Prédica: Marcos 4.35-41
Leituras: Jó 38.1-11 e 2 Coríntios 5.14-17
Autor: Cláudio Molz
Data Litúrgica: 5º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 22/06/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
1. O Evangelho segundo Marcos 4.35-41
35 E lhes diz naquele dia ao entardecer: Passemos ao outro lado!
36 E deixando a multidão, o levaram junto, pois estava no barco. E outras embarcações estavam com ele.
37 E surgiu um grande vendaval e as ondas se lançavam para dentro do barco, de modo que o barco já estava ficando cheio.
38 Mas ele mesmo estava dormindo na popa sobre um travesseiro. E o despertam e lhe dizem: Mestre, não te importa que morramos?
39 E depois de se levantar, fez uma admoestação ao vento e disse para o mar: Fica quieto! Cala-te! E o vento parou e surgiu uma grande calmaria.
40 E lhes disse: Por que são tímidos? Ainda não têm fé?
41 E tiveram um grande medo e diziam um para o outro: Quem será que é este que até o vento e o mar lhe obedecem?
2. O Texto
No v. 36 vários códices parecem se complicar com o singular estava, regular em grego para plurais neutros, e tentam emendar. No fim do versículo há uma pequena divergência na tradução entre as edições bíblicas. Uma grande parte (Lutero, Zürcher, entre outros) traduz à semelhança de Almeida: (…) assim como estava, no barco. Creio que se deva entender que o autor quis se referir ao fato de que, enquanto os discípulos precisaram primeiro se desvencilhar da multidão, Jesus já se encontrava no barco, porque era dali que costumava pregar, como Marcos já havia explicado anteriormente em 3.9. A situação não sugere dar ênfase ao como, mas sim ao onde de Jesus. Aliás, é bom que as traduções na linguagem de hoje (em inglês, alemão, espanhol, português) tenham enveredado por esse caminho: (…) no barco em que Jesus estava e foram com ele. No v. 40 há uma intenção de realçar o conteúdo: Por que são tão tímidos? Na minha tradução acima procurei ser o mais literal possível, mais com o intuito de fazer ver o que está, não necessariamente para ser lido no culto. O texto está bem conservado. As diferenças entre os códices denotam em geral uma preocupação gramatical.
Quanto à localização: no contexto posterior (Mc 5.1) se narra uma história que se passa em Gerasa, a cerca de 60 km do Mar da Galiléia. Por ser tão longe do lago, houve várias sugestões de mudança: ou para Gadara, a cerca de 15 km, ou a um lugar junto ao próprio lago, mas cuja localização exata se ignora, que se chama de Gergesa. É difícil, portanto, identificar aonde chega o grupo, ao desembarcar no outro lado. A questão reafirma a teoria já amplamente aceita entre os pesquisadores de que as indicações geográficas de Marcos não são mais do que elementos de estruturação, já que são difíceis de encaixar numa sequência lógica. No contexto anterior (caps. 1-4), de qualquer maneira, Marcos dá a impressão de que o início da atuação de Jesus se deu nas redondezas do lago da Galiléia: Caminhando junto ao mar da Galiléia… (Mc 1.16), convoca os seus primeiros discípulos. De novo saiu Jesus para junto do mar… (Mc 2.13), a fim de convocar mais outro discípulo junto a uma coletoria. Então recomendou (…) que sempre lhe tivessem pronto um barquinho, por causa da multidão, a fim de não o comprimirem. (Mc 3.9.) Voltou Jesus a ensinar à beira-mar. (Mc 4.1.)
Às vezes Jesus volta para a sua casa paterna em Nazaré, mas mora em Cafarnaum ou perto dali. Sua pregação se dirige às pessoas que vivem da pesca ou gostam de estar perto da água do lago. Jesus aproveita essa circunstância e lhes fala, sobretudo com muitas imagens. O povo, porém, nem sempre o entende direito. Quando mais tarde, depois de já haver atuado por algum tempo, se arrisca a voltar de novo, agora na qualidade de um rabino conhecido, para a cidade da sua infância, Nazaré, teve que experimentar uma forte rejeição, levando-o a dizer: Não há profeta sem honra senão na sua terra, entre os seus parentes, e na sua casa. (Mc 6.4.)
3. O tema
3.1. Jesus: Dominas a fúria do mar…
A temática principal do texto é essa discrepância entre os feitos de Jesus e a compreensão do povo e até mesmo dos discípulos. Jesus se mostra como alguém que domina os poderes que ameaçam a vida. Cura as doenças das pessoas. São doenças físicas, psíquicas, psicológicas e também espirituais. É um médico de clínica universal. Essa prática gera a pergunta de admiração e curiosidade: Quem será que é este que até o vento e o mar lhe obedecem? (Mc 4.41.) A resposta para essa questão é a chave para uma boa interpretação do nosso texto:
Ó Senhor dos Exércitos, quem é poderoso como tu és, Senhor, com a tua fidelidade ao redor de ti! Dominas a fúria do mar; quando as suas ondas se levantam, tu as amainas. (…) Porei a sua mão sobre o mar, e a sua direita sobre os rios. Ele me invocará, dizendo: Tu és o meu pai, meu Deus, e a rocha da minha salvação. Fá-lo-ei, por isso, meu primogênito, o mais elevado entre os reis da terra. (SI 89.8-9,25-27.)
Mas o Senhor nas alturas é mais poderoso do que o bramido das grandes águas, do que os poderosos vagalhões do mar. (Sl 93.4.)
Os que, tomando navios, descem aos mares, os que fazem tráfico na imensidade das águas, esses vêem as obras do Senhor, e as suas maravilhas nas profundezas do abismo. Pois ele falou, e fez levantar o vento tempestuoso, que elevou as ondas do mar. Subiram até aos céus, desceram até aos abismos; no meio dessas angústias, desfalecia-lhes a alma. Andaram, e cambalearam como ébrios, e perderam todo o tino. Então, na sua angústia, clamaram ao Senhor, e ele os livrou das suas tribulações. Fez cessar a tormenta, e as ondas se acalmaram. Então se alegraram com a bonança; e assim os levou ao desejado porto. (SI 107.23-30.)
O texto, portanto, expressa que Jesus é o Cristo, enviado por Deus, conforme os textos citados do AT indicam. Na sua simples novela Marcos quer clarear essa afirmação cristológica.
3.2. Fé: Ele é o barco da salvação
Os discípulos são profissionais da área da navegação e da pesca. Não devemos fomentar a falsa ideia de que o medo não tivesse razão lógica. Os barcos no Mar da Galiléia são pequeninos mesmo. Diante do vendaval eles estão apavorados. A sua ciência acabou. A técnica parece já não resolver o medo que deles se apoderou. Diferentemente dos marujos que levavam Jonas, nem sequer tentam aplicá-la. Resignam e, com isso, realçam a sua falta de fé. Mas a presença de Jesus, ainda que dormindo, os anima a expressar a situação desesperada em que se encontram e a confiar no seu amor. Eles o despertam. Antes Jesus sempre fora atendido por eles. Eles o conduziam no seu barco, eles lhe arranjavam um barquinho de refúgio diante da avalancha da massa que se empurrava na beira da praia para obter acesso ao médico e cura dos seus males. Nessa cena, porém, se invertem os papéis: termina a ação dos discípulos e Jesus entra em ação. Jesus se torna para eles o único barco. Ele é o barco da salvação.
O texto, portanto, tem a intenção de indicar que há salvação no barco, símbolo da Igreja, reduto de Jesus, o Senhor, assim como por primeiro Tèrtuliano falava daquele barquinho como símbolo da Igreja, porque é perturbada no mar, isto é, no mundo, pelas ondas, isto é, pelas perseguições e tentações, estando o Senhor como que a dormir em sua complacência, até que, despertado finalmente pelas orações dos santos, subjuga o mundo e concede aos seus de novo a tranquilidade. (Sobre o Batismo, c. 12, apud Held, 74.)
4. Pois o Amor de Cristo Nos Constrange… (2 Co 5.14)
Jesus não usa o seu poder para tornar-se um taumaturgo, um milagreiro. A glorificação de Jesus surge espontaneamente entre o povo de fé, porque a atuação dele corresponde à do Criador. No fundo, a intervenção de Jesus presta um serviço às pessoas. É por amor que ele age. E sempre lembra um aspecto decisivo: não é da sua pessoa que provêm essas forças, mas de Deus. Para deixar isso bem claro, menciona repetidamente a questão da fé. Por fé é que ele consegue realizar os milagres. Na fé, é o próprio Deus quem atua. Já não somos nós que atuamos, mas é o próprio Deus em ação.
Para a tradição hebraica uma das fontes de maior medo é a água. O mar, por exemplo, encerra o terrível monstro marinho que só Deus é capaz, de destruir:
(…) esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu despedaçaste as cabeças do crocodilo (…) (Sl 74.13b,14a). Naquele dia o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o dragão, serpente veloz, e o dragão, serpente sinuosa, e matará o monstro que está no mar (Is 27.1).
Esse medo antigo da água e dos seus terrores escondidos é alimentado em crenças e textos seculares. O ambiente da Palestina é de morros, pouca água, clima frequentemente árido ou semidesértico. A cena do vendaval, açoitando as águas do Mar da Galiléia, e de Jesus, dormindo mansamente no fundo do barco, faz os discípulos sentirem um pavor que aflora das profundezas da sua alma, subitamente exposta ao perigo iminente dos elementos. Para a força humana são incontroláveis. Os detalhes de onde e sobre que Jesus dorme realçam o suspense, porque sem a sua intervenção a salvação se torna praticamente impossível. Decerto os discípulos se lembraram da oração de Jonas no ventre do peixe: Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me respondeu; do ventre do abismo gritei, e tu me ouviste a voz. Pois me lançaste no profundo, no coração dos mares, e a corrente das águas me cercou; todas as tuas ondas e as tuas vagas passaram por cima de mim. (Jn 2.2-3.)
Deus É Poderoso
Deus é poderoso.
Há alguém entre nós que está a caminho
do descanso na sua vida e teme a morte?
Por que esse medo?
Deus é poderoso.
Há alguém entre nós que está desesperado
por causa da morte de um ente querido?
Por que desesperar?
Deus pode dar a força
de suportar o sofrimento.
Alguém se preocupa
com sua saúde precária?
Por que se preocupar?
Venha o que vier, Deus é poderoso.
Quando os nossos dias estão escuros
c as nossas noites, mais tenebrosas que mil meia-noites,
queremos sempre pensar
que no mundo
existe uma grande força de bênção,
e ela se chama Deus.
Deus pode mostrar caminhos
para fora do beco sem saída.
A escuridão de ontem quer se transformar
na claridade de amanhã
— por fim, na radiante aurora
da eternidade.
(Martin Luther King)
5. Meditação
Considerando que a nossa história tem duas culminâncias, a cristológica e a eclesiológica, deveríamos procurar meditar sobre essas duas realidades:
a) Quem é Jesus?
b) O que é a Igreja?
a) O contexto em que Marcos inseriu a nossa passagem indica que Jesus não realiza apenas um milagre na natureza, mas sobretudo é um libertador do medo. O vendaval que ameaça a vida dos discípulos não é só um fenómeno natural, mas é expressão dos demónios. Isso se deduz do fato de que a ordem de Jesus dirigida ao vento e ao mar em 4.39 tem o seu paralelo em 1.25; e a admiração popular que resulta da primeira intervenção de Jesus contra um demônio em 1.27 é similar ao que o povo diz em 4.41. Cria-se, assim, uma relação entre a expulsão do demónio de um endemoninhado na sinagoga de Cafarnaum e a expulsão do demónio do vento e das águas no Mar da Galiléia. Assim Jesus não intervém necessariamente nas leis naturais, como parece a nós, filhos do iluminismo e das leis da física clássica, mas se expressa como o Senhor da criação e, para nós, Senhor da história. Não são os poderes demoníacos que determinam a nossa vida, mas estamos sob a proteção de Jesus, cujo poder é igual a Deus, que criou o mundo por meio da Palavra. Esse Verbo eterno toma contato conosco e nos redime da opressão do terror e da morte. A soberania de Deus se revela na tranquilidade de Jesus. É capaz de dormir sossegadamente quando os elementos, instigados pelo demónio, rugem de maneira ameaçadora. Mas essa calma não o leva à impassibilidade. Sabe ouvir as orações dos seus amigos. Atende-as prontamente, ainda que com plena autoridade e espirito crítico.
b) O barquinho em que estão Jesus e os discípulos é frágil. Se ele representa a Igreja de Deus nesta terra, esse milagre nos ensina que muitas vezes a Igreja navega em tempos tormentosos. O mestre aparentemente está desinteressado. Os discípulos não sabem mais o que fazer. A Igreja fica entregue às ondas do tempo. O inundo toma conta dela. Aproveita a liberdade e o espaço que Deus na sua magnanimidade concede para assediar e amedrontar os discípulos.
Isso nos consola sobremaneira. Os discípulos também não foram aqueles heróis da fé. Não têm a auréola da santidade. Não lograram evidenciar a fé necessária para enfrentar a prova. Mas é certo que Marcos não nos nana essa história para conformar-nos com a nossa incapacidade, e sim para intranqüilizar-nos de uma forma positiva. O fato de Jesus ficar dormindo nessa situação irritou os discípulos e lhes foi um escândalo. Como pode o Senhor permitir que a sua Igreja e ele mesmo vão a pique, levando à perdição todo o projeto do reino de Deus?
A tranquilidade de Jesus, porém, nos indica a única saída desse impasse. Ele nos convida a participar dessa tranquilidade. Não a obteremos a partir das nossas próprias forças. É dom de Deus. A fé não é coisa pequena. Lutero nos diz na explicação do primeiro mandamento: Devemos temer e amar a Deus sobre todas as coisas. Jesus nunca nos prometeu que nada nos ameaçaria, mas que segui-lo significa tomar sobre nós a nossa cruz. É necessário estar preparado para morrer com ele e confiar no seu poder criador. Held nos lembra, no seu auxílio homilético, que Jesus dá duas ajudas:
1. Ele admoesta e domina os elementos demoníacos.
2. Ele admoesta e fala com os seus discípulos, infundindo-lhes fé.
A primeira ajuda representa a crítica contra o nosso simples discurso sem gestos de fé. A admoestação se baseia no exemplo de fé que não se deixa dominar pelo aspecto externo deste mundo, com suas ameaças, suas manifestações de poder, querendo arrastar-nos ao desânimo, timidez, medo e covardia. A fé não deve se deixar influenciar pelo que se vê (Hb 11.1). O gesto de Jesus nos convida, a exemplo do hábito pascal da Igreja Ortodoxa, de dar uma risada na cara da morte e dos seus representantes. Com o seu gesto à nossa frente podemos deixar de ser tímidos (Mc 4.40) e podemos dar um testemunho destemido, como o martírio de muitos antes de nós nos faz ver.
6. Bibliografia
DAENECKE, Paulo A. 5o Domingo após Pentecostes; Marcos 4.35-41. In: KILPP, Nelson & WESTHELLE, Vítor, eds. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1990. vol. XVI, p. 200-204.
HELD, Heinz Joachim. 4. Sonntag nach Epiphanias; Markus 4,35-41. tn: FALKENROTH, A. & HELD, H. J., eds. hören und fragen. Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1978. vol. l, p. 71-78.