Prédica: Marcos 16.1-8
Leituras: Isaías 25.6-9 e I Coríntios 15.19-28
Autor: Manfredo Wachs
Data Litúrgica: Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 30/03/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
Há entre os exegetas uma discussão em torno da veracidade do final do Evangelho de Marcos. Diversos exegetas, liderados por Bultmann e Grundmann, são da opinião de que o v. 8 não faz parte do texto original do Evangelho de Marcos. A mesma discussão ocorre em relação aos vv. 16.9-20. Por sua vez, Kümmel é da opinião de que o Evangelho de Marcos circulou desde o início com 16.8 (Kümmel, p. 120). A exegeta feminista Luise Schottroff compreende o texto como uma unidade, sendo que os vv. 7 e 8 estão plenamente integrados no sentido do contexto de Marcos.
A nossa situação diante da preparação de uma prédica está entre a tensão do que a comunidade atual conhece e o que revela a pesquisa histórico-crítica. Negar a necessidade da pesquisa científica seria o mesmo que ficar girando dentro do seu próprio círculo. Contudo, o texto bíblico não pode ser visto como um cadáver diante da necropsia, que fica deformado ao ser recomposto após o exame. Esta, muitas vezes, é a tensão do exegeta que quer fazer a ponte entre a pesquisa e a comunicação de uma mensagem de consolo e esperança no Domingo da Páscoa.
Compreendendo o v. 8 na perspectiva da exegeta feminista, pode-se afirmar que este versículo retrata a realidade tanto da ocasião da redação do texto quanto da época em que ocorreu a ressurreição. Tanto numa quanto noutra situação há uma realidade de perseguição. Os cristãos viviam numa constante tensão. Por um lado, havia a alegria pelos momentos de comunhão, o prazer em divulgar a mensagem de Cristo e o desejo de confessar a fé. Por outro lado, transparecia a necessidade de viver na clandestinidade e de encontrar novos abrigos para os seus encontros.
Os romanos sempre estavam atentos às manifestações de solidariedade, de comunhão e de agrupamento de pessoas. Eles compreendiam que o agrupamento de pessoas poderia resultar em adesão e, conseqüentemente, representar ameaça. Pode-se dizer que essa tensão provoca uma estratégia de clandestinidade. Manifestações de solidariedade e reuniões de comunhão só podiam acontecer na clandestinidade, talvez esta forma de encontro tenha sido a melhor estratégia de sobrevivência. Mesmo que originalmente não tenha sido concebida como estra-tégia, mas muito mais como um recurso de sobrevivência.
Diante da perspectiva acima descrita, é possível afirmar que o v. 8 é um retraio fiel da realidade da época e com a qual muitas pessoas e comunidades conseguem se identificar atualmente.
(…) e elas tiveram medo (…) (v. 8)
Marcos 16.1-8 retrata também o último fracasso dos discípulos. O texto nos revela a consequência da dimensão humana do medo. Por causa do medo, Pedro nega Jesus. Por causa do medo, Pedro e os discípulos permanecem escondidos em Jerusalém, mesmo após a ressurreição de Jesus. E as três mulheres, que se mostram amorosas e corajosas ao irem ao túmulo, também sentem medo. Em todos eles e todas elas, a situação pessoal supera a compreensão da mensagem de Cristo e transparece a dimensão da falta de fé. A mensagem de Jesus de que ele iria ressuscitar no terceiro dia é esquecida diante do dilema pessoal. A mente e o coração ficam como que impedidos de entender e crer.
Por outro lado, pode-se afirmar que o medo se manifesta, justamente, por eles e elas terem compreendido o real significado da cruz e percebido a consequência do sepulcro vazio. Eles e elas tinham consciência de que algo mais profundo mexera com o rumo da sua vida. Não era mais possível uma simples volta à rotina antiga. Não havia mais condições de um Mateus, por exemplo, voltar a ser um simples cobrador de impostos. Havia um medo e uma insegurança diante de um futuro incerto. Eles e elas sempre estavam sendo orientados e instruídos pelo Mestre, e, agora, teriam que tomar as suas próprias decisões e, além disso, instruir outras pessoas.
Eles e elas também estavam conscientes do significado da cruz e do sepulcro vazio diante do poder dominante dos romanos. Precisavam preocupar-se com a perspectiva de serem considerados/as seguidores/as desse Jesus, o Nazareno. Havia o medo diante do que representava o poder romano como ameaça à sua vida. Pois ser classificado/a como seguidor/a seria a morte certa. Se não houvesse o medo, talvez fosse possível afirmar que o esconder-se seria a estratégia da clandestinidade, ou a tentativa de cair no esquecimento para aluai livremente. A realidade e a tensão pessoal superam, entretanto, neste caso, a possibilidade de uma imaginação de guerrilha.
(…) ele ressuscitou (…) (v. 6)
Este nosso versículo trata de uma epifania, da revelação de um fato. É uma revelação que já tinha sido anunciada, mas não entendida c nem esperada, que assim mesmo atemoriza e provoca medo. É uma revelação proclamada através de um desconhecido. E este fato não provoca desconfiança nas mulheres. Um jovem assentado no lado direito do túmulo anuncia que as mulheres estão no lugar errado. Elas não acham o que procuram.
Antes das mulheres se refazerem do susto de encontrar a pedra removida, o jovem anuncia a ressurreição de Jesus, o Nazareno. O jovem anuncia a revelação mesmo antes de ser perguntado. Não está mais aqui aquele que vocês procuram. Isto é, ele estava, mas já partiu na frente de vocês. Ele se antecipou.
Esse jovem conhece a mensagem a ser revelada e também percebe o sentimento e objetivo da visita das mulheres. Entretanto, chama a atenção o fato de que não basta anunciar às mulheres a mensagem da ressurreição, mas também é necessário indicar o lugar vazio. As mulheres precisam tanto da palavra quanto de um sinal concreto. Sinais e palavras se unem para fortalecer a fé. A necessidade de mostrar um sinal está presente em outros momentos da relação de Jesus com seus discípulos e também no processo de aprendizagem. Entretanto, não devemos compreender esse fato como uma demonstração de falta de fé, mas como a necessidade de elucidar o que se crê.
Na dimensão educacional é muito salientada a necessidade de se trabalhar com questões concretas. Ou seja, o processo de aprendizagem na fé não ocorre somente de forma abstraia e intelectual, mas precisa integrar elementos palpáveis, momentos vivenciais e situações concretas. Nesta perspectiva, afirma-se que há formas diferentes de expressar a fé e de compreender o conteúdo da fé.
A figura do jovem é classificada como um anjo. É um anjo que revela às mulheres a mensagem da ressurreição. O anjo não chama a atenção para si mesmo. Ele somente é o transmissor de duas mensagens: da ressurreição e da transmissão da missão. Ele é um intermediário. Nem ao menos cria a possibili¬dade de diálogo com ele e de desvendar algum outro segredo, ou mesmo de esclarecer como ocorreu a ressurreição. O anjo nem cria a possibilidade de se levantar a pergunta se ele presenciou o momento da ressurreição. Ou seja, não permite que a atenção se desvie da mensagem central e da pessoa de Jesus, o Nazareno.
Essa revelação através de um anjo aponta para o destaque que a figura do anjo tem recebido atualmente. O anjo tem se tornado uma figura mística de adoração e portador de uma mensagem pessoal, e não somente transmissor. Encontramos em lojas figuras de anjos ao lado de duendes e em livrarias livros como O Clamor dos Anjos. Para algumas pessoas, o anjo deixou de ser somente uma figura protetora das crianças, para se tornar uma figura religiosa fundamental para adultos. Ou será que poderíamos dizer que para essas pessoas ainda persiste, na vida adulta, a percepção infantil da fé?
(…) e elas foram ao túmulo (…) (v. 2)
O anjo revela às mulheres a mensagem da ressurreição. As mulheres que são descritas nos primeiros versículos são as mesmas relacionadas em 15.40. Entretanto, se compararmos os vv. 40 e 47, pode-se supor que sejam quatro mulheres e não três. Pode-se perguntar se há duas mulheres chamadas Maria, uma sendo a mãe de Tiago e a outra a mãe de José. Entretanto, este dado não se revela fundamental para o nosso texto.
As mulheres mantêm certa distância da cruz, procurando, ao mesmo tempo, acompanhar os acontecimentos da morte de Jesus e se preservar de uma eventual prisão por parte do centurião (15.39). Há outras pessoas observando a crucificação de Jesus. Estas pessoas provavelmente eram eventuais ouvintes de Jesus. Elas ouvem o seu grito de dor e solidão e presenciam os seus últimos momentos de vida. Os discípulos, contudo, não estão presentes. Provavelmente, estão escondidos. Eles se revelam supostamente mais cautelosos do que as mulheres e ficam refugiados.
As mulheres são descritas como sendo as testemunhas dos últimos momentos da vida de Jesus. Elas não são simplesmente pessoas curiosas que presenciam a morte de alguém polémico e nem são moradoras de Jerusalém. O evangelista Marcos salienta que elas eram seguidoras de Jesus na Galiléia e o acompanharam até Jerusalém. Marcos dá ênfase ao termo desde a Galiléia. Com isto ele quer dizer que essas mulheres não são seguidoras recentes.
Elas o seguiam e o serviam, portanto conheciam a mensagem do Mestre. Provavelmente estiveram junto quando Jesus predisse a sua morte e ressurreição. Contudo, esse anúncio transcendia a sua própria capacidade de entender. Além disso, esse anúncio não correspondia à esperança dos seguidores. Essa incom¬preensão está presente tanto nos homens quanto nas mulheres. Por mais que Jesus tentasse explicar com antecedência a sua morte e ressurreição, isso era contraditório ao discipulado. Como seguir alguém que vai morrer? Como crer em alguém que diz que vai morrer, mas vai ficar vivo de novo? Apesar de não compreender certos ensinamentos, elas seguiam Jesus, criam na sua mensagem, confessavam que ele era o Mestre. Os seguidores de Jesus demonstram que a fé transcende a razão. A incompreensão de alguns ensinamentos não era motivo — e nem é hoje — para distanciar-se de Deus.
Duas delas, Maria Madalena e Maria, mãe de José, assistem, provavelmente de longe, a José de Arimatéia tirar o corpo de Jesus da cruz e enterrá-lo. Portanto, elas sabem o lugar do túmulo de Jesus. Somente elas e José de Arimatéia têm condições de ir ao túmulo.
Elas revelam uma preocupação com o corpo de Jesus. Entretanto, a intenção de embalsamar o corpo mostra-se estranha para a realidade daquela época. Podemos apontar dois aspectos que provocam a estranheza para com essa intenção: o corpo já está enterrado e o calor da região torna praticamente impossível embalsamar alguém após passados dois dias da morte. Junta se aqui o fato de que somente ao se aproximarem do lugar elas se dão conta de que o túmulo está lacrado com uma pedra. Apesar de conhecerem este costume, não solicitaram antecipadamente ajuda. Contudo, se espantam ao verem a pedra removida. Pode-se pressupor que a intenção das mulheres é prestar homenagem ao Mestre e não preservar o seu corpo intacto. Elas vão reverenciar Jesus no lugar em que ele foi sepultado.
Na história dos mártires, seja de religiosos ou não-religiosos, há diversos relatos em que os seguidores e as seguidoras transformam o sepulcro num lugar de reorganização das atividades, de resistência, de comunhão dos adeptos, de homenagens aos seus feitos e de reverência à sua pessoa. Há exemplos em que o lugar do sepulcro é transformado em templo para onde as pessoas se dirigem para meditar.
Um exemplo na América Latina é caso de Che Guevara. Recentemente houve expedições procurando localizar com precisão o lugar do seu sepulcro. As informações sempre foram contraditórias. Enquanto algumas pessoas indicavam o lugar com exatidão, outras desmentiam com igual exatidão. Houve um grande cuidado para enterrar o corpo do líder revolucionário num lugar onde as pessoas, sejam seguidores ou mesmo adversários, não soubessem onde era. Havia e ainda há o receio de que o seu túmulo se torne um lugar de peregrinação. Che Guevara é um exemplo. É possível apontar para diversos outros exemplos.
(…) Mas ide, dizei (…) (v. 7)
A mensagem de envio transmitida pelo anjo inicia com uma fórmula de consolo: Não temais. O anjo precisa provocar uma reação nas mulheres. Elas precisam sair daquele estado de choque. Ou, melhor dito, elas necessitam sair da situação de ovelhas dispersas (Mc 14.27; Zc 13.7) e amedrontadas. Mesclam-se nelas o medo frente à aparição divina e o medo diante da perseguição iminente. Essas duas dimensões formam uma unidade. Apesar de o seu medo e sua desorientação serem justificáveis, o anjo tem de tirá-las desse estado de inércia. Entretanto, a relação com o sentimento de medo é diferente entre as mulheres e os homens. Essas mulheres carregadas de medo vão prestar a sua homenagem a Jesus junto ao sepulcro. Os homens não conseguem agir e reagir diante do mesmo medo.
Mas ide, ou seja, reajam. De pessoas que, em estado de medo, agem erroneamente devem nascer pessoas que, em comunhão com outras, de novo seguem Jesus; do rebanho disperso deve nascer o rebanho reunido. De uma situação deve ocorrer uma conversão para outra realidade. O sentimento deve ser revertido. O medo das mulheres não é criticado, pois ele não revela indiferença. O medo revela, justamente, que aquela mensagem da ressurreição está mexendo com elas. E, por isso, o anjo pode apostar nelas. Elas não teriam condições de receber a missão, se estivessem indiferentes frente à revelação.
As mulheres não somente recebem a mensagem da ressurreição, mas também a notícia de que Jesus vai à sua frente para a Galiléia. Elas recebem a tarefa de reunir os discípulos e seguir para a Galiléia, onde o verão. Tanto os discípulos quanto as mulheres recebem a promessa de que na Galiléia reencontrariam Jesus. Pode-se afirmar que as mulheres recebem duas tarefas: a de anunciar uma mensagem e a de reunir os discípulos. A provocação que elas recebem do anjo, precisam aplicar nos discípulos. Precisam provocar uma nova união entre os seguidores e as seguidoras de Jesus.
Mas ide, pois vocês estão no lugar errado. Vocês procuram Jesus no lugar errado. Este foi o recado do anjo. Jesus não está aqui. Ele está na Galileia.
(…) nada disseram a ninguém (…) (v. 8)
Apesar da ressurreição e da revelação do anjo, as mulheres silenciam e fogem. Apesar do pedido e do consolo do anjo nas palavras Não temais, o medo subsiste e supera a fé. Esta perspectiva de Marcos, justamente no final do seu Evangelho, aponta para o fracasso dos discípulos e das mulheres. E revela o quanto a situação e o sentimento humano estão misturados com o conhecimento da mensagem e com a tarefa de divulgá-la. Entretanto, a nossa existência como comunidade cristã é testemunha de que o medo foi superado e a revelação do anjo é transmitida adiante.
(…) lá o vereis (…)
Na Páscoa, nós o vemos de novo. Na Páscoa, os nossos medos podem ser novamente dissipados. Na Páscoa, Jesus nos antecedeu na vida e nos aguarda na comunhão do amor e da dádiva.
Na Páscoa, nós encontramos pessoas que aparentemente nada disseram a ninguém, que receberam a mensagem e a tarefa do Ide e dizei, sentiram medo e se esconderam.
Refletiu-se sobre este texto em forma de blocos, conforme aparecem nos subtítulos, e desta forma se apresentaram alternativas para a sua abordagem na pregação de Páscoa.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1977. 460 p. (Theologischer Handkommentar zum Nenen Testament, 2).
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1982. 798 p.
MALSCHITZKY, Harald. Marcos 16.1-8. In: KIRST, Nelson et al., eds. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1984. vol. X, p. 294-301.
SCHOTTROFF, Luise. Mulheres no Novo Testamento; Exegeses numa Perspectiva Feminista. Trad. Ivoni Richter Reimer. São Paulo, Paulinas, l'»5. 149 p. (Mulher ontem e hoje).