologia da terra e as revolucionárias esperanças dos que a trabalham (p. 223). Esta interpretação Ia/ bom sentido se procurarmos entendê-la via contexto maior do anúncio do Reino por Jesus: em Mc 2.18s. ele realmente defende o fim do jejum; em 2.23-28, a legitimidade de buscar comida em casos de necessidade e fome; em Mt 6.12 c I8.23ss., o perdão das dívidas, etc. Compreende-se melhor agora um texto como Mt 11.28-30, que costumamos recitar no convite para as celebrações da Santa Ceia: Jesus convida para chegarem até ele todos os que se encontram cansados e sobrecarregados e promete-lhes descanso e um fardo leve. Qualquer breve estudo sobre a cobrança de impostos civis e religiosos na Palestina e sobre a situação angustiante dos trabalhadores rurais dificilmente deixa dúvidas quanto à natureza mais exata do cansaço e sobrecarga às quais se referem textos como este!
Essa escatologia agrária teria também alguma coisa a ver com uma possível escatologia urbana? Seria possível aplicar o conteúdo original desta parábola também à situação das cidades? Se vejo bem, aquilo que representam sementes gerando muito fruto para um agricultor é diretamente proporcional ao fruto que nas cidades é gerado pelo trabalho. A abundância da colheita no campo corresponde, para o operário, à abundância de ordenado. Se Jesus contasse parábola idêntica para uma situação urbana, os empecilhos à boa colheita na parábola seriam comparáveis aos obstáculos que encontram os trabalhadores para receber um salário justo e decente. Jesus vislumbraria uma escatologia urbana, ou seja, uma situação em que a esmagadora maioria dos trabalhadores teria o seu trabalho contemplado com muitos frutos, ou seja, com renda farta.
2.2. A Parábola dentro da Atividade Maior de Jesus
A maioria dos/as pesquisadores/as interpreta a parábola partindo do fato de que semente é, no AT, metáfora conhecida para a palavra de Deus. O texto de maior referência nestes casos é o de Is 55.10s.: (…) assim será a palavra que sair da minha boca; não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a designei. A parábola seria a expressão da certeza de Jesus de que a palavra de sua pregação, a despeito de encontrar resistência em um ou outro ouvinte, daria muito fruto de aceitação e compromisso em sua obra missionária. Neste sentido a comunidade primitiva também interpretou o texto (cf. Mc 4.10ss.).
Não há dúvida de que este representa também um sentido original possível da parábola em Jesus. Mesmo assim, esta linha de interpretação nos parece estreita demais. No próprio AT a semente não é só metáfora para a palavra de Deus. Km textos como Pv 11.18 ou Os 10.12 ela sinaliza a justiça: O perverso recebe um salário ilusório, mas o que semeia justiça terá recompensa verdadeira. (Pv 11.18.) Mais importante ainda é que os sinais do Reino que Jesus veio trazer não se resumem ao conteúdo de sua pregação, mas se referem ao conjunto de toda a sua atividade em pregação e ação. É isto que revelam palavras como as de Lc 11.20: Se expulso os demónios com o dedo de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós. Para este sentido mais abrangente também nos parecem apontar várias outras parábolas relacionadas com frutos ou sementes, como, p. ex., as da semente que cresce por si só (Mc 4.26-29), do grão de mostarda (Mc 4.30-32), do joio no meio do trigo (Mt 13.24-30), etc. Se, pois, devemos crer que Jesus viu sua própria atividade como re¬flexo de um semear a justiça do Reino, importaria então examinar se em outras palavras e ações suas podemos encontrar um reflexo desse evangelho de fartura e abundância para o qual aponta a parábola. Onde, perguntamos agora, se reflete uma realidade do Reino que se assemelhe à realidade da parábola contada por Jesus?
Uma primeira aplicação pode ser constatada no terreno da economia. As multiplicações ou partilhas do pão (Mc 6 e 8) são o exemplo mais notório: são saciadas 5.000 pessoas (Mc 6.44) na primeira vez e 4.000 na segunda (Mc 8.9). Isto são números muito expressivos! A comunidade primitiva seguiu o exemplo: reino de Deus significava para ela, segundo o testemunho de Lucas, que bens eram partilhados e que a multidão dos necessitados cessava de existir: pois nenhum necessitado havia entre eles (At 2.44s.; 4.32-35). Também aqui temos o testemunho de uma fartura que, uma vez partilhada, saciava 30, 60, 100 pessoas e até muitas mais do que isto! O exemplo contrário nos dá a economia do templo: ela é como uma figueira sem frutos (Mc 11.13), uma casa de ladrões (Mc 11.17). A ladroagem também reverte em abundância, mas trata-se de abundância não-evangélica, porque expropriada do povo e apropriada por uma minoria.
Uma segunda aplicação cabe registrar no terreno da saúde. Reino de Deus significa abundância de saúde, de curas. A ação terapêutica de Jesus foi intensiva nesta área da saúde física. Seus exorcismos, suas curas de surdos, gagos, mudos, cegos, etc. são o testemunho mais eloquente dessa verdade. Existiram, é claro, também cidades como Nazaré, em que essa semente do Reino não pôde multiplicar seus frutos… (não pôde fazer ali nenhum milagre: Mc 6.1-6). Talvez tenhamos minimizado por demais a importância do corpo para o Reino, tenhamos espiritualizado por demais o evangelho, tenhamos depreciado erroneamente os dons de cura concedidos pelo Espírito, bem como as pastorais de saúde. Mas não existe sementeira do reino evangélico sem multiplicação da saúde do povo.
Uma terceira aplicação ocorre na área das relações sociais. A adesão ao Reino, diz Jesus, implica a perda de certas relações sociais; por outro lado — bem à semelhança de nossa parábola —, ele afirma que, em compensação, recebe-se o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos… (Mc 10.29s.). Reino de Deus significa abundância de família, de amigos/as, de irmãos /ãs: a gente as recebe às dezenas, centenas e milhares! Reino de Deus significa uma grande multiplicação de irmãs e irmãos, todas/os filhas/os de um mesmo Pai e guiadas/os por um mesmo espírito de acolhimento e fraternidade (Rm 8.12-17).
Há no reino de Deus ainda outra área que gostaríamos de mencionar, em que os frutos se multiplicam vertiginosamente: trata-se do campo da ideologia religiosa. Nossas igrejas, por via de regra centralizadas na pessoa do/a pastor/a ou dos integrantes dos presbitérios, pouco experimentam a novidade proclamada por Jesus em Mt 11.25: Graças te dou, ó Pai (…) porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Enquanto que sábios e entendidos — seja pela posição social que ocupam, seja por razões de soberba e orgulho — têm dificuldade em frutificar para o Reino, Jesus multiplica os frutos do entendimento e da compreensão de sua verdade entre pequeninos. O povo simples tem acesso à interpretação e produção religiosas, pescadores e rudes agricultores transformam-se em pregadores e renomados apóstolos, mulheres marginalizadas em dirigentes de comunidades, crianças inexpressivas em paradigmas do Reino.
A multiplicação dos frutos de nossa parábola certamente tem a ver também com a democratização e multiplicação do saber brotada a partir das bases comunitárias. Pastores, dirigentes de igrejas e mesmo as próprias comunidades acomodadas nem sempre têm interesse nessa multiplicação dos saberes. Mas reino de Deus é isto: é soma de saberes, multiplicação de conhecimentos, não semente que teima em brilhar individualmente. Estava correio Chesterton quando afirmava: Há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos. Mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes. Foi isto que fez o semeador Jesus: enalteceu os pequeninos e deu cidadania ao povo humilde. Assim, o número de apóstolos cresce vertiginosamente: em Jesus são 12, segundo Lucas já são 70 (Lc 10.lss.), nas comunidades apostólicas já os encontramos às centenas. Também esta semente cresceu e produziu frutos, a trinta, a sessenta e a cem por um.
Por fim, caberia ainda uma breve reflexão sobre sementeira do Reino e aumento quantitativo de fiéis. Muitas igrejas trabalham hoje em dia com a tese de que Igreja que não aumenta em número de adeptos tem problemas, seja com a pregação, seja com a prática da fé. A pressuposição é: o evangelho traz salvação para corpo e alma e, se essa salvação realmente funciona, ela também realmente atrai e cativa, multiplica-se a trinta, sessenta e cem. Sabemos todos que isso nem sempre é assim, que muitas vezes quantidade ainda não significa qualidade. Contudo, pelo menos nos inícios do ministério de Jesus, ouvimos que multidões o procuravam, afluíam à sua casa e seguiam-no para onde quer que fosse. De forma semelhante, Lucas, no livro de Atos, sabe narrar orgulhoso que num só dia o número de fiéis foi acrescido de quase 3.000 pessoas e que o Senhor acrescentava à comunidade primitiva dia a dia os que iam sendo salvos (At 2.41,47). 'leria Jesus contado a sua parábola também sob o impacto quantitativo que sua pregação exercia sobre o número de fiéis? Se isto for verdade, a parábola poderia reverter numa sadia autocrítica de igrejas estagnadas e tradicionais, em que o ardor missionário se apagou e os frutos do Reino secaram.
3. A Parábola do Semeador em Mateus
Mateus, ao contrário de Marcos, não distingue quantitativamente entre as três sementes que nada produziram e as outras que deram muito fruto. Ele fala de todas as sementes, também da última, no singular. No final da história, distingue-se de Marcos mais uma vez: a última semente produz a cem, sessenta e trinta por um (13.8); os números aparecem, pois, em ordem decrescente. Mateus não acentua mais o contraste original da história; para ele as várias sementes reproduzem situações paralelas, embora diferenciadas quanto à produção de frutos.
Segundo Luz (pp. 311ss.), Mateus leu a parábola totalmente dentro da perspectiva da interpretação que lhe havia dado a comunidade primitiva (cf. Mt 13.10-23). As várias sementes representam vários tipos de ouvintes da pregação de Jesus: uns não a assimilam, outros a assimilam, mas só passageiramente, outros ainda a rejeitam por dificuldades externas e os últimos, finalmente, a aceitam; estes são os que a fazem frutificar.
Tanto o uso do singular para todas as quatro sementes quanto a enumeração decrescente dos frutos no v. 8 parecem indicar um interesse na sobriedade. O Evangelho de Mateus acentua muito o dar frutos (3.8,10; 7.17-19; 13.26; 21.43). Ele vive, contudo, a realidade de uma comunidade em que o amor tendia a esfriar (24.12) e em que muitos exclamavam religiosamente Senhor, Senhor, sem, porém, fazer a vontade de Deus (7.21-23). Dentro dessa situação, compreende-se que seu interesse em alertar para as dificuldades de assumir a palavra do evangelho (vv. 4-7) seja quase tão marcante quanto sua alegria em constatar os frutos que este provocava nos ouvintes receptivos às suas exigências (v. 8).
4. Pregação
Pelo que vimos, a grande multiplicação de frutos desencadeada pelas sementes do Reino pode ser observada em várias direções. Neste sentido, a parábola tem uma natureza polivalente, pois também o reino de Deus é polivalente, querendo ocupar todos os espaços de nossa vida individual, comunitária e social.
Como se multiplicam as sementes do Reino em nossas comunidades? Quais se multiplicam mais, quais menos? Quais temos mais facilidade em vivenciar e a quais ainda oferecemos as maiores resistências? E por que resistimos mais a algumas sementes do que a outras?
Cada comunidade terá respostas bem particulares e circunstanciais para essas perguntas. O/a pregador/a, conhecendo a comunidade, saberá escolher os melhores ganchos que a situação específica do seu trabalho ofereça. O que não deveria faltar na prédica é aquela alegria que respiram os vv. 8 de Mc e Mt por causa dos frutos alcançados. Talvez em muitas comunidades não se possa ainda computar uma multiplicação de trinta, sessenta e cem por um. Devería-mos, contudo, nos alegrar pelos frutos, mesmo com multiplicações de três, oito e 12 por um, pois a parábola já foi expressão dessa certeza, a saber, de que as sementes da justiça do Reino germinariam e se multiplicariam bastante.
5. Bibliografia
JEREMIAS, J. As Parábolas de Jesus. 2. ed. São Paulo, Paulinas, 1978.
LUZ, U. Das Evangelium nach Matthäus (Mt 8-17). Neukirchen, Neukirchener, 1990. (EKK 1/2).
MYERS, C. O Evangelho de São Marcos. São Paulo, Paulinas, 1992.
WEDER, H. Die Gleichnisse Jesu als Metaphern. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1978. (FRLANT, 120).