Prédica: Marcos 2.23-28
Leituras: Deuteronômio 5.12-15 e 2 Coríntios 4.5-12
Autor: Guilherme Lieven
Data Litúrgica: 2º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 01/06/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
1. Introdução
As informações sobre o texto oferecem subsídios suficientes para você desenvolver a contextualização do anúncio do evangelho, tendo como base Mc 2.23-28. Os outros itens apresentados sugerem escolhas e repartem uma experiência de trabalho com o texto.
2. Informações sobre o Texto
O texto de Mc 2.23-28 é parte de uma unidade maior — 2.1 a 3.6 — que reúne a memória dos conflitos de Jesus e seus discípulos com os fariseus e escribas. Exegetas indicam a possibilidade de essa unidade ter sido material de auxílio para as comunidades argumentarem diante das interpretações das leis do Antigo Testamento. Provavelmente esta unidade de textos já existia antes da redação do Evangelho de Marcos. Certamente Marcos acolhe esse material em sua redação para o mesmo fim, para promover o debate diante do poder ideológico dos que interpretavam e manipulavam as leis.
A polêmica do nosso texto é a santificação do sábado, as versões diferentes da interpretação dessa lei. Os discípulos de Jesus foram flagrados pelos fariseus colhendo espigas (de trigo) no sábado (v. 22). Nos textos paralelos encontramos em Mt 12.1 que os discípulos tiveram fome, em Lc 6.1 que comiam as espigas, debulhando-as com as mãos. Os fariseus denunciam Jesus e seus discípulos por fazerem o que não é lícito (colher) no sábado (v. 24). A lei proibia a colheita no sábado (Dt 5.12-15 — texto de leitura neste 2a Domingo após Pentecostes). Para os fariseus o preço desse erro de Jesus e seus discípulos c a morte (Mc 3.6).
Nunca lestes…?, pergunta ele (Jesus) aos conhecedores da lei (v. 25). Jesus interpreta o Antigo Testamento e compara a sua situação e a dos seus discípulos com o que aconteceu a Davi e seus companheiros. A situação de necessidade — fome — de Davi e seus companheiros sobrepôs-se à lei. A necessidade gerou a liberdade de ação de Davi: exigir e comer os pães sagrados mesmo não sendo lícito (v. 26). Fica subentendido que a fome dos discípulos é suficiente para justificar a ação de colher no sábado.
Jesus desafia os fariseus e a hegemonia ideológica deles e de outros grupos dominadores: escribas, sacerdotes, herodianos, etc. A interpretação e sacralização da lei tinham a função de justificar poderes dominadores desses grupos religiosos organizados. Cabia ao povo dizer sim, sim para a lei, conforme a interpretação desses grupos, mesmo que esse cumprimento cerceasse a vida (o acesso ao pão, no nosso caso). O absolutismo como critério para a interpretação era o mecanismo de poder usado pelos fariseus e escribas.
Os critérios de Jesus para a interpretação da lei são diferentes. As novas versões de Jesus para a lei (na unidade de Mc 2.1 a 3.6) questionam o consenso ideológico em voga, defendido e articulado principalmente pelos fariseus. Assu¬mem a função desestabilizadora das formas vigentes de poder.
O sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado (v. 27). Marcos é o único a apresentar este provérbio. É o dito central em nosso texto. Na interpretação de Jesus o sábado é dádiva, um dom de Deus, em benefício do povo. A vontade (e a necessidade) dos discípulos de comer o trigo é maior do que a lei do sábado. Esta é uma nova versão do que é lícito ou não, na interpretação de Jesus para a lei do sábado. Não o diminui nem promove a desobediência ao mandamento de Deus. Dá aos pobres, aos famintos a liberdade de também no sábado comerem, viverem. Procurando uma justificativa teológica para essa ação de Jesus podemos remeter a Gn l e mencionar aquela saída exegética de que a pessoa humana foi criada no sexto dia, primeiro. Depois o sábado foi criado. Esse esforço é desnecessário. Marcos aponta para a autoridade de Jesus, o Filho do homem.
… o Filho do homem é senhor também do sábado (v. 28). Jesus se declara capacitado para dar a interpretação correia da lei do sábado. Arroga para si o poder de manifestar a vontade original da lei de Deus para evitar a sua inversão. Para os escribas e fariseus somente Deus tinha esse poder sobre a lei. Podemos até dizer que Jesus chama para si o controle ideológico da lei, uma espécie de resgate. Temos aí a valorização da presença histórica de Deus no mundo através de Jesus, o Filho do homem. Aquele homem Jesus, cercado dos seus seguidores, agora é apresentado como quem tem autoridade para resgatar o objetivo original da lei: facilitar a festa, matar a fome, romper o domínio de poucos, impedir a injustiça, abrir caminho para a cura, a liberdade e a vida. Assumir a presença histórica de Deus através de Jesus significa estar atento para novos paradigmas, critérios, caminhos.
3. O Texto Indica: Questionar e Anunciar
O texto aponta para o poder de Jesus de resgatar o objetivo do sábado. Ele foi criado para nós. Não somos escravos do sábado e da lei. Jesus assume a ação histórica de Deus de resgatar a liberdade. Concluímos, então, que o texto desafia para o questionamento da manipulação ideológica da vontade de Deus, seja pela revelação através da palavra da Bíblia ou por experiências concretas e históricas. E, ainda, aponta para o anúncio do senhorio de Jesus, Deus conosco que, através do seu ato salvífico e de suas ações históricas concretas, oferece critérios, versões ou paradigmas novos para determinarem a luta da vida no dia-a-dia. Todos os dominados pela lei, por mandamentos e normas de ordem eclesiástica ou civil, encontram em Jesus critérios que autorizam a desobediência na luta pelos direitos vitais.
4. Podemos Escolher o Perfil da Mensagem
Baseando-nos no estudo e nas conclusões acima podemos escolher os rumos da nossa contextualização. É urgente, por exemplo, fomentar o questiona¬mento a segmentos econômicos e políticos da sociedade que exercem poder nefasto, especialmente sobre as camadas excluídas da população. Interpretam e manipulam as leis com rigor. E, de maneira casuística, colocam-nas em vigor conforme a sua conveniência. Refiro-me a ações judiciais, leis do mercado econômico e financeiro, programas da justiça eleitoral, ações legislativas e executivas e assim por diante. Feito esse questionamento, podemos anunciar os critérios novos de Jesus, a presença viva de Deus na história e em nosso meio. Com esse anúncio podemos facilitar as práticas comunitárias e o apoio a todas as iniciativas da população que, em seus movimentos e interferências na sociedade, tomam como critério a vida e as necessidades das crianças, doentes, idosos, jovens, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras, índios, negros, etc.
Ao escolher, também é possível restringir-se ao meio religioso e cristão, apontar para as falhas e aberrações praticadas pelas diferentes igrejas e religiões que usam leis e instrumentos normativos que escravizam. E, em muitos casos, tais ações assumem função ideológica ampla, tornando-se aparelhos de lodo o sistema diabólico que afasta a população do projeto e das obras de Deus. Neste caso anunciar a presença viva de Jesus Cristo a partir desse exemplo histórico que rompe com a escravidão da lei do sábado torna-se uma necessidade imperiosa. Podemos anunciar Jesus como quem tem autoridade para libertar as pessoas das propostas eclesiásticas escravizadoras, da teologia enganadora e do falar de Deus manipulador.
5. Uma Experiência com o Texto
Quando apresentamos esse texto e as informações sobre ele a grupos e comunidades, numa proposta de diálogo, os rumos da contextualização podem mudar. O diálogo encaminha o estudo para questões mais simples.
Tenho uma experiência nesse sentido. Fui surpreendido ao trabalhar esse texto num grupo de estudo bíblico. Ignoraram os enfoques apresentados e compartilharam experiências e ideias relacionadas exclusivamente com a questão do sábado e do domingo. As igrejas que guardam o dia de descanso no sábado têm promovido insegurança nos cristãos que santificam o domingo. Esse tema é vivencial principalmente na cidade. Não podemos fugir dele. Ao contrário, devemos assegurar que as reflexões de hoje sobre o dia de descanso contemplem os critérios de interpretação da lei apresentados por Jesus no texto de Marcos.
5.1. O Sábado e o Domingo
Para isso, importa resgatar a amplitude teológica e traços históricos do sábado e do dia de descanso. Sugiro elaborar um folheto para ajudar a comunicação dos dados mais importantes. E, também, para direcionar a dinâmica do estudo ou da mensagem.
Temos uma dívida enorme com o sábado. O catecismo usado na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECEB), por exemplo, traduz o mandamento do sábado como: santificarás o dia de descanso. Pressupõe que o domingo engoliu o sábado sem deixar história. Os que guardam o sábado têm argumentos que constrangem os cristãos. E os que estudam esse tema apontam para o resgate da sua importância teológica.
O sábado deve ser entendido como a conclusão da criação. Esta conclusão se dá através da presença repousante do criador na criação. Esta presença de Deus é a primeira revelação de Deus na sua criação; não é uma revelação criadora, mas repousante, não indireta e intermediada, mas uma revelação direta. (J. Moltmann, p. 408.)
No Decálogo, o mandamento do sábado é o mais longo. Ele é central. Ocupa uma posição de destaque entre os mandamentos que se referem a Deus e os mandamentos que regulam as relações com o próximo. Trata-se de um dia sem trabalho, de não fazer nada, a cada período de sete dias. O fazer nada inclui a todos, os animais e toda a criação de Deus. No sétimo dia, a criação é semanalmente restaurada e festejada (J. Moltmann, p. 410).
Essa dimensão da lei do sábado está contemplada pela santificação do dia de descanso no domingo? Damos ao domingo o sentido do sábado cristão como cumprimento do mandamento do descanso? A celebração cristã relacionada com a ressurreição de Jesus surgiu apenas no século 2. No início o domingo de hoje não tinha nome próprio — na contagem judaica: primeiro dia da semana (Ap 20.7; l Co 16.2; Mc 16.2; Jo 20.1,19). Também foi chamado de oitavo dia, referindo-se ao dia dedicado ao culto do sol. No início os cristãos judaicos observavam o sábado e na noite do sábado para o domingo reuniam-se cm comunidade para celebrar a Santa Ceia. Na manhã de domingo celebravam os batismos. Após o concilio dos apóstolos (At 15.5; Gl 4.8; Cl 2.16s.) os gentios tornavam-se cristãos sem a necessidade de observarem a lei judaica. A celebra¬ção da ressurreição de Jesus separou-se do sábado. A destruição do templo de Jerusalém e a proibição do imperador Adriano de observar a lei judaica contribuíram para o fortalecimento da festa dominical e para o distanciamento do sábado em sua dimensão fundamental. Com o imperador Constantino, a partir de 312, o domingo transformou-se no dia de descanso reconhecido pelo Estado.
Os cristãos precisam resgatar o sábado de Israel: devolver ao dia de des¬canso a obra da criação de Deus, o descanso de Deus e o descanso de tudo e de todos na presença de Deus. Nesse resgate entra a importância do texto de Mc 2.23-28.
Jesus não aboliu o sábado. Apresentou-se como senhor também do dia de descanso. Devolveu ao sábado a liberdade: ele foi criado para as pessoas. Jesus resgatou para os necessitados e famintos o acesso aos direitos vitais. Ele indicou: na festa da criação não pode faltar o pão.
5.2. Propostas para a Celebração
1. Elaborar um folheto, para distribuição ampla na comunidade, contendo informações sobre o sábado, referências bíblicas e propostas para um debate sobre o tema.
2. Para os mais corajosos sugiro iniciar a celebração nos moldes tradicionais e permanecer 15 a 20 minutos sem fazer nada. Um gesto para colaborar com a mensagem.
3. Solicitar a um grupo de pessoas da comunidade um levantamento simples das coisas que exigem trabalho no dia de descanso. E, na cidade, enumerar as indústrias e estabelecimentos que funcionam. Passar essa tarefa pelo menos um dia antes.
4. Fazer um levantamento, durante a celebração, das coisas que acontecem no domingo nas casas, no bairro, na rua, nos espaços de lazer.
5. Relacionar esses dados e as informações com o sábado da criação c com o domingo da ressurreição — a presença do Deus que descansa e do Cristo que vence a morte e diz não a todas as forças e instrumentos normativos escravizadores que separam as pessoas da festa da vida.
6. Concluir apontando para a profanação do sábado e do domingo e anunciar o resgate do dia de descanso: uma festa messiânica, uma antecipação histórica da vida — direito a estar com Deus, direito à satisfação das necessidades vitais, direito ao repartir: lutas, esperanças, alegrias, dores, fé, amor…
6. Bibliografia
BRANCHER, Mercedes. O que Importa É Fazer Caminhos; um Estudo dos Relatos de Controvérsias em Marcos 2.1-3.6. Mosaicos da Bíblia, São Paulo, CEDI/Koinonia, 14:31-36, jun. 1994.
MOLTMANN, Jürgen. Deus na Criação; Doutrina Ecológica da Criação. Petrópolis, Vozes, 1993.
SCHMID, Josef. El Evangelio según San Marcos. Barcelona, Herder, 1973.