Prédica: Romanos 3.19-28
Leituras: Isaías 62.6-7,10-12 e João 8.31-36
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Dia da Reforma da Igreja
Data da Pregação: 31/10/1996
Proclamar Libertação – Volume XXI
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O Dia da Reforma é feriado em apenas poucos municípios do País. Afinal, ele serve para quê? Para homenagear os protestantes? Para trazer à memória a dolorosa divisão da Igreja ocorrida no séc. XVI? Ou, ainda, para cumprir um mero dever histórico? Apesar dos questionamentos, possivelmente reforçados por sensibilidades ecuménicas hoje, a Comunidade Evangélica tem fortes razões para não deixar passar a data em brancas nuvens. Se não estiverem previstos nem culto nem outra solenidade, recomenda-se resgatar a lembrança em outra ocasião.
Por que tal ênfase? Ora, porque o Dia da Reforma possui todas as características de um Dia da Penitência. Não quer glorificar os luteranos nem tão-somente homenagear os grandes reformadores do passado. Quer contagiar, isto sim, com a causa que eles defendiam. Eu diria assim: o Dia da Reforma é o Dia do Recurso ao Evangelho. Foi isto o que Lutero e seus companheiros de luta sempre pretendiam, a saber, reconduzir a Igreja às suas origens e assim extirpar os abusos que nela se haviam instalado. Reforma e penitência são fenômenos correlacionados. Um não existe sem o outro. Por isto o Dia da Reforma tem aspectos incómodos. Conscientiza da necessidade de corrigir defeitos, a que tanto as pessoas quanto as instituições costumam resistir. Quem, porém, evita as reformas e as bloqueia, perde o bonde da história, torna-se obsoleto e disfuncional, põe em risco o futuro.
O chamado à penitência, implícito no Dia da Reforma, não exclui outras dimensões. Somos gratos pelo fato de Deus constantemente cutucar sua Igreja e lhe dar novos impulsos, mesmo castigando-a por suas falhas, como o retrospecto histórico ensina. Agradecemos pela rica herança espiritual que a Reforma nos legou, pela liberdade que trouxe, pela renovação que promoveu. Sobretudo, porém, é importante aquela redescoberta do evangelho a que nos referimos. Está vinculada inseparavelmente à mensagem da justificação por graça e fé. Lutero a considerou o artigo com o qual a Igreja permanece ou sucumbe. É a síntese do evangelho e a base da identidade luterana. Arriscamo-nos até a dizer que toda reforma, na Igreja ou na sociedade, permanecerá parcial, se não tiver esta verdade por parâmetro direto ou indireto. Em que se apoia tal afirmação audaciosa?
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O alcance da justificação será percebido apenas se ela for entendida como aquele ato mediante o qual é dada a razão de ser à pessoa humana. Justificar é sinónimo de valorizar, devolver dignidade, outorgar o direito à vida. A tradução comum por aceitar é correia, mas fraca. Exemplo da pessoa justifi¬cada por graça e f é é o filho pródigo na parábola de Jesus. Tinha jogado fora sua dignidade de filho (Lc 15.18,19). Entretanto, arrepende-se. Refugia-se junto a seu pai, em cuja misericórdia acredita. E este, milagrosamente, o reinstitui nas honras perdidas. Justificação é nova criação, comparável à ressurreição dos mortos (Lc 15.32).
Não se trata de um fenómeno religioso apenas. Justificação é um processo corriqueiro e, aliás, fundamental no convívio humano. Todos dependemos de justificação, ou seja, precisamos ter reconhecida e atestada nossa razão de ser, de viver e consumir por parte das pessoas a nosso lado. Existe um déficit de justificação na sociedade. Ou melhor, a sociedade justifica (valoriza) as pes¬soas predominantemente pelo critério da produção, da utilidade, do poder que têm. Quem não mais produz, está sobrando. Quem não tem para gastar, nada vale. Quem tropeçou ou não consegue se impor, vê-se privado das chances. É o domínio da lei das obras. O valor e os direitos das pessoas se medem pelas suas capacidades.
Deus, porém, justifica por graça. Dá razão de ser sem considerar méritos. Compadece-se de sua criatura mesmo que ela esteja afundada em culpa, miséria ou desespero. Na justificação está implícito o perdão dos pecados. Mas este é apenas um aspecto de um processo bem mais abrangente. Justificação é a dignificação do ser humano, sua reinvestidura na qualidade de filho ou filha de Deus, é a concessão de um novo status. E isto por pura misericórdia divina. Ela se manifestou concretamente em Jesus Cristo, de modo que a justificação acontece através dele. Resta ao ser humano aceitar e assimilar o dom gratuito de Deus na atitude da fé que inaugura um andar em novidade de vida.
A justificação por graça e fé não anula a lei das obras. O juízo de Deus não deixará de retribuir a cada um segundo o seu procedimento (Rm 2.6). A graça não pode ser transformada em direito adquirido. Ela sempre será milagre e é concedida justamente pelo Deus juiz. Graça, por definição, é algo não-merecido. Jamais permite ser reduzida a mercadoria barata. O ser humano continua estando sob a exigência de Deus. Deve cumprir a vontade divina e por isto também produzir e trabalhar para comer. As obras da lei não são abolidas. Mas elas são relativizadas. O que em última instância decide sobre o valor das pessoas não são os índices de sua produção religiosa, moral, intelectual ou económica, e sim a misericórdia de Deus. É ela que decide sobre o direito de viver das pessoas, sejam elas pobres, criminosas, fracas, ricas ou poderosas. Indico apenas duas consequências desta constatação:
1. A graça de Deus coloca padrões para a ética social. É proibido ao ser humano desprezar e marginalizar o que Deus justificou e revestiu da mais alta dignidade. Evidentemente, a sociedade não pode transformar a gratuidade em princípio económico. Gratuidade não é princípio, nem mesmo religioso. Entretanto, em consideração ao amor de Deus que se dirige indistintamente a bons e maus (cf. Mt 5.45; Rm 4.5), cabe à humanidade reservar um lugar de vida digna a cada um de seus membros. A justificação por graça fundamenta direitos humanos — não diante de Deus, mas diante dos homens.
2. A graça de Deus liberta o ser humano da coação de demonstrar seu valor pela exibição de obras. Estas são importantes, mas não decisivas. Jamais as obras poderão dizer quem realmente somos. Confessa o apóstolo Paulo: Pela graça de Deus sou o que sou (l Co 15.10). Por isto, quem crê, saberá agradecer a Deus. Simultaneamente vai relacionar-se de maneira nova com o seu próximo. Este, de concorrente, passa a ser irmão e irmã. A justificação por graça e fé conduz a um novo culto a Deus e a uma nova convivência humana, cujo campo de exercício será antes de mais nada a Comunidade Evangélica.
O apóstolo Paulo foi o primeiro a condensar o evangelho na forma da justificação por graça e fé. No entanto, a mensagem é comum a todo o Novo Testamento. O agir de Jesus foi justificação, e é nela que se resume o reino de Deus. Libertação é uma dimensão da justificação, não algo próprio ao lado dela. Lutero teve razão ao excluir a justificação por graça e fé dos artigos discutíveis. Ela é o critério da boa teologia e, diga-se à parte, da mais alta relevância justamente no contexto latino-americano. Essa mensagem responde ao clamor por misericórdia num mundo extremamente brutal e desumano. É o anseio que Lutero articulava na pergunta: Como consigo um Deus misericordioso? A experiência da condenação, ou seja, exclusão, é forte em nosso continente, e a graça continua sendo a exceção. Do mesmo modo a mensagem da justificação responde ao anseio por dignidade numa época em que o ser humano mais e mais é reduzido a objeto descartável e sofre sob a síndrome da insignificância.
Não é possível esgotar as profundezas da justificação neste espaço. Faço votos de que algo de sua envergadura tenha ficado claro. Está na hora de o protestantismo reativar sua herança reformadora e revisar sua agenda de trabalho sob esta perspectiva, sempre no espírito do compartilhar ecuménico de recursos.
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O texto de Rm 3.19-31 é um dos documentos básicos da compreensão de justificação em Paulo. Já que o mesmo texto havia sido proposto para a prédica no Dia da Reforma do ano passado, serei breve na exegese. Remeto à meditação do colega A. E. Kunert, em Proclamar Libertação 20, 1994, pp. 278ss., e à de L. Weingärtner em PL III, 1978, pp. 263ss. (ambas sobre Rm 3.19-28). Distingo três partes neste texto:
1. Vv. 19-20: Estes dois versículos concluem o bloco 1.18-3.20, cujo tema é a culpabilidade de todo ser humano diante de Deus. As obras da lei não conseguem fundamentar a razão de ser das pessoas, ou porque a lei é transgredida ou porque é abusada para a vanglória. A lei não justifica, antes põe a descoberto o pecado. Em síntese, Paulo afirma que o valor da pessoa diante de Deus não se define a partir de seu comportamento. No que respeita à vontade de Deus (= a lei), somos sempre devedores (= pecadores). A dignidade que Deus nos atribui provém de outra fonte.
2. Vv. 21-26: Essa fonte é a graça de Deus. E ela tem nome: Jesus Cristo, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação… (v. 25). A morte de Jesus está sendo interpretada nos termos sacrificais da época como demonstração da misericórdia divina a pessoas que carecem da glória de Deus (v. 23). Um milagre está sendo anunciado: Deus demonstra sua fidelidade (= justiça) à criatura, devolvendo-lhe a identidade perdida de filho ou filha. Importa tão-somente acolher a dádiva de Deus, o que se dá mediante a fé em Jesus Cristo (v. 22).
3. Vv. 27-31: Paulo tira uma primeira consequência. Se Deus justifica por graça, não mais há de que o ser humano pudesse gloriar-se. Ninguém tem privilégio diante de Deus, seja judeu ou gentio, seja cumpridor ou transgressor da lei. Para todos há um só caminho da salvação: a graça de Deus e a fé da pessoa que lhe responde. A lei de Deus continua válida (v. 31). Mas as obras da lei não justificam ninguém. O valor do ser humano decorre não de suas façanhas, conquistas e realizações, e sim do amor que Deus devota à sua criatura.
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Que devemos pregar no Dia da Reforma? Ora, liberdade evangélica a partir da justificação por graça e fé. A misericórdia de Deus, revelada em Jesus Cristo, liberta de culpa e pecado, de insignificância e marginalidade, de angústia e falta de perspectiva. Nos termos deste texto: Deus concede ao ser humano a nobreza de que este carecia (v. 23). Ele o eleva à categoria de parceiro seu com todas as responsabilidades e liberdades inerentes a esta dignidade. Ele o coroa de graça e misericórdia (Sl 103.3).
Isto é provocação num mundo preso à lei das obras. Prevalece entre nós por demais jactância (v. 27), que é fruto desta lei e que responde por inúmeras divisões e conflitos. Ela produz vítimas em todos os níveis, no religioso, cultural e econômico. Seja repetido que a gratuidade não pode ser transformada em sistema. Seria a sua perversão. Na indústria, no comércio, na educação e mesmo na Igreja os índices de produção não podem deixar de determinar os direitos das pessoas. No entanto, e isto é fundamental, somente até certo limite. O desrespeito a este limite, traçado pela misericórdia de Deus, é crime. Que significa isto em termos concretos?
A prédica poderia partir da pergunta: Qual é a diferença que a graça de Deus produz na vida humana? Suponhamos uma vez que essa graça tão em evidência neste texto seja mera imaginação. Como seria o mundo sem misericórdia divina? Quais seriam, então, o valor, a dignidade, o futuro do ser humano? Como trataríamos a questão de nossas fraquezas, falhas e fracassos? Num segundo passo deveria ser anunciada a realidade da justiça de Deus (v. 21) em Jesus Cristo, ao que se seguiriam, numa terceira parte, reflexões sobre a novidade de vida, individual e social, daí resultante. Pois a graça de Deus, se acolhida pela fé, faz enorme diferença, que, aliás, consiste não tanto em novos imperativos, e sim muito mais em nova liberdade.
5. Subsídios Litúrgicos
Confissão dos pecados: Senhor, lamentamos não haver, entre nós, mais coragem da fé, mais confiança em teu poder, mais paixão por tua palavra. Estamos por demais apáticos frente aos problemas dos outros, e não raro até contribuímos para o crescimento do mal. Senhor, tu que enxergas não a fachada, e sim o coração, e que sabes das nossas fraquezas, perdoa-nos a culpa. Tem compaixão de nós.
Oração de coleta: Senhor, queiras manter-nos na tua verdade. Preserva-nos a tua palavra para que ela nos fortaleça, purifique, una. Faze com que sejamos realmente tua Igreja, sal da terra e luz do mundo.
Intercessão: Senhor, nós te agradecemos por tua misericórdia. Ela é o consolo em nossas aflições, a força em nossas fraquezas, o estímulo em nosso desânimo. Ela nos reúne em comunidade e nos faz interceder uns pelos outros. Por isto:
Nós te pedimos pelos pobres de espírito, para que não desanimem. Sua luta não é em vão, já que a eles prometeste o reino dos céus.
Nós te pedimos pelos que choram. Cumpre-lhes a promessa de que serão consolados.
Nós te pedimos pelos mansos que renunciam à violência. Faze com que deles seja o governo na terra.
Nós te pedimos pelos que têm fome e sede de justiça. Dá-lhes paciência e resistência, para que não se resignem antes de verem cumpridos os seus anseios.
Nós te pedimos pelos misericordiosos que dão tempo, dinheiro e forças por gente necessitada. Que continuem a desafiar o desamor em nosso mundo e experimentem ricamente a tua misericórdia.
Nós te pedimos pelos limpos de coração. Aumenta-lhes o número. Queremos estar entre eles e ver a tua face.
Nós te pedimos pelos pacificadores. Dá sucesso a seus esforços para que a paz se instale onde os conflitos matam e produzem sofrimento. Lembra-nos constantemente que quem trabalha pela paz será chamado teu filho e tua filha.
Nós te pedimos pelos perseguidos por causa da justiça, pelas pessoas hostilizadas em razão de sua inconformidade com a corrupção e o crime. Nós nos solidarizamos com elas e juntos buscamos o reino dos céus.
Senhor, obrigado pelas bem-aventuranças. Vem trazer o teu Reino.
Hino sugerido: Hinos do Povo de Deus (HPD), no 155.
6. Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. A Justificação por Graça e Fé em Paulo e Sua Relevância hoje. Estudos Teológicos, 16:3ss., 1976.
—. Rechtfertigung in einer ungerechten Welt. In: LWB-Dokumentation. Genf, Lutherischer Weltbund, 1992. v. 31, p. 6ss.
IWAND, Hans Joachim. A Justiça da Fé. São Leopoldo, Sinodal, 1977.
MAY, Gerhard. Römer 3,21-28 (meditação). In: Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart, Calwer, 1980. v. II/B, p. 274ss.