Prédica: Marcos 13.1-13
Leituras: Daniel 12.1-3 e Hebreus 10.11-18
Autor: Nestor Paulo Friedrich
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/11/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
1. Aspectos Introdutórios
a) A literatura apocalíptica desenvolveu-se a partir do séc. 2 a.C. e nos primeiros séculos da nossa era. No NT, além de Mc 13, Mt 24, Lc 21, temos outros textos apocalípticos como l Ts 5.13-18, l Co 15.35-53, o livro do Apocalipse de João, etc. No AT há o livro de Daniel. Ao lado desses há muitos outros textos apocalípticos que não entraram no cânon da Bíblia como 4 Esdras, Apocalipse de Abraão, Livro 3 dos Oráculos Sibilinos. Isto significa que os textos bíblicos desse género não foram os primeiros nem os últimos que surgiram, mas que fazem parte de uma tradição e que compartilham de um modo peculiar de escrever, de articular sua mensagem, de forma literária, de estilo, que refletem uma experiência religiosa, uma percepção social, um modo de ver e expressar sua realidade.
b) A apocalíptica nasce quando não há mais paradigmas, quando se é excluído do mundo organizado e jogado no caos da marginalidade. Foi assim em 586 a.C. O povo de Deus até então tinha sua terra, a monarquia, um rei, uma classe dirigente com sacerdotes, escribas, funcionários, existia uma capital — Jerusalém, havia um templo, um culto. Após a destruição de Jerusalém e o exílio todas as referências que norteavam a vida estão destruídas. Não há mais referência econômica, política, cultural, religiosa. Neste contexto nasce a apocalíptica. Nasce da experiência de sofrimento que busca reconstruir a consciência para tornar possível a reconstrução de um mundo diferente.
c) Drewermann, na perspectiva da psicologia profunda, diz que os textos apocalípticos são textos e visões do medo, expostas por pessoas com medo, mas que provêm de uni viver que superou o ponto culminante do medo. Em tempos de fome, necessidade e medo, pessoas podem até orar para serem preservadas da destruição e perdição, mas, quando compreendemos que lodosos acontecimentos dos quais as pessoas fogem — guerras, fome, catástrofes ecológicas, não são possíveis de serem mudados, só resta uma saída: pedir a Deus que deixe vir logo o fim. Todos os textos tardios da apocalíptica judaica são tentativas de expressar esperança e confiança em meio à resignação. É o último estágio onde a fé ainda pode crescer. Um passo mais e teremos o cinismo, a vontade de destruição, a alegria niilista do fim. Sempre que pessoas sentem a terra tremer sob seus pés, quando seu próprio mundo começa a implodir, quando são oprimidas pelo medo e necessidade, surgem em sua fantasia as imagens e imaginação apocalípticas, visões do medo e da esperança. Marcos 13 reflete a situação reinante por ocasião da guerra entre judeus e romanos, quando Jerusalém e seu templo novamente foram destruídos. A destruição do templo é passado recente.
d) Há consenso na pesquisa de que Mc 13 é um entrelaçamento da tradição cristã com material proveniente da apocalíptica judaica. Trata-se de um texto bastante trabalhado. Como texto-base para a elaboração de Mc 13.1-13 são citados os vv. 7 e 8, que originalmente eram parte de um panfleto ou de outra forma literária. Os vv. 1-5 são de cunho redacional. Ganharam atualidade na comunidade quando da destruição de Jerusalém e em especial do templo. Diante desse fato a comunidade pergunta: será essa catástrofe nacional e religiosa o começo de todas aquelas coisas mencionadas no panfleto, o princípio do fim? Marcos 13 procura responder duas questões levantadas pela comunidade: 1) Qual o significado da destruição do templo?; 2) Que relação tem esse evento com a parúsia? (A. Sand, p. 226). A pergunta no v. 4 reflete uma situação de sofrimento presente. Ela expressa desespero em meio à situação descrita no v. 7. Todo o capítulo está subdividido em unidades menores e intercalado com material de perspectiva cristã. Os imperativos nos vv. 5b, 9a, llb (23, 28, 29, 33, 35, 37) mostram que a intenção do evangelista é a parênese. Marcos não entra em especulações apocalípticas. A resposta às questões levantadas resulta num texto extremamente sóbrio. Não alimenta ilusões triunfalistas, nem mesmo usa termos brandos, poimênicos, para aliviar a situação ou remeter para um futuro distante. Marcos propõe uma escatologia presente. A época final da história começou com a ruína de Jerusalém e do templo, e nela se vai realizando o reinado de Deus. Essa realização não é repentina nem imediata, mas progressiva, via proclamação da boa nova a todas as nações. É uma escatologia em expansão. O fim não está vinculado com a destruição do templo, mas a atenção recai na parúsia do Filho do homem e na postura da comunidade frente a esse acontecimento. Marcos 13 afirma a seu modo que Deus faz parte da realidade, mostra claramente que o mundo não está programado de tal forma que tudo acontece por acaso. Ao contrário, nosso texto aponta para a responsabilidade e liberdade de cada um/a. É
uma exortação à comunidade cristã com o propósito de modificar a expectativa da parúsia imediata. A argumentação parte da afirmação de que Deus é o Senhor da História c que em suas mãos está determinar o telos que a comunidade espera. Este fim não está tão perto como seria a expectativa da comunidade. (…) Há sinais (…) Esta época de novas crises caracteriza-se pela presença de falsos messias que, com sinais igualmente falsos, procurarão enganar os crentes. (…) São anunciados a perseguição e o martírio; fortes contradições internas afligirão a comunidade; o medo, a denúncia, a entrega produzirão rupturas na família e na comunidade. (Ramirez, p. 68.)
2. O Texto
Primeira parte: cena de abertura
Vv. 1-2: O texto inicia descrevendo a admiração dos discípulos ao saírem do templo: Que pedras, que construções! As proporções do templo, seu significado simbólico para todo o povo judeu, também o da diáspora, são indiscutíveis. Não podemos minimizar as palavras dos discípulos. O templo inspira o vínculo entre todos os judeus como povo eleito. Sua reconstrução após o exílio babilônico era questão fundamental. Jesus não questiona a grandeza do templo, ao contrário, confirma-a: Vês estas grandes pedras? Contudo, existe um paralelo entre essa grandeza do templo e seu papel na vida do povo. O papel do templo perpassa todas as realidades. Sua grandeza, sua riqueza são frutos dos desmandos aí cometidos. O templo é centro de exploração, concentração de riqueza, dominação, é o braço romano na Palestina. Á desvirtuação do papel do templo é tamanha que nem mesmo o santuário, a casa de Javé, tem razão de ser.
Vv. 3-4: As palavras de Jesus em relação ao templo levantam a pergunta pelo fim e sua iminência: quando e que sinais! O quando está relacionado com a destruição, enquanto que a segunda parte da pergunta tem a ver com os sinais relacionados ao advento escatológico de Jesus. O texto parece querer corrigir concepções escatológicas equivocadas de grupos que viram na destruição do templo, na guerra judaica (66-70 d.C.) o início da tribulação. Deduzimos isto do fato de esses dois temas estarem juntos na pergunta dos discípulos. A resposta de Jesus deixa claro que essas duas coisas não estão vinculadas. O fim do templo não é sinal seguro da parúsia de Cristo. Pode-se dizer que faz parte do advento de Cristo. Sua destruição não inaugura a segunda vinda. Parúsia é, neste sentido, a volta de Jesus para posse definitiva e inauguração do reino de Deus. Conforme Ramirez, Mc 13 é uma correção do judaísmo nacionalista de orientação apocalíptica. Estes setores esperavam a parúsia próxima do Messias e com isso a expulsão dos romanos e a instauração do Estado judeu como expressão primária da iminência do Reinado de Javé (Ramirez, p. 63). Em Mc o novo templo é a comunidade confessante que persevera na fé e que por esta fidelidade torna presente o espírito do Messias em seu meio. A história não é retirada, mas escatologizada. Todos os elementos se articulam em torno da parúsia do Filho do homem, o que destaca o senhorio de Deus sobre o mundo.
Vv. 5-8: O tema central deste bloco é não se deixar enganar pelos sinais. lisses sinais são: 1) a aparição de falsos messias ou profetas; 2) os boatos de guerra; 3) as catástrofes naturais e suas consequências. O novo sentido dado a este material está nos vv. 7b e 8bc, ou seja, ainda não é o fim. é o princípio das dores. O que está pela frente não é a era messiânica, antes começa um novo período caracterizado por duras provas (Ramirez, p. 65). Significativo no discurso de Jesus é o enfoque parenético. Haverá concorrentes que reclamam ser a encarnação de Deus. Neste caso, uma comunidade cansada, sofrida, em crise, será presa fácil de tais enganadores.
O v. 7 busca refrear uma interpretação errada dos fatos. Nem toda catástrofe, nem toda guerra são sinais da parúsia. Desde a ressurreição de Jesus vivemos o período final da história. O que se vê pode, quando muito, ser o início (v. 8). A consequência disto é que a missão da Igreja não chegou ao fim, os cristãos não estão isentos de suas responsabilidades neste mundo. O plano de Deus é o Reino. Diante dele se reage com esperança ou instala-se a crise. Guerras são os tristes sinais destas crises, catástrofes são os lembretes da limitação do homem e ambas as coisas talvez sejam já, de certa forma, antecipação do juízo de Deus, preparado pelo homem para si mesmo (Brakemeier, Mateus, p. 64-65).
Vv. 9-13: Exortação à perseverança
Neste bloco predomina a palavra paradidomi (= entregar), que se refere às aflições da comunidade. A resposta para essa situação é o upomeinai (v. 13) = perseverar, resistir. A ruptura com a sinagoga ainda não ocorreu, mas parece ser iminente. Separação e posterior ruptura explicam a ordem de ir a todas as nações para pregar o evangelho. A prioridade não é mais a pergunta pelo fim, mas como viver o discipulado de forma consequente.
Neste bloco o centro está nas instruções referentes ao comportamento dos discípulos na tribulação escatológica. O tempo entre a espera c o cumprimento traz uma série de desafios para a Igreja. A Igreja não será poupada, mas será como barco que se defronta com as ondas do mar. O v. 13 reforça o objetivo parenético do texto. A comunidade é chamada a perseverar. liste enfoque quer ajudar a desvendar a realidade, a percebê-la, a des-idealizar a própria Igreja para que seja capaz de encarar com realismo sua missão, i. é, a perceber o sistema dominante que aparece a nível político-social e religioso. A nível político-social, isso significava o sistema imperial romano, e a nível religioso as instituições judaicas, o templo e depois a sinagoga. Não menos significativos são os movimentos religiosos alternativos, i. é, os falsos profetas e falsos cristos. Não faltarão reverendos Moons.
3. A Caminho da Prédica
Dois fatos da vida:
1. No jornal Zero Hora do dia 19.10.85 há uma reportagem sobre o cometa Halley. O assunto ocupou bastante espaço nos noticiários. Dentre as várias abordagens que se fez sobre o assunto, uma diz que, apesar de
abençoar o nascimento do mentor do cristianismo em todos os cartões de Natal, um cometa — principalmente do porte do Halley — nunca foi bern-vindo na antiguidade ou na era medieval. Mal surgiram no céu, já corriam os boatos sobre a guerra e a peste, o medo chegava ao ponto de motivar suicídios coletivos, como forma de fugir do fim do mundo. Mesmo em 1910, quando os meios de comunicação já traduziam a palavra dos cientistas, ainda aconteceram verdadeiros disparates, como o caso de pessoas que venderam tudo o que tinham para promover grandes festas e morrer rindo e bebendo, ou oportunistas que comercializaram pílulas cuja bula prometia imunidade às influências do astro maligno. (P. 29-30.)
2. No dia 29.12.1992 o jornal Zero Hora publicou uma pequena reportagem de cunho científico (cientistas americanos) que vaticinou o dia do juízo final para daqui a 1,5 bilhão de anos, quando então o planeta terra ficará parecido com a vulcânica e empoeirada Vénus.
Textos apocalípticos têm, por si só, um enorme poder querigmático. Inspiram confiança, medo, esperança, radicalismos de esquerda e de direita, mobilizam forças, mas também imobilizam, podem gerar vários sentimentos, reações, até mesmo contribuir para uma leitura crítica da realidade e ajudar na percepção do mal na sociedade. A reportagem sobre o cometa Halley mostra que uma perspectiva apocalíptica pode tornar-se até mesmo uma fonte de lucro. É possível ganhar dinheiro com teorias apocalípticas. Apocalipses não faltam inclusive em épocas de eleições. Aí a mensagem é do tipo se o fulano ganhar, vai acontecer isto e aquilo, o exército tomará conta, etc. Também existe a perspectiva do fim vaticinada para o ano 2000. É interessante observar que enquanto se fomenta o medo em relação ao ano 2000 (o programa Fantástico da Globo é especialista nisto), grandes projetos económicos, investimentos, construção de barragens são articulados para além do ano 2000. Inclusive prestações de consórcio. Por fim, vale lembrar que a cada final de ano somos confrontados com uma notícia ou previsão de fim do mundo.
Como reagir diante dessas produções apocalípticas de nossos dias? Acredito que Mc 13.1-13 ajuda a refletir sobre essa questão de uma forma sóbria, principalmente se levarmos em conta a situação crítica de muito pessimismo, negativismo que toma conta das pessoas e também das comunidades. Pablo Richard diz que quando a destruição da vida é tão intensa, o povo de Deus necessita de apocalipse, de revelação, para ter claro onde Deus está e onde está o demônio nesta nossa história. A revelação vai contra o ocultamente; o apocalipse é o contrário da ideologia. O que o Império oculta, a apocalíptica revela, mas revela aos pobres, aos oprimidos pelo império (RIBLA 7, p. 5).
Marcos 13 é um texto crítico em relação às perspectivas apocalípticas correntes em seus dias. Corrige perspectivas erradas e aponta para o que é decisivo, essencial. Seu acento recai na parênese. Mostra que a comunidade tem pela frente um caminho semelhante ao de Jesus. Nada de ficar esperando de braços cruzados. Sexta-Feira Santa será também uma realidade para a Igreja de Jesus. Contudo, nada de fatalismos, entreguismos, conformismos. A hora é de olhar (blepete — vv. 5 e 9), articular a missão, planejar o trabalho, formar lideranças, compartilhar experiências, festejar avanços, arriscar em novas frentes, defender a vida, pregar o evangelho que transforma e também provoca. A perspectiva da parúsia coloca essa tarefa. Nosso texto é um chamado à espe¬rança, à vigilância e ao compromisso. (…) de se projetar para o futuro, para o mundo novo que Deus em sua palavra oferece àqueles que fazem parte de seu povo fiel que espera em suas promessas (Ramirez, p. 60).
O surpreendente na história do povo de Deus é que após cada possível fim houve sempre de novo a possibilidade de um novo início. Assim como Deus libertou o povo do Egito, também o libertou, posteriormente, da Babilônia. De cada derrota Israel conseguiu criar uma nova esperança. As mais terríveis catástrofes tornaram-se a maior evidência da força e fidelidade de Deus para com seu povo. Assim também o evidencia a Páscoa após a Sexta-Feira Santa.
4. Bibliografia
BRAKEMEIER, G. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. São Leopoldo, Sinodal, 1984. 152 p. —. Mateus. Polígrafo. 2- semestre de 1971.
CROATTO, J. S. Apocalíptica e Esperança dos Oprimidos — Contexto Sócio-Político c Cultural do Gênero Apocalíptico. RIBLA 7: Apocalíptica. Petrópolis, Vozes, 1990. p. 8-21.
DREWERMANN, E. Das Markus Evangelium; erster Teil. Olten, Walter, 1987.
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1977.
RAMIREZ, F. D. Compromisso e Perseverança; Estudo sobre Marcos 13. RIBLA 7: Apocalíptica. Petrópolis, Vozes, 1990. p. 59-75.
SAND, A. A Questão do Lugar Vivencial dos Textos Apocalípticos do Novo Testamento. In: VV. AA. Apocalipsismo. São Leopoldo, Sinodal, 1983. p. 219-230.