Prédica: João 7.37-39a
Leituras: Ezequiel 37.1-14 e Atos 2.1-21
Autor: Cláudio Schubert
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 18/05/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
Tema: Pentecostes
1. Considerações Gerais
Desde a formação do cânone1, o Evangelho de João é citado como sendo de autoria de João. Gálatas 2.9 o menciona como um dos três líderes da Igreja de Jerusalém. Em várias passagens João toma a forma de o discípulo amado (Jo 13.23; 19.26; 20.2; 21.7,20). No fim do evangelho ele é conceituado como o autor do livro2. O estilo que João usa para apresentar Jesus (l.lss.) diferencia-se do rigoroso método de pesquisa adotado por Lucas no início de seu evangelho (1.1-4). Assim, o Evangelho de João traz características que diferenciam Jesus do apresentado pelos sinóticos. A visão da realidade eclesial joanina também difere da compreensão apresentada pelas cartas pastorais e por Atos dos Apóstolos.
Desse modo, o Evangelho de João distingue-se, em relação aos sinóticos, pela linguagem que Jesus utiliza no livro. A linguagem joanina caracteriza-se especialmente por numerosos contrastes dualísticos, como luz e trevas; mentira e verdade; em cima e embaixo; espírito e carne; liberdade e servidão, etc. Conceitos salvíficos como água da vida e luz do mundo também estão presentes, os quais, segundo Kümme3, têm paralelos somente insignificantes nos sinóticos. Para Goppelt4, essa característica não é apenas um estilo próprio do Evangelho de João, mas expressa um determinado universo de ideias.
As causas dessa peculiaridade do Evangelho de João em relação aos sinóticos, e em boa parte ao restante do Novo Testamento, segundo Brown5, foram motivadas pelo constante confronto com as sinagogas e outras correntes religiosas. O mesmo autor é de opinião que a comunidade joanina teve quatro fases distintas, nas quais o evangelho foi construído.
1a fase: É a época pré-evangélica, que aponta para as origens da comunidade e sua relação com o judaísmo. Essa fase incluía controvérsias entre os cristãos joaninos e os chefes da sinagoga. O período pré-evangélico pode ser datado entre os anos de 50 e 80.
2a fase: Reflete a situação da vida comunitária no período em que a redação principal do evangelho aconteceu, pelos anos 90. A expulsão das sinagogas desdobrou-se na perseguição que a comunidade sofreu por parte dos judeus (Jo 16.2-3). Pulas relações tensas com os judeus e outros grupos religiosos, a comunidade joanina perfilou uma cristologia peculiar.
3a fase: Nesse período ocorreram divisões na comunidade motivadas pelos discípulos de João. A interpretação do evangelho aconteceu de maneira oposta entre eles no que se refere à cristologia, ética, escatologia e pneumatologia. Essa situação pode ser constatada, por exemplo, em l Jo 2.19; 4 e 5. Esse período aponta para a época do ano 100.
4a fase: Nesta fase se consumou a separação definitiva dos dois grupos, após as epístolas terem sido escritas. Os separatistas tinham uma visão e interpretação mais heterodoxas, e o indicativo disso, segundo Brown6, é que eles passaram a estabelecer relações mais próximas com o docetismo, gnosticismo e montanismo. O grupo mais ortodoxo incorporou gradualmente a aceitação da cristologia joanina da preexistência do Verbo.
2. Aproximação ao Texto
Os acontecimentos relatados no cap. 7 sucederam-se na festa dos tabernáculos, também chamada festa das barracas ou festa da colheita. A festa dos tabernáculos era a última das três grandes festas que deviam ser celebradas todo ano pelo povo (Êx 23.14ss.; Dt 16.16). As outras comemorações eram a Páscoa e o Pentecostes. A festa dos tabernáculos tinha duplo sentido7, um histórico e outro agrícola. Historicamente, tinha o sentido de relembrar a época cm que o povo caminhava pelo deserto sem teto fixo. Durante a celebração, muitas pessoas viviam em pequenas cabanas que não podiam ter estrutura permanente. Por esse motivo, a festa também se chamava de festa das cabanas/barracas. O sentido agrícola tinha como objetivo possibilitar a expressão de agradecimento pelas colheitas. Ela se chamava festa da colheita e era o acontecimento religioso mais popular entre o povo judeu. Com a chegada do fim do outono, essa fusta sinalizava o fim da colheita de toda a produção agrícola, Consequentemente, era a festa da alegria. A celebração não se destinava somente a quem fazia grandes colheitas, mas, segundo a lei, também o servo, o estrangeiro, a viúva e o pobre podiam participar.
Na celebração, todos os dias os sacerdotes faziam una procissão com ramos de árvores em torno do aliar dos holocaustos. Ao mesmo tempo, um sacerdote pegava uma jarra de ouro e a enchia com água do tanque de Siloé, levando-a e derramando-a sobre o altar como uma oferta para Deus. No sétimo dia, a procissão fazia sete voltas em torno do altar, lembrando a marcha ao redor das muralhas de Jericó. Foi no último dia, conforme Jo 7.37, que Jesus se expressou como sendo a fonte da água viva.
Nesse contexto e no todo da história do povo judeu, a água assume posição central. Ela é colocada como a primeira necessidade da vida. O fato é compreensível considerando o clima semidesértico da Palestina e região. Segundo pesquisadores, chovia somente durante alguns meses do ano, e a água da chuva era coletada e guardada em poços, pois as fontes permanentes também eram reduzidas. A importância da água é facilmente compreensível, pois o país dependia dela para sua prosperidade.
Uma fonte contínua garante vida às plantas, animais e ao ser humano8. O Salmo 104 já relaciona a água como criação de Deus e que vem de Deus. Autores religiosos usam exemplos de uma fonte permanente como mensagem de onde brotam salvação e bênção. Certamente Jesus tinha conhecimento da impor¬tância histórica e religiosa da água e sua manifestação, o que se deduz da afirmação: Quem crer em mim (…) do seu interior fluirão rios de água viva (Jo 7.38). Ela ganha ainda mais destaque por ter sido externada justamente no dia da festa dos tabernáculos.
O termo água ocorre com frequência especial na literatura joanina e tem uma participação importante na compreensão teológica de João. Para ele, o cristão recebe o Espírito de Deus no Batismo. Ele interpreta a concessão do Espírito como uma dádiva de Deus, a partir da qual a pessoa torna-se um ser nascido de Deus. Quem não nascer… (Jo 3.5). O próprio texto de Jo 7.37-39 trata de fazer uma relação entre água e Espírito Santo. Para Kümmel9, essa importância decisiva do Espírito Santo para a vida do cristão tem como antecedente a compreensão de que Deus é Espírito. Desse modo, é importante que os adoradores o adorem em Espírito e em verdade (Jo 4.23-24). Para João, o Espírito não é uma força física dentro da pessoa que crê, mas a fonte do testemunho a respeito do Filho de Deus feito homem e crucificado. João compreende que o Jesus terreno também possui o Espírito Divino (1.32) e é o Cristo ressuscitado que concede o Espírito Santo.
A mensagem central do Evangelho de João é o envio do Filho ao mundo e a eterna união do Filho com o Pai. Apesar disso, João não pretende falar de uma época atemporal. Ele dá grande valor à realidade histórica do homem Jesus enviado por Deus ao mundo em cumprimento das expectativas vétero-testamentárias. Esse Jesus anuncia que retornará vindo do Pai para o juízo final. Desse modo, João interpretou o surgimento de Jesus como evento salvífico-escatológico. Para João, aquele que crê tem a vida eterna, e diante dela a morte é insignificante. Cristo envia o Espírito Santo como consolador que conduz à verdade. A presença da salvação, no entanto, está condicionada à fé. É pela fé, necessariamente, que o cristão fica ligado a Cristo. João entende, também, que a salvação no presente é imperfeita e o cristão sabe que vive no tempo intermediário entre a ressurreição de Jesus e o advento escatológico do Senhor exaltado. Ele, porém, não fala mais com tanta clareza da proximidade imediata do final dos tempos como outros livros do NT. No entanto, não abandona a salvação escatológica vindoura. Nesse sentido, João enfatiza a presença da vida eterna, acentuando, com isso, a existência de cada cristão como indivíduo, sem esquecer, porem, a comunidade.
3. O Texto
O texto de Jo 7.37-39 está inserido num contexto maior de controvérsias com Jesus, que inicia em 5.1 e vai até 9.41. O cap. 7 se desenvolve no contexto da festa dos tabernáculos, e a nossa passagem pode ser vista como o ponto alto da participação de Jesus nesse acontecimento popular.
Segundo a pesquisa, o dito de Jesus parece referir-se ao AT e desenvolve-se a partir dele. Mesmo sem uma referência explícita, os textos de Is 58.11; Sl 105.41; Ez 47.1, 12; Jl 3.18; Dt 8.15, entre outros, colocam a promessa de que Deus enviará água para saciar a sede e trazer esperança ao povo. No próprio Evangelho de João a água assume caráter decisivo, especialmente com a presença do elemento escatológico. Os textos de Jo 1.26; 2.7; 3.5; 3.23; 4.10-14; 19.34 atestam tal fato. De maneira especial para João, o Batismo é o recebimento do Espírito Santo; conseqüentemente, o nascer de novo tem presente o elemento água na ideia da salvação eterna. É nesse contexto que podemos compreender a manifestação de Jesus: Quem crer em mim (…) do seu interior fluirão rios de água viva (7.38). Além dos elementos teológicos com os quais a água é relacionada em João, a figura de linguagem, especialmente na festa dos tabernáculos — um acontecimento popular —, relacionando a concretização de sua missão com o significado da água é, sem sombra de dúvida, significativo, Tanto que na continuidade (vv. 40ss.) o texto retraia a repercussão que o dito de Jesus causou entre a multidão. Além disso, as pessoas tinham plena consciência cia importância vital da água para a vida delas e do país. Sabiam do valor de uma fonte que pudesse jorrar água permanentemente. Esse fato significava vida de maneira concreta. Jesus faz uso dessa figura de linguagem e lhe acrescenta o elemento teológico e escatológico. Quem beber de Jesus será fonte a jorrar vida para as outras pessoas. O v. 38 trata de explicar o dito de Jesus, relacionando-o com o envio do Espírito Santo para quem crer.
No seu pronunciamento, Jesus se posiciona contra a formalização do culto a Deus. Seu enunciado, como a fonte da água viva, coloca-o em outro campo de compreensão da prática ritual tradicional existente. Jesus se apresenta como aquele que foi anunciado no AT e se coloca como a continuidade cia proclamação dos profetas. Na essência, chama a atenção para um dado que faz a diferença: ele, somente ele, pode saciar a sede. O v. 39 trata de esclarecer a intenção de Jesus, relacionando a fonte da água viva com o Espírito Santo que dá acesso à vida, i. é, que faz nascer de novo (cf. Ez. 37.8,9).
As pessoas andavam sedentas e a religião oficial não satisfazia as necessidades básicas de sentido de vida, de paz interior e principalmente da concretização da promessa de Deus. Ao se colocar como promessa encarnada e detentor do acesso ao Pai (Jo 14.6), Jesus rompe com a religião oficial e se reafirma como o enviado do Pai (5.37), em plena comunicação com o Pai (10.15) e em perfeita identidade com Ele (10.30). Dentro desse pensamento como o enviado do Pai, Jesus faz o convite: Se alguém tem sede, venha a mim (7.37b).
4. Meditação
O final deste segundo milênio apresenta uma grande efervescência de ideias, pensamentos, filosofias e religiões nunca vista antes. Essa multifacetada realidade epistemológico-religiosa coloca o cristianismo como sendo somente mais uma verdade existente. Neste sentido, é importante dar-se conta de que o reinado determinante da Igreja cristã findou com a capitulação da Idade Média. Esse fato força a teologia a dialogar com as outras ciências, sem, no entanto, perder seu específico, mas justamente definindo-o. No universo das igrejas e novas religiões cristãs a relação é a mesma. A verdade não está mais sob a tutela de uma única entidade confessional, mas o acesso à revelação tornou-se um bem público.
Desse modo, entendo que é fundamental que esteja claro que a posição de Jesus naquela época era uma entre as existentes. Alguns a aceitaram, outros não. Também na atualidade, a proposta que temos como igrejas cristãs tradicionais, e como Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), é uma entre diferentes ofertas religiosas existentes. Cabe a pergunta: Qual é o nosso específico diante do universo religioso multiopcional existente? Por que cremos que as pessoas deveriam aderir ou permanecer na nossa comunidade ou Igreja? Qual é a diferença que a presença da nossa comunidade faz na cidade onde vivemos, ou a IECLB, no Brasil?
As pessoas que aceitaram a proposta de Jesus tiveram perguntas como essas respondidas, e por isso foram cativadas. Não podemos incorrer no erro de simplesmente espiritualizar essas questões nem de só as racionalizar, mas devemos perceber que uma fé consciente tem, inevitavelmente, a presença da razão — uma razão que se fundamenta e se orienta pelos princípios éticos referenciados por Cristo. A questão central que está na base do nosso texto é a proposta de Jesus em favor da vida — a vida no seu sentido mais amplo, em que o universo biológico e espiritual são inseparáveis no ser humano. Por isso Cristo pode dizer: Quem tem sede venha a mim, pois a sua proposta não é restrita como era a dos fariseus e como é a das interpretações fundamentalistas da nossa época.
A proposta de Cristo é privilegiar o todo do ser humano, no potencial com o qual foi criado por Deus. Para tal, a sociedade tem a função de proporcionar condições para que o ser humano não tenha a vida restringida e limitada, mas viva em abundância. Assim, é importante cada qual avaliar o potencial e a limitação da estrutura conceituai que rege a sociedade, no global e no específico, no universo antropológico, social, psíquico, cultural, etc. O mesmo vale para a prática do nosso ser Igreja, na tarefa de apontar o lugar onde as pessoas podem saciar sua sede.
5. Caminhos para a Prédica
Existem diferentes caminhos para trabalhar o texto com vistas à pregação comunitária. Sugiro que o pensamento central da pregação seja a reflexão em torno das causas que se apresentam com consequências visíveis, isto é, como fatos na sociedade. A ênfase poderia ser que o fato, isto é, o acontecimento concreto e real sempre é, consciente ou inconscientemente (exceção feita aos acidentes), consequência de uma estrutura de pensamento que orienta as pessoas na sua ação. Compreenderemos as consequências se entendermos as causas. Concretamente, penso que a estrutura a seguir pode auxiliar na construção da mensagem.
a) Junto com a comunidade, fazer um resumo das principais notícias vei¬culadas nos meios de comunicação nos últimos dias: negativos e positivos, em nível local e amplo.
b) Ver quais são as causas das boas e más notícias (não fazer uma leitura crítica da comunicação, mas ver as causas dos fatos em si). A ação humana é consequência de uma compreensão que se desdobra no fato social. A pessoa realiza tal ato em consequência de determinados pensamentos que têm.
c) Existem diferentes opções pelas quais cada ser humano pode conduzir sua vida. Cada pensamento leva a uma direção: pensamentos que privilegiam a lógica do capital têm suas consequências sociais; pensamentos religiosos fundamentalistas, que restringem a interpretação do evangelho, desdobram-se na con¬denação de atos morais, mas absolvem os grandes contraventores da economia nacional. A opção de Jesus Cristo vê o ser humano como o centro da sociedade, e a estrutura social deveria girar em torno dele para dignificá-lo como criatura feita à imagem de Deus.
d) A pessoa precisa agir. Cristo convida: Quem tem sede venha… Receber o Espírito Santo é estar aberto para ir ao encontro de Jesus.
e) Sonhar um mundo novo, uma comunidade nova, uma Igreja nova. Em cada contexto poderiam ser apontados exemplos que, como consequência da fé em Cristo, constroem vida, animam e servem de estímulo à comunidade.
f) Pentecostes é o momento de, conscientemente, optar pela proposta de Jesus (até aqui, pelo menos alguns aspectos da proposta de Jesus deveriam estar bem claros para a comunidade). Pentecostes é tomar da fonte de Jesus para fluir rios de água viva.
6. Bibliografia
BARCLAY, William. Juan 1. Buenos Aires, La Aurora, 1974.
BÖCHER, O. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, vol. 1.
BROWN, Raymond. A Comunidade do Discípulo Amado. São Paulo, Paulinas, 1979.
OOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo, Sinodal; Petrópolis, Vozes, 1979.
KÜMMEL, Werner Georg. Síntese Teológica do Novo Testamento. São Leopoldo, Sinodal, 1983.
7. Notas
1 Na elaboração desta reflexão tenho como pressuposto e considero o que já foi escrito nos exercícios homiléticos anteriores que se encontram nos volumes VI, XII e XVI de Proclamar Libertação.
2 Penso não ser necessário se deter mais na questão da autoria do 4o Evangelho, pois, pela pesquisa científica, não existe unanimidade de opinião.
3 KÜMMEL, p. 301.
4 GOPPELT, p. 544.
5 BROWN, p. 9.
6 Op. cit., p. 22.
7 BARCLAY, p. 266ss.
8 BÖCHER, p. 122.
9 KÜMMEL, p. 356.
10 Os textos mostram com mais clareza as duas propostas que estavam em questão: Jo 2. 13-20; 3.1-15; 4.1ss.; 5.1-18; 8.1-11.