Prédica: Marcos 14.3-9
Leituras: Zacarias 9.9-10 e Filipenses 2.5-11
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: Domingo da Paixão
Data da Pregação: 23/03/1997
Proclamar Libertação – Volume XXII
1. Interpretação do Texto
1.1. A Ação da Mulher
A história da unção em Betânia é essencialmente história da ação de uma mulher; a mulher não fala uma palavra sequer — só age, faz. Jesus ressalta três vezes esta característica: Ela praticou boa ação para comigo (…) ela fez o que pôde (…) onde for pregado o evangelho será contado o que ela fez (…).
O texto não dá maiores informações sobre a mulher. Ela é apresentada de forma anónima. Para quem fez uma ação tão destacada, esperar-se-ia ao menos o conhecimento da sua identidade por parte dos/as transmissores/as do evento. Marcos não vê necessidade de identificá-la. Para ele parece ser a ação da mulher, não o seu nome, que conta. João e Lucas diferem neste particular. João identifica a mulher: trata-se de Maria, irmã de Madalena e Lázaro (12.1ss.). Lucas não nos transmite o seu nome, mas identifica-a como sendo uma pecadora (Lc 7.37). Segundo E. Moltmann-Wendel, Lucas e João conseguem, desta forma, privatizar e personalizar a ação efetuada; em Lucas o passado da mulher (como pecadora) parece até conseguir dar as razões para a sua iniciativa (p. 103).
A ação da mulher consistiu numa unção, que provocou forte reação por parte de alguns presentes à ceia. O v. 4 descreve essa reação como uma atitude de indignação frente ao que praticou a mulher. De fato, se considerarmos as condições vigentes na época, a ação dessa mulher pode ser considerada como pretensiosa e até mesmo atrevida por vários motivos. Gostaríamos de apontar para os seguintes:
1) O primeiro motivo é aquele destacado pelo texto: a mulher estaria esbanjando em Jesus dinheiro que poderia aproveitar muito melhor como carida¬de aos pobres em forma de alimentos, agasalhos, etc. Não há como negar certa dose de razão para essa indignação: particularizar ações de amor com artigos de luxo dentro de uma sociedade onde imperam miséria e pobreza coletiva será sempre, até certo ponto, uma falta de sensibilidade e objetividade frente às necessidades populares mais prementes. Onde sobre um só — como no nosso caso — ou sobre uma pequena parcela da população é derramado o luxo que poderia reverter em benefício da maioria, não há como não se indignar e protestar. O protesto de alguns presentes à ceia tem a seu favor toda a longa tradição do AT em defesa dos pobres, mas também o próprio Jesus (Lc 6.20ss.; Mc 10.21,23ss.; Mt 25.31ss., etc.).
2) Um segundo motivo pode ser deduzido a partir dos costumes de refeição da época: as mulheres, por via de regra, mantinham-se serviçais e prestativas para os homens durante as refeições; não lhes cabia assumir outras iniciativas do que as prescritas pelos costumes. Ou seja: as mulheres tinham um papel conhecido e reconhecido a desempenhar na sociedade e à mesa, mas não era exatamente isso que a mulher do texto estava fazendo; estava, isto sim, fugindo do papel que lhe prescrevia a sociedade regida por homens, ou seja, de servi-los com comida e retirar-se para a cozinha. Um comentarista, percebendo que a atitude da mulher realmente quebra convenções sociais, explica: provavelmente se trata de uma casa de agricultor, onde as convenções que regem a sociedade não são levadas tão ao pé da letra!
3) O ato de ungir era amplamente praticado nos tempos bíblicos. Comumente pensa-se que a unção de Jesus pela mulher era um ato de cortesia, oferecido na época pelos/as hospedeiros/as a seus/suas hóspedes. Esse tipo de unção podia ser feito na cabeça (cf. Lc 7.46: SI 23.5; 141.5) ou nos pés (Lc 7.38; Jo 12.30). Se a unção representou tal ato de cortesia, a mulher teria com sua ação envergonhado os reais hospedeiros, que não haviam prestado tais deferências a Jesus, um aspecto particularmente destacado por Lucas (7.44-46)!
4) Estudos recentes (E. Schüssler Fiorenza, p. 189s.; E. Moltmann-Wendel, p. 101; F. Oettinger, p. 80s.; C. Myers, p. 426s.; mas cf. já G. Voigt, p. 180s., etc.) têm apontado para outro detalhe, provavelmente bem mais significativo: enquanto que a tradição de Marcos fala de uma unção na cabeça, a de Lucas e João referem-se unicamente à unção dos pés. Ora, a unção na cabeça não representava só um gesto de cortesia na época, mas era também a forma através da qual os reis costumavam ser ungidos pelos sacerdotes e profetas de Israel (cf. l Sm 9.16; 10.1; 16.1,12s.; l Rs 1.34; 2 Rs 9.1-4). É, pois, perfeitamente possível que a mulher tenha ungido Jesus na cabeça para simbolizar com esta ação característica dos profetas que estava reconhecendo a Jesus como o Messias de Israel. Tal interpretação poderia explicar por que a tradição posterior a Marcos teve interesse em transformar a unção da cabeça em unção dos pés: é que a unção messiânica era efetuada, tradicionalmente, só por homens. Aqui, contudo, uma mulher efetua o ato simbólico, e isto sem consultar ou pedir permissão ao sexo social e religiosamente encarregado dessa tarefa! Por isso, a correção da unção efetuada por Lucas e João é denominada, não sem razão, por F. Oettinger de uma lição sobre como os homens formam a tradição (F. Oettinger, p. 80), ou seja, de como, na verdade, a de-formam.
Se a mulher realmente ungiu a cabeça de Jesus para sinalizar que o entendia como Messias, ela passa a ser a primeira pessoa que reconhece naquele que está prestes a assumir a cruz o Messias, o Ungido libertador escolhido por Deus. Pedro já havia feito anteriormente uma confissão messiânica também, como lemos em 8.27-30. Mas Jesus era aos seus olhos o Messias como ele queria que fosse, não como Deus pretendera. Por isso, diante da perspectiva de sofrimento, Pedro começou a reprovar Jesus, não concordando com o tipo de Messias alternativo que ele pretendia viver (8.27-33). Diferente é, aqui em 14.3ss., o caso da mulher. Ela unge Jesus sem qualquer palavra de repreensão ou crítica pelo caminho que este pretende seguir até a cruz. Ela o unge como seu Messias, mas o unge, simultaneamente, para a morte, como afirma Jesus (v. 8; sobre este costume, cf. Gn 50.2; 2 Cr 16.14; 21.19s.; Mc 16.1; Lc 23.56; Jo 19.40).
A mulher aceita-o, pois, como Messias disposto a assumir perseguição e sofrimento, ao contrário dos seus discípulos. Ou será que a interpretação que a mulher deu a seu gesto foi diferente daquela apresentada por Jesus no v. 8? Esta é a opinião de Voigt (p. 181). De acordo com o mesmo, a intenção da mulher era prestar honras a Jesus ungindo-o simbolicamente como o Messias. Jesus, contudo, interpreta o ato como unção para a morte. Por quê? Voigt é de opinião que Jesus procede com a mulher de forma semelhante ao seu procedimento com Pedro em 8.26ss.: após este confessá-lo como Messias, Jesus passa a falar da necessidade de sua morte (8.31-33). Assim também aqui: após sua unção como rei-Messias (v. 3), Jesus mesmo destaca que será um Messias sofredor (v. 8).
Mas não há por que negar que já a própria mulher possa ter ungido a Jesus em ambos os sentidos, a saber, como Messias e como aquele cujo caminho terminaria na morte. A probabilidade da hipótese aumenta na medida em que nos damos conta de que a unção aplicada a mortos era feita só excepcionalmente, p. ex. em caso da morte de reis (cf. 2 Cr 16.14 e 21.19s.). Assim entendida, essa ação não deve ter deixado de causar certo embaraço aos que se indignaram com a mulher. Ao contrário dos discípulos e, em especial, de Pedro (cf. 8.32), a mulher não o pretende conter neste caminho (…) ela não se encontra desorientada e amedrontada, e sim repleta de simpatia, de co-sofrimento (Moltmann-Wendel, p. 101).
Essa interpretação pode explicar também a natureza mais exala do bálsamo, que, nas palavras do texto, era um preciosíssimo perfume de nardo puro. Comumente a grande tristeza que assola pessoas após o inesperado falecimento de seus entes queridos se deve ao fato de que não tiveram oportunidade paia lhes fazer todo o bem que teriam desejado se soubessem do falo. A mulher do texto soube intuir que aquele momento histórico era um momento último e irreversível para Jesus: a oportunidade que se oferecia para amá-lo não haveria de se repelir. Ela não ofereceu, pois, um bálsamo qualquer, adequado para diferentes situações de vida: seu unguento é de um perfume preciosíssimo de nardo puro, expressão, portanto, do mais alto reconhecimento e amor que dedicava a Jesus como pessoa c Messias. A mulher aproveitou a última oportunidade que se oferecia para expressar com uma ação o quanto Jesus era importante aos seus olhos; intuiu corretamente os sinais dos tempos, fez a leitura certa do momento histórico — e agiu. Os presentes re-agiram…
l .2. A Re-Ação dos Presentes
Não se sabe ao certo quem estava presente à mesa com Jesus. Ao contrário de Mc 9.38 e 10.13, em que Marcos refere-se diretamente a uma indignação dos discípulos, nosso trecho traz apenas uma referência a alguns entre si. É possível que houvesse discípulos entre eles; dificilmente, contudo, foram só os discípulos que se indignaram, pois, como mostram 9.38 e 10.13, o evangelista Marcos não costuma poupar os discípulos de embaraços. Mesmo que o uso do masculino na expressão alguns entre si possa, em tese, ser inclusivo, abarcando tanto homens quanto mulheres, o mais provável, diante dos argumentos arrolados acima, é que o texto esteja contrapondo a ação de uma mulher à reação de alguns homens presentes à ceia.
Já vimos acima que a re-ação de alguns dos presentes foi de indignação. A interpretação que demos à unção mostrou, porém, que é prudente distinguir-se entre o lado verbalizado da indignação e o lado omitido dela. A mulher não causou indignação unicamente pelo esbanjamento que estava praticando na perspectiva de alguns presentes ao ato. O seu vaso de alabastro com preciosíssimo perfume de nardo puro, que valia um ano de salário de um trabalhador braçal, deixava transparecer, simultaneamente, o profundo apreço que sentia por Jesus. Essa grande prova e expressão do amor da mulher seguramente deve ter tornado transparentes as fracas demonstrações de amor a Jesus por parte de alguns dos presentes. Jesus tornou-se caro à mulher, inclusive no sentido económico. Quem está assim disposto a dar do seu, também do seu bolso, põe à luz como, na maioria das vezes, o amor traduzido pelas nossas palavras e ações é ainda carente e frágil. E os/as presentes àquela ceia devem tê-lo notado. Além disso, já nos referimos também ao fato de a mulher ter assumido papéis originalmente reservados aos homens (unção messiânica) e circunstancialmente da competência dos hospedeiros (ungir hóspedes), ambos de igual maneira embaraçosos para os presentes à ceia.
A consideração de todos esses fatores, sobretudo daqueles não expressamente tematizados no texto, já levantou a suspeita de que a crítica formulada de modo direto à mulher possa ter sido em sua origem mais um subterfúgio, uma evasiva ou desculpa, do que propriamente a preocupação séria do grupo que a formulou; ou seja: o grupo poderia ter se apressado em criticar como desperdício a ação da mulher para melhor conseguir encobrir tudo aquilo que sua própria falta de ação e discernimento — exposta pelo gesto da mulher — acabava de revelar. É possível que este tenha sido realmente o caso; contudo, não há como o provar.
Devemos, pois, trabalhar com a hipótese de que o motivo da indignação tenha sido uma preocupação legítima, a saber, o grande valor do perfume que poderia ter sido revertido em benefício de muitos pobres. Neste caso, somos tentados a dar plena razão ao grupo contestador — contra a mulher que esbanjou e contra o próprio Jesus que nada fez para evitá-lo. Afinal, a Palestina estava repleta de gente cansada e sobrecarregada pelo trabalho (Mt 11.28), semelhante a caniços dobrados e mechas pouco fumegantes (Mt 12.20), mas também por um grande número de desempregados, cuja sorte naquela época não diferia da de hoje (Mt 20.1ss.). O protesto estava, pois, inegavelmente fundamentado na realidade de crise e carestia existente e traduzia a preocupação legítima de pessoas que sabem do pecado que representa um esbanjamento em situação de fome e miséria.
1.3. A Resposta de Jesus
Ao contrário do que se esperaria, a resposta de Jesus não consiste em mero elogio para a mulher, de um lado, e, do outro, reprimenda para o grupo contestador de sua ação. Jesus leva muito a sério a preocupação expressa pelo grupo. Poder-se-ia até dizer que ele a radicaliza, pois afirma que a presença de pobres entre o grupo não representa unicamente um compromisso circunstancial, e sim fundamental e válido para múltiplas ocasiões. Jesus está dando a entender que, havendo vontade (quando quiserdes), são inúmeras as oportunidades que se oferecem para a prática do bem aos pobres (podeis fazer-lhes bem).
Deve-se ter cuidado com a tradução exata do v. 7, para não interpretar erroneamente as palavras de Jesus. Traduzidas literalmente, elas apresentam o seguinte teor: pobres sempre tendes convosco. Jesus está a sugerir no contexto que, enquanto que ele vai morrer a seguir, os pobres ainda serão por mais tempo parte integrante da vida das pessoas presentes àquela ceia. Na frase o advérbio sempre tem, pois, o sentido de continuamente ou habitualmente. Jesus de forma alguma está querendo dizer que pobres existirão para sempre. Neste caso o verbo teria que estar no futuro (em grego: exete), quando, em verdade, está no presente (em grego: echete). E, além do mais, para sempre no sentido de eternamente não se expressa com o advérbio sempre (em grego: pantote), e sim com a expressão eis ton/tous aiona/s. É sintomático, p. ex., que dentro dos quatro evangelhos o advérbio sempre (pantote) usado em nosso texto nunca seja empregado com o futuro do verbo de referência (cf. Mt 26.11; Mc 14.7: Lc 15.31; 18.1; Jo 6.34; 7.6; 8.29; 11.42; 12.8 e 18.20).
Esses fatos sugerem que Jesus não esteja aqui afirmando a existência eterna de pobres, mas sim convidando os presentes à ceia a fazer-lhes o bem sempre e defrontados com sua situação de miséria e indigência. Talvez haja, inclusive, uma pequena ironia crítica embutida no v. 7: Jesus afirma que os presentes podem fazer o bem aos pobres quando quiserem. Teria ele em mente as eventuais oportunidades que o futuro iria conceder para tal ação, mas que não haveriam de ser aproveitadas na medida em que as pessoas não se dispusessem para tal, ou seja, não quisessem? Neste caso Jesus poderia estar alertando: a preocupação com os pobres é válida, mas há que se dispor a pô-la em prática! Ações de misericórdia e solidariedade requerem disposição e vontade para servir. Só saber que são necessárias não mata a fome de ninguém.
Por outro lado, a frase quando quiserdes podeis fazer-lhes bem também apresenta um aspecto problemático. Há o ditado que diz: Querer ainda não é poder. Ele tem também o seu lado de verdade. Em muitas pessoas não falta vontade, faltam condições (de saúde, financeiras, etc.) para ajudar. Jesus, por certo, não ignorava esses fatos, válidos também para sua época. Isto está a indicar que uma problematização neste texto dificilmente atingiria os objetivos que ele tinha com essas palavras. Parece, pois, que o objetivo de Jesus com a frase quando quiserdes podeis fazer-lhes bem era, acima de tudo, alertar as pessoas para a real necessidade de disponibilidade; não mais, e não menos.
2. Meditação
Onde quer que o evangelho for anunciado, será contado o que ela fez e ela será lembrada (v. 9). A ação da mulher foi ação-surpresa. Ela realizou o não-previsto, o inesperado, para merecer tal elogio de Jesus. Para J. Jeremias e R. Pesch (p. 333) o surpreendente na ação da mulher foi a sua ação de amor a Jesus. Para estes autores boa ação (cf. o v. 6) é um termo técnico para designar ações de misericórdia na época de Jesus. Estas eram subdivididas em esmolas e obras de amor. As esmolas distinguiam-se das obras de amor por estarem limitadas aos pobres, a pessoas vivas e ao auxílio em dinheiro. As obras de amor eram consideradas superiores às esmolas por poderem ser efetuadas também para ricos e mortos e requererem doações financeiras ligadas com envolvimento pessoal. Entre as obras de amor contava-se a doação de comida para quem tinha fome, água para quem tinha sede, vestuário para quem necessitasse de agasalho, etc. (cf. Mt 25.31ss.). O mérito da mulher no texto teria sido justamente a escolha de uma obra de amor a Jesus, ao invés da mera esmola para pobres. Esta interpretação é interessante por chamar a nossa atenção para particularidades da época, mas dificilmente retraia o que de fato motivou o elogio à mulher — Jesus deveria ter sido mais explícito, se quisesse diferenciar a ação de amor da mulher de uma simples esmola.
Como vimos acima, a surpresa que a ação dessa mulher provocou em Jesus está ligada a um conjunto de fatores. O evangelista Marcos realça um em particular: a mulher intuiu a morte próxima de Jesus e procurou, em razão do falo, expressar-lhe com uma unção a profundidade dos seus sentimentos e, talvez, lambem o reconhecimento simbólico de sua messianidade. O elevado preço do bálsamo mostra que a mulher havia feito daquela hora a oportunidade para testemunhar a Jesus que ele era, aos seus olhos, a pessoa mais importante e mais necessitada de sua boa ação.
A partir do v. 9 poderíamos nos perguntar como podemos e devemos recontar hoje o que ela fez. O texto é provocador e convida para uma série de associações, entre as quais destacamos:
1) A mulher escolheu Jesus como prioridade para sua ação de amor e reconhecimento. Ela intuiu que era aquela a hora para fazer aquilo que fez à pessoa que fez. Os pobres estariam sempre com ela, enquanto que Jesus estava diante de seu assassinato. Era preciso dar-lhe a prioridade das boas ações.
A história tematiza, por assim dizer, uma economia de nossas boas ações. Não se pode fazer tudo a todos/as a um só tempo. E preciso discernir prioridades, escolher o que fazer para o momento e ocasião acertados. As comunidades, paróquias e distritos — mas também nós como indivíduos —, na medida em que quiserem fazer ações de misericórdia, estarão diante do mesmo problema da mulher: a quem dar/distribuir em que proporção neste dia, ano e época? Como discernir prioridades dentro de uma realidade tão abundante de miséria?
2) A mulher não precisaria ter gasto 200 denários — um ano de salário mínimo — para realizar a unção em Jesus; com 50 ou 30 daria para fazê-lo também. A boa ação que ela praticou aos olhos de Jesus seguramente tinha algo a ver com o enorme valor do bálsamo. Ele é um sinal material do grande valor que Jesus tinha aos seus olhos.
O alto valor da boa ação da mulher poderia levar-nos a um sadio exame dos valores financeiros e outros com os quais veiculámos nossas próprias ações de caridade. A mulher talvez torne transparentes a timidez e relutância com que estamos dispostos a desembolsar dinheiro ou bens para outras pessoas ou insti¬tuições que necessitem de suporte financeiro ou material. Jesus havia dito: Onde está o teu tesouro, ali estará também o teu coração (Mt 6.21). A mulher havia derramado uma parte expressiva do seu tesouro sobre a cabeça de Jesus, sinalizando assim que seu coração estava totalmente apegado à pessoa dele. O destino semanal, mensal ou anual de nosso dinheiro e nossos bens poderá orientar-nos para os endereços que tomam nossos tesouros, ou seja, para os compromissos aos quais estamos amarrando nosso coração e nosso ser.
É verdade que a mulher no texto teve um motivo excepcional para ungir Jesus com um bálsamo tão caro: era iminente a sua morte. A consciência da proximidade da morte nos torna mais sensíveis, mais abertos. Talvez em época de Paixão não seja demais lembrar que nossas boas ações modernas dirigem- se, cm grande parte, a pessoas semelhantes: gente que corre o perigo de morrer de fome, de frio, por falta de trabalho ou assistência médica.
3) Ao fazer a apologia da mulher, Jesus constata: Ela fez o que pôde. Com isto está sinalizando que ela fez a parte que lhe cabia fazer.
A constatação de Jesus levanta a pergunta pelo uso e abuso de nossas potencialidades na prática de boas ações, da misericórdia. Há potencialidades enormes, que em muitos/as de nós estão ainda em estado latente. Nosso país é extremamente rico para proporcionar bem-estar a todos. Que estamos fazendo para distribuir a riqueza do Brasil? Tanto dentro da Igreja quanto do país há enormes disparidades econômicas e sociais. Se cada um de nós fizer realmente o que está ao seu alcance, não poderíamos dar uma valiosa contribuição para que o sofrimento e as angústias fossem erradicados ou, pelo menos, minimizados?
4) Diretamente vinculada ao item anterior está a afirmação de Jesus de que sempre existem pobres conosco e que podemos fazer-lhes o bem, desde que queiramos: (…) sempre que quereis, podeis fazer-lhes bem. Na prática costuma-se ouvir as mais belas desculpas para omitir socorro aos pobres (dar dinheiro a um pobre é dá-lo a um malandro, preguiçoso, aproveitador, etc. e, portanto, jogá-lo fora). Na política costuma-se apelar para o jargão da falta de verbas. Contudo, os incidentes de socorro prestado a bancos falidos no decorrer de 1995/96, chegando à casa de vários bilhões de reais, mostraram o quanto dá para fazer quando se quer, quando se tem a vontade política para tal.
Casos semelhantes deram-se nos últimos anos com os sem-terra e, ultima¬mente, também com os agricultores que perderam suas safras em virtude das secas. Muitas pessoas já chegaram à conclusão: há dinheiro, sim, há verbas, há terras, há outras condições possíveis de financiamento — falta só querer! A palavra de Jesus pode, portanto, ajudar-nos a corrigir nossas falsas escusas em relação ao envolvimento com a causa dos menos favorecidos. Querer ainda não é poder é só uma meia verdade — é possível fazer e alcançar muita coisa, contanto que o queiramos!
5) A ação que motivou a admiração de Jesus foi um fazer sem falar. A mulher não usou de nenhuma palavra. Ela deixou outros sentidos, como o tato, comunicarem a linguagem amorosa do seu gesto.
As igrejas luteranas, centradas que estiveram e estão na palavra falada e escrita, tendem — por isso mesmo — a minimizar o valor de atos. Na verdade algumas ações pregam o evangelho de forma muito mais profunda e pura do que nossas prédicas ou sermões. A Igreja talvez tenha que reaprender a falar menos e fazer mais, e assim acabará pregando melhor o evangelho.
Algumas teólogas feministas destacam neste contexto que as igrejas da palavra'' são normalmente também aquelas que enaltecem a razão e inteligência, apresentando dificuldades com o corpo, com os contatos físicos, com a sexualidade, com os abraços da paz, ósculos (beijos) santos (Rm 16.16), etc. A mulher que unge Jesus pode tornar-se paradigma também para o aprendizado dessa linguagem que procura resgatar o físico como expressão da fraternidade cristã.
Na época da Paixão, convém lembrar-se da cruz como expressão do amor cristão. A crucificação assumida por Jesus foi uma boa ação destituída de grandes interpretações. Jesus não interpreta nada para ninguém com suas palavras na cruz. Unicamente dirige-se a Deus recitando o Salmo 22.1 (cf. Mc 15.22-37, v. 34). Esse seu ato sem palavras, no entanto, veio a tornar-se a razão da nossa fé e esperança, o fundamento de nossa salvação.
6) Em nossa história a mulher encontra-se à mercê de seus críticos. Ela não se apressa a apresentar uma defesa. Jesus assume essa defesa.
Dentro de sociedades patriarcais e machistas os espaços concedidos às mulheres, embora variem de situação para situação, são costumeiramente bastante limitados. É preciso, pois, que as mulheres encontrem em outras pessoas ou grupos apoio para sua caminhada, suas ideias e opções, como esta do texto em apreço. O texto sugere que, a exemplo de Jesus, não nos intimidemos com preconceitos, discriminações e juízos apressados sobre as ações das mulheres, e sim que consigamos fazer uma leitura mais profunda de suas atividades, uma leitura que consiga descobrir o potencial evangélico de suas opções e reivindicações, sem encobrir nossas próprias carências e a superficialidade de nosso amor como homens.
3. Ideias para a Prédica
As seis reflexões apresentadas acima oferecem várias associações para a pregação. A situação específica da comunidade vai determinar quais os pontos que cada pregador/a poderá escolher como ponto de partida de suas reflexões.
À guisa de sugestão, apresento uma ideia para a prédica. Ela poderia tematizar o conteúdo da frase dirigida por Jesus à mulher: Ela fez o que pôde! Este conteúdo poderia ser desdobrado em relação a Jesus (a) e aos pobres (b).
a) Ela fez o que pôde
Jesus defende a ação da mulher em seu favor. A mulher deu a sua contribuição com um vaso de bálsamo preciosíssimo. Ela pagou um preço: expôs-se às críticas.
A ação da mulher levanta a pergunta: como expressamos hoje nosso reconhecimento e amor a Jesus? A Paixão de Cristo poderia ser um tempo em que nos lembramos justamente de tudo aquilo que fazemos por Jesus, mas também daquilo que deixamos de fazer por ele como nosso Senhor e Salvador. Que coisas preciosas temos que poderíamos colocar a seu serviço? Que formas adquirem hoje em dia os frascos de alabastro cheios de perfume caríssimo de nardo puro que oferecemos ao Senhor? Não pensamos unicamente em formas materiais. Há múltiplos meios de pessoas diferentes expressarem o amor e o reconhecimento que têm por Jesus. Podem-se oferecer a ele tempo, dons, etc. Aqui seria muito interessante se o/a pregador/a tivesse algumas histórias a contar, histórias de pessoas que, tocadas pelo amor de Jesus, procuram — cada uma à sua maneira e dentro de suas possibilidades — responder e reagir ao mesmo.
Gestos que traduzem amor e reconhecimento a Jesus receberão também hoje as críticas e a indignação de certas pessoas. Toda e qualquer doação está sujeita a críticas dentro de uma sociedade onde o acúmulo e o lucro, e não a partilha, são os valores vigentes. Assim, nosso envolvimento comunitário em nome de Jesus poderá ser considerado como perda de tempo, nossas contribuições financeiras a igrejas ou outras entidades como jogar dinheiro fora, nosso testemunho da verdade como ingenuidade, nosso estudo da palavra do Senhor como alienação, etc.
b) Sempre que quiserdes, podeis fazer-lhes bem
Jesus não foi um egoísta, que tivesse prazer num amor dedicado unicamente a ele. Não ignorava a existência do submundo, da pobreza, da realidade da fome, do desemprego, etc. Por isso, no mesmo momento em que fala da boa ação que a mulher fez a ele, fala também das boas ações que as pessoas podem fazer aos pobres, desde que o queiram. Isto é assim porque a Paixão de Cristo e a paixão dos pobres estão intimamente ligadas. O fato pode ser facilmente comprovado na perícope do templo (Mc 11.15-19): sumos sacerdotes e escribas querem matar Jesus justamente pelo fato de ele ter expulsado os cambistas e vendedores do templo, exploradores dos pobres.
A prédica deveria destacar, sobretudo, a preocupação de Jesus com a vontade de ajuda aos pobres, ou seja, com o sempre que quiserdes…. Já refletimos um pouco sobre o assunto acima, no quarto item da meditação. Poderia Jesus afirmar de nós em relação aos pobres o que afirmou da mulher em relação a ele? Teria ele motivos para testemunhar a nosso respeito: fizeram o que puderam para os pobres? A Igreja já fez o que pôde? Seu sistema de contribuições procura proteger os mais fracos? Os/as pastores/as não se encontram por demais amarrados e presos à classe média e alta das comunidades? A teologia é fiel ao seu compromisso de testemunhar em favor dos pobres, deles como privilegiados e bem-aventurados do Reino? O governo é sincero quando afirma não ter mais recursos para fins sociais, mas ao mesmo tempo gasta bilhões para subsidiar bancos e empresas privadas? Nossa distribuição de renda — uma das mais injustas do mundo, pela alta taxa de concentração de riqueza nas mãos de uma minoria da população — não clama aos céus por justiça?
Com o sempre que quiserdes Jesus interpela nossa vontade, a disposição existente nas igrejas, sociedades e governos em relação aos pobres. Há uma pressuposição velada nesta frase: é a de que, se de fato quiséssemos, poderíamos ser fonte de muita fartura para os pobres.
4. Bibliografia
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