Prédica: Marcos 5.24b-34
Leituras: Lamentações 3.22-33 e II Coríntios 8.1-9,13-14
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: 6º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/06/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXII
1. Considerações Exegéticas
O exegeta Walter Grudmann, em seu comentário sobre o Evangelho de Marcos, vê o nosso texto dentro de um contexto maior, que ele delimita de 4.35 a 6.6a. Como título do trecho todo ele coloca O Senhor que supera a todos. Podemos seguir a Grundmann para definir o contexto de nosso trecho, aliás, ainda extraído como subtrecho dos vv. 21-43 (O Senhor sobre doença e morte). O contexto maior estaria, pois, subdividido em quatro partes, a saber: 1. 4.35-41 — O Senhor sobre as forças da natureza; 2. 5.1-20 — O Senhor sobre os demônios; 3. 5.21-43 — O Senhor sobre doença e morte; e 4. 5.44-6.6a — A rejeição em Nazaré. O trecho que é objeto do presente auxílio poderia então ter como título Jesus, Senhor sobre a doença. Como se sabe, trata-se de um acontecimento inserido na história da ressurreição da filha de Jairo, chefe da sinagoga, que veio chamar Jesus para dar assistência à sua filha que já estava à morte.
O contexto maior mostra, portanto, Jesus agindo como messias que tem poder sobre as forças da natureza, a doença e a morte, sem que isto o poupe de ser rejeitado pelos seus conterrâneos. O seu senhorio é evidenciado através de realizações de poder, também chamadas de maravilhas (6.2) ou milagres. Sem dúvida, causaram espanto, pois perguntam: Donde vêm a este estas coisas?
Vamos, agora, à análise do nosso trecho, versículo por versículo:
V. 24b: A observação de que grande multidão o comprimia já prepara a história que agora se vai inserir, pois é argumento depois dos discípulos (v. 31). Entre esta multidão, a mulher que agora é apresentada pelo evangelista pode ser um número que passa despercebido naquilo que faz.
Vv. 25 e 26: Com poucas palavras se caracteriza a história da doença desta mulher, e não somente o tipo de doença. O sofrimento é de longa data (12 anos!). E não que ela ou os seus não tomassem as providências a que tinham acesso. Ela até possuía recursos para recorrer a médicos acreditados. Mas esses estão agora completamente esgotados. Só que o sofrimento não passou. A doença crónica e muito incômoda está aí, sem perspectiva de cura. Isto também tira toda a perspectiva de uma vida social normal para essa mulher. De acordo com as leis judaicas, ela deve ser considerada imunda (cf. Lv 12.1ss.). Todos os objetos que ela toca estarão contaminados, aliás as pessoas também! A situação da mulher é realmente desesperadora. Nós conhecemos situações assim.
Vv. 27 e 28: Ela ouviu falar da fama de Jesus — decerto a fama de que ele possui poderes sobrenaturais, diferentemente dos médicos e de qualquer autoridade religiosa. Esta é a última chance dela. Dá-lhe coragem para desprezar as prescrições religiosas e rituais (não poderia estar entre pessoas, não poderia tocar ninguém sem antes se purificar, o que por sua vez não adiantaria). Toma uma decisão: Vou tocar a veste do homem famoso. Isso bastará para aproveitar a força milagrosa dele para me curar. Que fé é essa? Ainda uma fé que conta com o poder mágico.
V. 29: Verdadeiramente espantoso: constata-se que logo se lhe estancou a hemorragia. Então funcionou! Está (e estará?) livre do flagelo. Dali para a frente poderá ter uma vida normal como as outras pessoas. O flagelo mencionado pode ser entendido como instrumento do demónio a fustigar as pessoas ou castigo de Deus, como certamente os judeus interpretaram. A mulher imediatamente percebe que o fluxo de sangue, que tanto tempo a atormentou, cessa.
V. 30: No mesmo instante Jesus também nota o que aconteceu. É como se uma corrente de energia tivesse sido acessada. Ele fica parado, vira-se no meio da multidão e pergunta: Quem me tocou nas vestes?
V. 31: Os discípulos devem estar nas imediações, pertinho de Jesus. Acham a pergunta dele fora de lógica. Certamente não teria sido a primeira vez que alguém dentre a multidão que está se acotovelando tocou no mestre. Que pergunta!
V. 32: Mas Jesus insiste. Ele sabe melhor o que realmente aconteceu. O seu propósito é justamente esclarecer perante todos, mas também em benefício daquela que procurou a ajuda dele com tanto empenho e intuição feminina, a verdadeira situação. Ele tira o tempo para concluir o milagre que se operou na mulher. Aparentemente não lhe basta ter feito mais uma cura. É preciso que a mulher seja conduzida da fé mágica para uma fé consciente e pessoal em Jesus.
V. 33: Para a mulher, no primeiro momento, tudo pareceu complicar-se. Para ela bastava a cura. Tem todo o motivo para tremer. Um rabino, conhecedor da lei, e toda essa gente, também instruída na lei judaica, a surpreendem em flagrante delito. Ela transgrediu a lei e até contaminou o mestre que se dirigia à casa do chefe da sinagoga. Este poderá incriminá-la por causa de sua transgressão. O que lhe resta senão lançar-se aos pés do mestre e confessar-lhe toda a verdade? Isso dá a Jesus a oportunidade de estabelecer com ela um relacionamento de pessoa a pessoa e, com isto, de fé verdadeira que reconhece nele o salvador da pessoa toda.
V. 34: Em atitude soberana, Jesus chama essa mulher de filha, embora pudesse ter bem mais idade do que ele. Mas agora pela fé em Jesus tornou-se filha do Pai celeste. Concedeu-lhe paz pelo perdão. Só agora está definitivamente livre do seu mal, pois agora a crendice mágica se transformou, pela intervenção de Jesus, em fé pessoal.
2. Meditação
A presente história mexe com qualquer um, pois todos nós conhecemos o que é doença crónica ou um mal que obriga o doente (ou deficiente) a ser uma espécie de pária, alguém excluído do convívio social. Aí o sofrimento se torna duplo. Mas ainda há outro motivo: a ciência médica do tempo de Jesus nem se compara com a dos dias de hoje. Os avanços tecnológicos na medicina são espantosos. Mas está aí o fato de que uma multidão no Terceiro Mundo não tem acesso à medicina. Sofre durante anos, porque não tem plano de saúde particular. Depende do SUS. Ali muitas vezes a lista de espera é longa para chegar a um tratamento especializado. Não admira, pois, que se busque todo tipo de soluções alternativas, em que também entra a crendice sob diferentes formas.
Mas não são apenas os carentes de recursos financeiros que vão atrás de outra assistência à saúde do que a médica. Todos sabem de situações em que, à semelhança daquela mulher, muitas pessoas também sofreram muito na mão de muitos médicos, gastando inclusive o seu patrimônio, sem conseguir cura. E se alguém sofre de uma doença tida como incurável? Câncer ou AIDS? O que então? Resignar-se e morrer?
A mulher na história teve uma coragem nascida do desespero. Ainda bem que ela não caiu na mão de um curandeiro inescrupuloso, mas foi ter com Jesus. Bem, isso foi naquela época. Jesus cumpria a sua missão na terra. E hoje? Hoje nós temos 20 séculos de história da Igreja, 20 séculos de anúncio do evangelho. Podemos saber mais do que a mulher sabia. Como cristãos evangélicos, instruí¬dos na fé, temos até a obrigação de saber como lidar com as doenças. Seria leviandade não fazer uso dos recursos médicos ao nosso alcance, assim como é negligência e omissão quando não cuidamos da nossa saúde e da dos nossos concidadãos, inclusive no sentido de ajudá-los na busca de assistência à saúde.
Do mesmo modo sabemos que o Senhor é o verdadeiro médico. Os profissionais da saúde são instrumentos na mão de Deus. Por isso o doente cristão recorre, em oração, desde logo a Deus ao mesmo tempo que vai ao médico. A comunidade cristã deve tomar conhecimento de quem está doente em seu meio (cl. Tg 5.14) para que possa fazer orações. Essa prática precisa ser outra vez redescoberta entre nós. Isto, sem dúvida, ajudaria muito a fortalecer a comunhão de uns com os outros e a minorar o sofrimento. Como é animador para um doente, seja em casa ou no hospital, saber: há pessoas, irmãos na fé, que se importam comigo, levam o meu caso perante Deus, estão orando em fé, dando suporte à minha própria fé!
Mas a oração do doente e pelo doente não pode ser confundida com crença mágica nem com prática mágica. Será sempre um pedido humilde, embora confiante. Não temos, em lugar algum, a promessa de que todas as doenças serão curadas ou que todas as preces serão atendidas conforme nosso desejo. Isso é difícil aguentar. Pode ser sentido como um golpe contra a nossa fé, quando nem a nossa oração nem a da comunidade são atendidas, i. é, têm o efeito desejado.
Pensando naquilo que se passou na história, outro aspecto merece destaque: a mulher procurou a cura de um mal físico. Ela conseguiu que o fluxo doentio de sangue estancasse. Mas Jesus não deixou por isso. Não foi só para dar uma lição aos discípulos, à mulher e à multidão que o seguia. Foi certamente para dar uma lição a todos nós. Tenho para mini que era para mostrar: não basta a saúde física. Saúde integral é mais do que isso. E saúde em corpo, alma e espírito. Para ser um filho ou filha amado/a de Deus é preciso ler saúde de fé. Isso significa ter um relacionamento de confiança e amor com Jesus como salvador. Esta é uma fé que espera muito de Deus, uma fé que também pede cura de doenças e males que nos acometem, mas que também se sabe na mão e no amor de Deus quando a doença for para a morte.
Esse reconhecimento hoje é de suma importância na clínica pastoral em hospitais, mas não só lá. Creio que deve igualmente ser assunto de pregações, de estudos bíblicos, de conversas poimênicas. É um assunto constantemente atual em qualquer época.
Seria conveniente que no diálogo com médicos e outros profissionais da saúde nós abordássemos mais esta visão de saúde integral. Melhor ainda seria se médicos crentes pudessem discutir isto com os seus colegas. Devemos animá-los a isso, além de criar oportunidades e espaços para que debates a esse respeito possam acontecer no seio da comunidade cristã.
3. Indicações para a Prédica
Cremos que a meditação fornece bastantes elementos que podem ajudar na formulação da prédica. Acrescentamos aqui algumas indicações, tanto para apresentar um tema como para traçar um possível roteiro:
Tema: Doença como desafio para a fé e esperança.
Roteiro:
1. Cuidar da saúde — um compromisso do cristão.
Num grupo de senhoras se perguntou: qual é o bem mais precioso na vida? A resposta: a saúde. Realmente, a saúde é um bem a nós confiado por Deus. É preciso cuidar dela. Levar uma vida regrada na alimentação, no trabalho, no lazer. Isso com vistas à própria saúde, da família, mas também ao próximo — vizinhos, amigos, colegas, necessitados. Lembrar a Constituição do Brasil: A saúde é um direito de todos e um dever do Estado.
2. Procedimento correto em caso de doença
Doença, uma experiência comum das pessoas. Doença crónica ou grave — experiência de muitos. Como é que o cristão lida com a doença a partir de sua fé? Lembrar a mulher da história. Ela procurou médicos. Investiu muito. E hoje? A mulher se dirigiu a Jesus. E hoje? Só quando nada mais adianta? Não, desde logo, sem desprezar nada da medicina. Mas: Deus é o médico. Envolver a comunidade — orações, apoio, visitas.
3. Saúde da fé — o que implica?
Por que Jesus não se satisfez em curar? Queria — e quer — a saúde da fé! Será que a nossa fé é saudável? O que é isso? Ter um relacionamento pessoal com Jesus, receber perdão, estar reconciliado com Deus e o próximo. Viver em amor e ter comunhão com os irmãos. Na história Jesus reintegrou a mulher à comunidade de fé. Fazer desse assunto objeto de diálogo na comunidade e com os profissionais da saúde. Chamar a atenção para o importante papel da capelania (assistência espiritual) hospitalar no processo de cura. Saúde da fé, porém, significa também agarrar-se a Jesus quando a cura não se opera — sem recorrer a práticas que são abomináveis a Deus. Significa preparar-se para morrer em paz com Deus, na esperança da ressurreição.
4. Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. 8. ed. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1980.
SCHABERT, Arnold. Das Markusevangelium. München, Claudius, 1964.
SCHLATTER, Adolf. D/e Evangelien nach Markus und Lukas. Stuttgart, Calwer, 1954.
ZIMMERMANN, Wolf-Dieter. Markus über Jesus. Gütersloh, Gerd Mohn, 1970.