Prédica: Efésios 4.1-7,11-16
Leituras: ĂŠxodo 24.3-11 e JoĂŁo 6.1-15
Autor: Werner Fuchs
Data LitĂşrgica: 10Âş. Domingo apĂłs Pentecostes
Data da Pregação: 27/07/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
Â
DESAFIO
(Para Nicole, que luta comprometida com o povo, em vista do mundo novo.)
Nas mĂŁos do povo,
nas lĂnguas da histĂłria,
o desafio -da nova sociedade.
Como se descama o peixe,
e com sal se devolve o gosto ardente
que sacia a fome aguda
de quem navega a liberdade,
assim os pequenos-oprimidos,
em passos de esperança,
arrancarĂŁo da nossa histĂłria
o medo
e, com palavras vivas
de quem luta e canta e clama,
nutrirĂŁo as entranhas do tempo
com o sangue do direito
e da justiça.
Homens e mulheres.
cada ser do universo,
construirão o movimento inesgotável
da libertação definitiva.
Sampaio, 29-12-82 Josimo Morais Tavares
1. Cosmologia
A visĂŁo predominante no Novo Testamento Ă© a de um mundo em forma de edifĂcio de trĂŞs andares: cĂ©u, terra e mundo inferior (inferno). Mas na Carta aos EfĂ©sios encontramos uma compreensĂŁo diferente: a superfĂcie da terra (em forma de prato ou disco) Ă© coberta por esferas, ou melhor, por hemisfĂ©rios superpostos, os cĂ©us. Tudo o que existe estende-se da terra para dentro desses cĂ©us, onde residem os seres e as potestades cĂłsmicas. Como nĂŁo existe inferno, tambĂ©m o diabo age acima da terra, na primeira camada, ou primeiro cĂ©u, nos ares (Ef 2.2). No cĂ©u mais alto está entronizado Deus, e junto dele, Cristo, que, aliás, preenche todas as coisas (4.10). Assim, coisas e pessoas nĂŁo sĂŁo consideradas conforme sua essĂŞncia, como no pensamento grego, mas sim conforme suas relações, sua extensĂŁo para dentro do cosmos. TambĂ©m a Igreja, como corpo de Cristo, tem dimensões cĂłsmicas (1.22). Seus membros, ligados ao poder mais alto e movimentando-se em direção a Cristo, o cabeça, podem opor-se Ă s potestades, mesmo vivendo ainda sobre a terra. A visĂŁo espacial, de crescer para cima, portanto, quase substitui o pensamento temporal, de esperar para a frente, para o futuro. Observa-se, porĂ©m, que isso nĂŁo leva a uma compreensĂŁo estática de mundo, mas que fica preservado o dinamismo histĂłrico, de luta, de movimento em direção Ă libertação definitiva.
Essa cosmologia não é um elemento central do conhecimento para a auto-salvação de entes celestiais, como na gnose, mas apenas auxilia na articulação e compreensão de aspectos centrais da fé e do andar cristãos (p. ex., 2.8-10; para o exposto, cf. Conzelmann, p. 57).
Quanto às demais questões introdutórias e à exegese detalhada dos vv. 1-6, remeto a Kirst e Schmidt. Os vv. 11-16 (segundo Käsemann, p. 288s.) constituem na verdade uma ilustração do que foi dito nos vv. 7-10 sobre a graça onipresente e os múltiplos dons de Cristo dados a cada um. Isso permite que se tome por base o trecho todo dos vv. 1-16, sem excluir os vv. 7-10.
Por outro lado, podem-se considerar os dois blocos, vv. 1-6 e vv. 11-16, como mutuamente explicativos e corretivos. A escada de trĂades dos vv. 2-6 (cf. abaixo) exemplifica os passos do crescimento do v. 15. O segundo bloco, por sua vez, corrige uma possĂvel compreensĂŁo errada de unidade (vv. 4ss.) como uniformidade. 'Restringe o ecumenismo (ecumene = terra habitada) Ă unidade dos que crĂŞem (v. 13), contudo a multiplicidade dos carismáticos Ă© sinal do Cristo presente em sua comunidade (Käsemann, p. 288). Este autor tambĂ©m destaca que o trecho nĂŁo fala de objetos e cargos, mas de pessoas-dádivas (Schlatter), de sujeitos conduzidos nĂŁo por uma força impessoal, mas pela pessoa de Cristo. Os carismáticos sĂŁo (…) portadores da energia de Cristo, com a qual ele perpassa e preenche o cosmo Ămpio, sĂŁo estandartes da onipresença do Exaltado na terra. Justamente sua multiplicidade sem limites Ă© expressĂŁo de seu domĂnio total (Käsemann, p. 289). E neste Cristo que se baseia, ou melhor, está dependurada a unidade da Igreja em ação.
Penso que o v. 16, ao falar do corpo bem ajustado e consolidado e da justa cooperação na edificação localizada (de cada parte), ajuda atĂ© a avançar diante do impasse atual do movimento ecumĂŞnico e das igrejas, que buscam novas definições para a fĂłrmula da unidade na pluralidade (p. ex., koinonia, comunhĂŁo com diversidade, termo teologicamente profundo, mas menos Ăştil na prática). Pois na ação de transformação da realidade a nĂvel local Ă© preciso alto grau de coesĂŁo, atĂ© diria uma grande dose de uniformidade confessional, de identidade comunitária, que nĂŁo anula dons especĂficos, mas os subordina ao alvo, e que nĂŁo perde de vista a diversidade a nĂvel global e sistĂŞmico-cultural. É por isso que se requer hoje do cristĂŁo com uma visĂŁo de renovação, ou do agente pastoral vindo de fora, que tenham grande capacidade de inserção na conjuntura local, a fim de produzir mudanças a partir das condições dadas. É como o esquema tático do time que, para ser eficiente numa partida especĂfica, subordina rigorosamente as caracterĂsticas individuais de cada jogador, sem esquecer que há circunstâncias e momentos histĂłricos em que o jogo poderá e deverá ser outro. Exagerando um pouco, que tal localmente uniformes, globalmente diferentes?
2. Leitura
Através de uma ilustração gráfica expus a vários grupos de mulheres a visão de mundo da Carta aos Efésios. Comparamo-la brevemente com a noção atual do mundo em forma de bola, ou de laranja, que gira e se movimenta em torno do sol. Constatamos que na linguagem religiosa e no simbolismo que a permeia temos ainda hoje dificuldades de abandonar conceitos oriundos da visão de três andares (firmamento, em cima = céu, embaixo = inferno, subir, descer, etc). Com essas explicações iniciais estava aberto o caminho para o estudo de afirmações centrais.
Lemos 4.1-16 nas versões de Almeida e da BĂblia na Linguagem de Hoje. Conversando alguns minutos em duplas, as mulheres levantaram questões e dĂşvidas sobre o trecho.
Foram poucas as perguntas sobre questões tĂ©cnicas (p. ex., v. 1: prisioneiro = Paulo estava preso de fato por causa de sua atividade missionária, e v. 12: os santos = os cristĂŁos, cf. 1.1). No v. 8 constataram que a versĂŁo da BĂblia na Linguagem de Hoje Ă© pouco exata (levou prisioneiros em vez de levou cativo o cativeiro = venceu a morte). A partir da observação de uma pessoa sobre o v. 5 chegou-se Ă constatação de que ele contĂ©m expressões que podem ter sido usadas no culto, fĂłrmulas litĂşrgicas de aclamação, parecidas com palavras de ordem usadas em demonstrações e passeatas.
Em geral as questões se voltaram de imediato para aspectos práticos, vivenciais. P. ex., o que significa, no v. 14, ser como menino, agitado por ventos de doutrina? Estava colocado o problema do mercado religioso, de suas estratĂ©gias e artimanhas (= arapucas), das seitas, testemunhas de Jeová, Igreja Universal, etc. Cada uma tinha experiĂŞncias a contar. Foram citados casos de pessoas que saĂram da Igreja Luterana, passaram para uma Igreja legalista, deram-se mal, decepcionaram-se e agora tĂŞm vergonha de retornar. O que fazer para nĂŁo cometer os mesmos erros? NĂŁo temos uma postura de sermos a Ăşnica Igreja certa. Mas como ter firmeza na fĂ©? Algumas vozes falaram de ura apego rĂgido Ă tradição (uma sĂł fĂ©…, v. 5). O conjunto do trecho todo, porĂ©m, insiste no crescer! É importante notar, pois, que para o autor de EfĂ©sios o contrário de crescer na fĂ© nĂŁo Ă© ficar parado, estagnar, mas Ă© ser instável, volĂşvel, deixar-se arrastar por qualquer vento de proposta religiosa ou pseudo-religiosa.
O aspecto que, com exceção de um grupo, foi o mais vivamente discutido: o Batismo. Se o Batismo Ă© um sĂł, entĂŁo, pela BĂblia, Ă© errado rebatizar! Por que outras igrejas batizam de novo? Qual a compreensĂŁo de Batismo? Qual a forma certa? Por que a prática do Batismo de emergĂŞncia e por que o costume de enterrar crianças nĂŁo-batizadas num canto do cemitĂ©rio? Sem poder desenvolver uma teologia e um estudo interconfessional do Batismo, Ă© preciso destacar diferenças básicas, nĂŁo sĂł em relação Ă compreensĂŁo catĂłlica (da qual vĂŞm influĂŞncias como a urgĂŞncia de balizar o quanto antes e a tendĂŞncia de batizar atĂ© natimortos), mas tambĂ©m entre igrejas evangĂ©licas. Como luteranos vemos no Batismo mais o agir misericordioso de Deus do que a resposta humana, o que nos deixa Ă vontade para trazer ao Batismo tanto crianças quanto adultos. En¬quanto sinal externo de uma certeza interior, nĂŁo precisamos nos atormentar quando uma criança morre sem ser batizada. Está entregue ao amor de Deus. A resposta humana diária a esse amor obviamente nĂŁo pode ser dispensada.
Outras igrejas evangélicas (batistas) fazem o Batismo depender da compreensão humana, vêem-no mais como resposta ao agir de Deus e por isso batizam somente adultos. Assim, não entendem o rebatismo como ofensa a Deus. Na forma, porém, adotam o Batismo por imersão, que simbolizava justamente um agir sobrenatural, divino, na pessoa. Nenhuma das práticas de Batismo nas igrejas está isenta do perigo de cair no tradicionalismo. Para o contexto histórico-religioso da carta, a ênfase em um só Batismo expressava que a ruptura com o mundo dos impuros era definitiva, não sendo necessárias repetidas lavagens de purificação, assim como a unidade da Igreja demonstrava que Deus era único e que a comunidade era especial diante do mundo (Stambaugh, p. 53 e 56). Em termos ecumênicos, hoje, apesar das diferenças profundas existentes, o Batismo é o sacramento com a mais ampla aceitação mútua entre as diversas confissões.
Partindo das perguntas sobre a leitura, e com o desafio do crescimento em mente (v. 15), os grupos foram orientados a observar os vv. 2ss. Sucedem-se sempre trĂŞs grandezas que levam a trĂŞs grandezas maiores: total humildade, mansidĂŁo, paciĂŞncia; amor, unidade, paz; um corpo, um EspĂrito, uma esperança; um Senhor, uma fĂ©, um Batismo; um Deus e Pai, definido de forma trĂplice. Graficamente podem-se desenhar essas trĂades como degraus de uma escada, cada um formado por trĂŞs tijolos: 3+3+3+3+1(3). AtĂ© se poderia sugerir que a cada tijolo corresponde outro imediatamente superior: da humildade resulta amor, da mansidĂŁo unidade, da paciĂŞncia paz. Mas já no terceiro degrau, essas correlações parecerĂŁo arbitrárias, forçadas (como tambĂ©m, por simetria, ficou de lura, no quarto degrau, a Eucaristia, v. 5). Afinal, nĂŁo se trata de jogo de palavras, e sim de ação comunitária submissa ao Ăşnico Senhor. Portanto, Ă© preciso destacar exemplos concretos, atitudes construtivas da unidade, refletir sobre o que a promove. A visĂŁo da escada, no entanto, pode ser entendida como estĂmulo e situa bem a comunidade na cosmovisĂŁo da carta.
3. Pregação
Considero necessário esclarecer a cosmovisĂŁo especĂfica da Carta aos EfĂ©sios. Mas, conforme a situação e o momento da comunidade, cada pregador terá que forçosamente optar por um dos diversos temas que o texto propõe: vivĂŞncia coerente, vocação, qualidades comunitárias (humildade, mansidĂŁo, paciĂŞncia, etc.), ecumenismo (unidade na pluralidade), carismas (sujeitos, nĂŁo cargos!), onipresença de Cristo e, por extensĂŁo, da Igreja. Pelos interesses imediatos revelados no estudo com grupos parece mais adequado abordar a dinâmica do crescimento na fĂ© comunitária, talvez sob o tĂtulo: convocados a crescer! Para nĂŁo vacilarmos! Para nĂŁo nos dispersarmos! Como crescer? Em que direção (desafios locais)? Com que energia? Alguns dos outros temas acima poderĂŁo ser agrupados em redor deste eixo temático e incluĂdos neste esquema.
4. Bibliografia
CONZELMANN, Hans. Der Brief an die Epheser, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1968. P. 56-91 (Das Neue Testament Deutsch, 8).
KĂ„SEMANN, Ernst. Epheser 4.1-6 e Epheser 4.11-16 (auxĂlios homilĂ©ticos). In: —. Exegetische Versuche und Besinnungen. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1965. vol. l, p. 284-292.
KIRST, Nelson. Efésios 4.1-6. In: ___, ed. Proclamar Libertação.São Leopoldo, Sinodal, 1979. vol. V, p. 218-227.
SCHMIDT, Ervino. Efésios 4.1-6. In: KILPP, Nelson & TREIN, Hans A., eds. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1988. vol. XV, p. 353-359.
STAMBAUGH, J. E. & BALCH, D. L. Das soziale Umfeld des Neuen Testaments. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1992. (NTD)Ergänzungsreihe, 9).