Prédica: 1 Coríntios 3.16-23
Leituras: Ezequiel 34.11-16 e Marcos 8.27-35
Autor: Nélio Schneider
Data Litúrgica: Dia dos Apóstolos Pedro e Paulo
Data da Pregação: 29/06/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
Não será assim entre vocês! Pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vocês deverá ser servo e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo de todos. Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. (Jesus Cristo.)
1. Introdução
Divide e impera! Quem não conhece esta famosa frase de César (ou seja lá de quem for)? Pois o nosso texto trata justamente da questão da divisão provocada por falsas lideranças ou por uma compreensão falsa do que seja liderança. Neste dia consagrado especialmente aos apóstolos Pedro e Paulo é muito oportuno refletir sobre esse assunto na tentativa de clarear nosso ponto de vista a respeito. Numa realidade onde a maioria aposta tudo em salvadores da pátria'' e investe sua vida nos becos sem saída do individualismo e partidarismo mesquinhos, cabe a indagação: tem de ser assim ou temos, como comunidade cristã, uma proposta melhor?
A formação de grupos dentro da comunidade até é vista por Paulo como algo positivo, para que se possa ter uma ideia de qual é o melhor caminho a seguir (l Co 11.19). No entanto, quando a formação de grupos divergentes leva a divisões, perde-se de vista a verdadeira sabedoria, abandona-se a busca do caminho melhor e parte-se para o caminho próprio. Neste momento é preciso apontar novamente para o único guia, ao qual todos os grupos, apesar de suas divergências, devem seguir.
Exatamente neste ponto o texto de l Co 3 recebe uma luz forte e orientadora dos textos de leitura. O texto de Ez 34.11-16 aponta enfaticamente para o autor da salvação: o eu mesmo e os verbos na 1a pessoa do singular reforçam a iniciativa da ação do próprio Javé. Ele é o autor da salvação, do qual em última análise dependemos e pelo qual nos orientamos. Por isso, para além de todas as discordâncias, uma confissão decidida nos une: a confissão de Pedro e dos demais apóstolos:' Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo!'' (Mc 8.27-35; compare Ef 4.4-6).
É o Cristo crucificado e ressuscitado, escândalo para os judeus e loucura para os gregos, que forma o fundamento da unidade na comunidade. Não são as lideranças que representam a instância última, mas Cristo mesmo. Os líderes, por mais importantes que sejam, são instrumentos a serviço do Cristo crucificado e ressurreto. Ou melhor: a importância dos líderes vem do fato de serem servos de Jesus Cristo. Não é a eloquência dos líderes carismáticos que determina a validade do caminho cristão ou torna mais verdadeira a mensagem, mas o conteúdo desta: a palavra da cruz, do sofrimento, da solidariedade com quem é fraco, pequeno e excluído.
2. O Contexto Literário de l Co 3.16-23
Os primeiros quatro capítulos de l Co são dedicados a resolver um mal-entendido dos membros da comunidade cristã de Corinto a respeito da liderança cristã. Formaram-se na comunidade grupos em torno da liderança de pessoas proeminentes, mais especificamente de Apolo e Paulo (veja 1.12; 3.4,22; 4.6; Cefas é mencionado somente em 1.12 e 3.22, na primeira passagem ao lado de Cristo, de modo que é provável tratar-se de um exemplo a mais citado por Paulo sem que tenha ligação concreta com a comunidade de Corinto).
Fica evidente, a partir do texto, que os coríntios prezavam num líder especialmente as demonstrações de sabedoria, poder e eloquência. Com a primeira parte de sua carta, Paulo procura colocar em discussão outros valores referentes a esse tema, afirmando, em suma, que a essência do evangelho — portanto, também da liderança — não está na demonstração de poder, sabedoria e eloquência. O evangelho é palavra da cruz e sua expressão é, para os padrões humanos, fraqueza, loucura e simplicidade no falar. Mas, da perspectiva de Deus, justamente isso é sinal de poder, sabedoria e plenitude de sentido. Como palavra da cruz, o evangelho é uma notícia simplesmente escandalosa. Para quem chega à fé torna-se a boa nova da salvação. O efeito salvador do evangelho não consiste na grandiloqüência da apresentação, mas na aceitação simples e incondicional do escândalo da cruz como evento salvador da parte de Deus. Portanto, a proclamação não tem a função de colocar o pregador no centro das atenções, mas apontar para a cruz de Cristo. Paulo assume a mesma postura de João Batista nos evangelhos sinóticos: convém que ele cresça e que eu diminua. A pregação é o dedo indicador de João Batista apontando para o Cristo crucificado naquela famosa pintura de Matthias Grünewald.
A partir da perspectiva da cruz de Cristo, Paulo traça a opção preferencial de Deus pelas pessoas loucas, fracas, desprezadas e sem projeção na sociedade (1.26-29: aqui realmente opção preferencial, pois há também os poucos sábios, poderosos e bem situados). Portanto, a sabedoria e a força de Deus são de outra natureza que a sabedoria e a força segundo os padrões humanos. A maior prova disso é a crucificação de Cristo por parte da classe dirigente da época. Se ela pudesse, por meio de sua sabedoria e força, conhecer a Deus, certamente não teria crucificado a Cristo (2.6-8).
A dimensão real da força que uma pessoa de liderança pode ter vem do Espírito Santo; é, portanto, dádiva de Deus e não qualidade pessoal a recomendar o líder. Toda demonstração cristã de poder e sabedoria tem sua origem no Espírito Santo, o que evita o personalismo da liderança e rejeita a dependência em relação à mesma. Em outras palavras: a liderança é um dom e não uma forma de promoção pessoal; a existência do evangelho e mesmo da comunidade não depende da liderança.
A partir dessa base de argumentação, Paulo se dedica, nos caps. 3 e 4, a definir exatamente o papel de quem está a serviço do evangelho na comunidade na qualidade de apóstolo. Desloca-se a perspectiva: não mais liderança nos termos colocados pelos coríntios ao correrem cada um atrás de uma das pessoas proeminentes que passaram pela comunidade, mas serviço (diakonoi — 3.5) de acordo com a capacidade dada a cada uma por Deus. Cada uma dessas pessoas exerce funções complementares, são cooperadores numa mesma obra, construtores especializados de um edifício que não é seu, mas de Deus, agricultores a lavrar uma roça que não é sua, mas de Deus. Dessa forma estão excluídas a concorrência e a promoção pessoal. Se a contribuição de alguém é de boa ou de má qualidade, isso vai ser revelado no dia derradeiro. A qualidade do serviço certamente também é importante; mas mais importante é o esforço despendido na perspectiva correta, ou seja, jamais como forma de promoção pessoal, mas como serviço a Deus.
Nessa linha, o cap. 4 coloca os apóstolos como servos de Cristo e administradores dos mistérios de Deus (4.1). Paulo dá testemunho do seu esforço nesse sentido e assume um tom de ironia em relação à compreensão dos coríntios a respeito do papel do apóstolo. Eles pensam em termos de reinar (4.8) e Paulo explica o que isso significa no seu caso: correr risco de vida, passar fome e sede, nudez e maus tratos, trabalho com as próprias mãos, etc. Em lugar de ser o primeiro, o mais importante, ele tem a sensação der ser o último, escória de todos (o que lembra a palavra de Cristo em Mc 10.42-45).
3. O Texto de l Co 3.16-23
O texto da pregação se enquadra dentro da linha de pensamento esboçada acima, aplicando o princípio elaborado nos dois capítulos anteriores especificamente ao partidarismo coríntio. Essa aplicação se dá em forma de exortação à mudança de pensamento sobre a questão em pauta, invertendo a lógica coríntia. Mas vamos observar o texto em detalhes.
Os vv. 16 e 77 na verdade se apresentam como uma conclusão do trecho imediatamente anterior, dos vv. 10 a 15, onde Paulo fala da edificação da comunidade usando a figura da construção de uma casa. Nestes trala-se da qualidade da contribuição efetiva de cada um na construção; fica claro que há uma diferença entre a obra de cada pessoa e ela própria no que diz respeito ao julgamento final (sobre esse texto veja a contribuição de Werno Stiegemeier em Proclamar Libertação, vol. XV, p. 266ss.). Nos vv. 16s. Paulo modifica a perspectiva da abordagem, formulando uma variação em torno do mesmo assunto: trata-se da construção como casa de Deus e morada do Espírito Santo, portanto como casa santa, templo. Fica claro que ele não se refere a cada pessoa cristã individualmente, mas ao coletivo, i. é, à comunidade como um todo (Paulo usa três vezes a 2a pessoa do plural!). A casa edificada por Deus para ser morada do seu Espírito é a comunidade.
Posto isso, Paulo chega à afirmação que motivou o uso da metáfora do templo: há quem esteja destruindo a casa santa de Deus em vez de contribuir na sua construção. Paulo não cita nomes, mas claramente alude àquelas pessoas que dividem a comunidade. Nos capítulos anteriores ficou claro que são essas mesmas que, talvez até com as melhores intenções, promovem o personalismo da fé e assim desagregam a casa de Deus. A ação dessas pessoas é de qualidade diferente da daquelas que dão uma contribuição malfeita na edificação da comunidade. O v. 15, referindo-se às últimas, dá a entender que, mesmo que a contribuição destas não subsista a um exame mais rigoroso por parte de Deus, elas mesmas não sofrerão prejuízo no que diz respeito à sua salvação. Diferente é a ação de quem destrói em vez de construir. Contra essas pessoas Deus mesmo reage, destruindo-as (v. 17b). Paulo pensa em termos da santidade: tocar na comunidade de Deus é tocar no sagrado. Quem divide toca na própria existência de Deus. Há que diferenciar entre aquelas pessoas que fazem algo malfeito e aquelas que desfazem algo que está feito.
Portanto, os vv. 16 e 17 representam uma advertência duríssima a qualquer tipo de liderança comunitária que não tenha em vista a integridade da comunidade, mas siga caminhos de auto-edificação e promova o personalismo. No entendimento de Paulo, essas pessoas estão afrontando diretamente o próprio Deus. Estão se apossando da casa de Deus para finalidades próprias, nada santas.
Nos vv. 18 a 23 Paulo faz um apanhado sintético e conclusivo do que vinha expondo desde o primeiro capítulo da carta. Essa síntese caracteriza-se por duas inversões sintomáticas:
a) A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus (v. 19): trata-se da clara inversão do que foi constatado em 1.20-25, a saber, que a sabedoria de Deus é loucura para o mundo. Por isso, ninguém deve se iludir: não são os padrões do mundo que determinam a qualidade da liderança cristã, mas os padrões de Deus. De acordo com isso, quem quiser ser sábio no sentido de Deus necessariamente se tornará louco na compreensão usual do termo. Torna-se louco para ser sábio. Então, o caminho não está em se amoldar aos padrões da sociedade atual, mas justamente transformar-se de acordo com a mente do Espírito de Deus (Rm 12.2). A mentalidade geral ou a sabedoria deste mundo é vá esperteza. Paulo fundamenta esse pensamento com duas passagens da sua Bíblia: Jó 5.12s. e SI 93.11 (nesta ele altera a palavra pessoas para sábios, reforçando o sentido do que vinha afirmando). Deus mesmo desmascara a sabedoria deste mundo através da palavra da cruz, o evangelho de Jesus Cristo. Por isso, não há motivo para vangloriar-se com base nas qualidades pessoais de alguém, independentemente de quais sejam elas e de quem as tenha.
b) Tudo é de vocês, seja Paulo, seja Apoio, seja Cefas (…), tudo é de vocês (vv. 21b-22): inverte-se aqui a frase indicativa das posturas divisionistas, isto é, eu sou de Paulo, eu sou de Apoio, eu sou de Cefas (1.12). A comunidade não é de Paulo, Paulo é que é da comunidade. A liderança é da comunidade, não a comunidade da liderança. Vocês são de Cristo (v. 23) e de ninguém mais. Paulo pressupõe aqui a liberdade da comunidade em relação a qualquer coisa sob o sol. Qualquer dependência da comunidade conflita com a ligação com Cristo. Por isso, em Cristo, a comunidade é autónoma em relação a pessoas, quaisquer que sejam; ela tem liberdade em relação a qualquer coisa no mundo, em relação à vida e também à morte, em relação ao presente e ao futuro (compare Rm 8.38). Aqui proclama-se o genuíno evangelho de Cristo na formulação paulina: Foi para a liberdade que Cristo os libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão (Gl 5.1). A comunidade cristã é livre e soberana sobre todas as coisas. Por isso não há razão para cair na dependência de pessoas que causam divisão. Não é esse o caminho da sabedoria de Deus. A submissão da comunidade pertence a Cristo, assim como a de Cristo pertence a Deus (v. 23; compare l Co 15.28).
Com estas duas decisivas inversões de valor Paulo procura atrair os membros da comunidade de Corinto para a lógica de Deus, que não escolheu entre eles muitas pessoas sábias, influentes e de boa família, mas preferiu as loucas, fracas e desprezadas. A estas ele tornou soberanas sobre tudo. A quem nada tinha, ele deu tudo por sua graça. Presenteou-lhes a pertença à comunidade, à casa de Deus. Tornou-as livres para assumirem sua história e agirem com a liberdade de filhas e filhos de Deus. De modo nenhum se justificam a desistência da ação livre e a entrega da liberdade e da responsabilidade próprias nas mãos de lideranças, por mais qualificadas que venham a ser. Paulo incentiva a comunidade a assumir com todas as consequências a sua nova existência. Também na questão da liderança não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12.2).
4. Impulsos para a Pregação
O texto de leitura de Ez 34.11-16 lança luz sobre a nossa realidade; ele é precedido, nos vv. 1-10, pela crítica veemente aos pastores de Israel, ou seja, aos líderes, às autoridades do povo:
Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel: (…) Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! (…) Vós vos alimentai com leite, vos vestis de lã e sacrificais as ovelhas mais gordas; mas não apascentais o rebanho! Não restaurastes o vigor das ovelhas abatidas, não curastes a que está doente, não tratastes a ferida da que sofreu fratura, não reconduzistes a desgarrada, não buscastes a perdida, mas dominastes sobre ela com dureza e violência. (Versão da Bíblia de Jerusalém.)
Assim como naquela época as autoridades eram um exemplo de como não devia ser a liderança de um povo ou de uma comunidade, também na época atual vemos as autoridades preocuparem-se primordialmente com seus assuntos particulares às custas do sangue e suor do povo.
Exemplo:
(…) como provou o Congresso ao votar mais uma etapa da reforma da Previdência, na quarta-feira 19 [de junho de 1996]. Os deputados mantiveram os privilégios dos funcionários públicos, de juízes e, claro, os deles mesmos. Ganham tão bem quanto um parlamentar belga e ainda se acham no direito de preservar o Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC), que usa dinheiro público para lhes garantir pensões após oito anos de mandato. Na única mudança importante, cortaram a correção monetária das aposentadorias do INSS. Ou seja, tiraram dos únicos que não poderiam perder mais nada. (Editorial Cegueira social, Istoé, n 1.395, de 26/06/96, p. 11.)
Tanto o texto de Ezequiel quanto a palavra do evangelho apontam para Deus e Jesus Cristo como espelho para a liderança de um povo ou de uma comunidade e desaconselham tomar o modelo vigente como exemplo:
Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e os seus grandes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês! Pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vocês deverá ser servo e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo de todos. Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida cm resgate por muitos. (Mc 10.42-45.)
Dietrich Bonhoeffer inspirou-se nessas palavras de Jesus ao formular o que se segue:
Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva. (Mc 10.43) (…) Autoridade espiritual autêntica só existe onde é cumprido o serviço de ouvir, servir, suportar e pregar. Todo e qualquer culto da personalidade que abrange qualidades excepcionais, capacidades, poderes e talentos extraordinários do outro — ainda que sejam de ordem espiritual — é mundano e não tem lugar na comunhão cristã, antes envenena-a. O tão frequente anseio de nossos dias por ritmas episcopais, homens sacerdotais, personalidades com autoridade nasce, não raro, da necessidade espiritual mórbida de admirar homens, de estabelecer autoridade humana visível, porque lhes parece ser demais a autêntica autoridade de servir. (…) O desejo por autoridade falsa, em última análise, nada mais quer do que erigir novamente na Igreja uma imediatez, uma dependência de homens. (…) Não é de personalidades brilhantes que uma comunidade precisa, mas de fiéis servidores de Jesus e dos irmãos. (Dietrich Bonhoeffer, Vida em Comunhão, 2. ed., São Leopoldo, Sinodal, 1986, p. 75s.)
Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir (compare Fp 2.1-11 com Rm 12.3,7-8).
5. Bibliografia
Os textos bíblicos são citados do NOVO TESTAMENTO, Nova Versão Internacional (NVT), 1993, da Sociedade Bíblica Internacional.
FASCHER, Erich. Der erste Brief des Paulus an die Korinther; erster Teil. 3. ed. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1984. 199 p. (Theologischer Kommentar zum Neuen Testament, 7/1).
HOEFELMANN, Verner. Corinto: Contradições e Conflitos de uma Comunidade Urbana. Estudos Bíblicos, Petrópolis, no. 25, 1990, p. 21-33.
SCHRAGE, Wolfgang. Der erste Brief an die Korinther; (IKor 1,1-6,11). Zürich, Benziger; Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1991. 436 p. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament, VII/1).