Prédica: Deuteronômio 32.36-39
Leituras: Filipenses 2.5-11 e João 12.12-19
Autor: Elaine Neuenfeldt
Data Litúrgica: Domingo da Paixão (Ramos)
Data da Pregação: 05/04/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:
1. O livro: sua história e seu contexto
A forma como o Deuteronômio está escrito apresenta-o como um discurso de despedida de Moisés. O livro dá a entender a seguinte situação: Moisés reunido com o povo, na terra de Moab, no outro lado do Jordão, proclama a vontade divina, amplia a visão da aliança do Sinai. Expressa de uma forma mais completa como Deus quer que o povo viva na nova terra.
A composição do livro na forma como o temos hoje é resultado de um longo processo. Os destinatários que aparecem no texto – o povo de Israel -, imediatamente antes de entrar na terra e ao qual é feito uma proposta, vivem, na realidade, em épocas diferentes, de açodo com a fase da utilização ou reorganização do livro. Podemos constatar cinco fases na organização do livro até resultar na sua forma atual.
É quase consenso a teoria de que o Dt foi escrito, em sua origem, no século VIII a.C. no Reino do Norte, Israel, antes da queda da Samaria (722). As festas de renovação da aliança (Dt 31.9-13) é o ambiente em que surge o Dt. O caráter litúrgico do texto lembra as celebrações no santuário. No entanto, esse matiz celebrativo do texto está profundamente marcado por um conteúdo social e político. Por isso, se afirma que o Dt teve sua origem nos círculos levíticos itinerantes, os quais não têm um ofício litúrgico estável (18.6-8) e vivem numa situação econômica nada segura. Esses levitas são os que andam com os pobres e desamparados (12.12;18.1-3;14.27-29). É esse contexto que marca sua pregação e seu ensino da lei. Por seu estilo se nota uma vinculação com os círculos proféticos e escolas sapienciais. (Ivo Storniolo, p. 24-25).
A origem do Dt com esse grupo de levitas itinerantes marca a proposta de uma experiência religiosa com o processo de libertação do povo. E a aliança lida sob a tradição democrática da experiência das tribos. O núcleo desta primeira parte são os seguintes capítulos: 4.1-28; 5.1-9; 12.1-28; 46; 30.11-20; 31.9-13.
Uma primeira utilização do Dt se dá na época de Ezequias (715-687a.C.), quando este quer promover uma reforma em Judá, o Estado do Sul. O Dt chega ao sul através de alguns levitas do norte, que fogem depois da destruição c queda da Samaria. A proposta da reforma buscava uma revalorização das tradições religiosas javistas para combater a idolatria, centralizando o culto em Jerusalém e observando a lei (mandamentos) (Storniolo, p. 27).
Um segundo e forte momento do uso do Dt dá-se com o rei Josias, de novo no sul, Judá. Com a queda do Império Assírio, experimenta-se uma certa autonomia em Judá, decorrente do vazio de poder das potências dominantes. Com esse vazio de poder, o povo da terra aclama Josias como rei e no 18° ano do seu remado ele implementa esta reforma política-religiosa. A base da reforma foi o livro do Dt, que havia sido guardado no templo e encontrado nessa época. Ela estabelece uma aliança entre um só Deus, um só povo, uma só terra, um só lugar para o culto (Jerusalém).
Uma terceira retomada do Dt ocorreu com a Escola Deuteronomista (620 a.C.), quando foram agregados importantes materiais históricos e teológicos (1-3; 441-43-9.11-10.11; 31.1-8).
O Dt passa por mais dois processos: com a Escola Deuteronomista, já na época do exílio, se produz uma quarta edição, com o objetivo de explicar as razões do desterro. Baseia-se para tanto nos profetas Jeremias e Ezequiel, fazendo uma releitura da história desde a tomada da terra até o exílio. As últimas alterações que o Dt sofre foram com um novo grupo de levitas, com a finalidade de acomodá-lo no conjunto do Pentateuco, por volta de 400 a.C.
Todo esse longo processo em que o texto foi escrito e trabalhado, retrabalhado, sofrendo alterações, acréscimos e releituras quer-nos mostrar os diversos usos do texto em si; surge como leitura profética da lei, encarnada com o povo, a serviço da libertação. Por vezes esse ideal c manipulado pela ótica reinante, pelos reis ( Ezequias e Josias), para justificar suas ações políticas centralizadoras. Mas serve também como memória subversiva para a gente exilada. Ele é usado para manter a esperança em meio ao caos do exílio, para a gente que ficou na terra. Mais tarde, a classe sacerdotal retoma essa mesma lei para justificar os seus interesses no pós-exílio (Storniolo, p. 30).
Esse processo nos mostra também como o povo entendia a lei e seu uso em si. Era um uso dinâmico, que se adaptava e permitia sua releitura de acordo com o contexto. Não era uma lei estática, acabada, mas que se construía no processo histórico.
O contexto onde se trabalha o Dt, como já deu para observar, é bem conturbado, e em diversas épocas da história. A Assíria, como potência estrangeira, domina o povo de Israel; destrói cidades, leva gente deportada, impõe tributos que, ao fim, pesam nas costas dos camponeses.
Há desigualdade social. No comércio reina a fraude; no sistema de justiça, o suborno; no governo, a exploração e a opressão. O culto serve para justificar esse sistema. É alienante e mera formalidade. Amos e Miquéias denunciam essa situação. (Mq 3.11; Am 5.7,9-12). Diante disso, o Dt propõe, em consonância com os profetas, um ideal de aliança com Deus e seu povo. Traz à memória a sociedade tribal igualitária. Conta a história como se estivessem do outro lado do Jordão antes de entrar na terra prometida. O Dt proclama como deve ser a organização social, política e religiosa. Com uma marcada característica profética, ele denuncia a idolatria como conseqüência dessa opressão. Não a idolatria em si, mas a consequência social, política, econômica e religiosa que vem da idolatria. Seguir outros deuses significa corromper-se e admitir o sistema de opressão desses deuses, li alienar-se, ter a esses deuses como adorno, como justificativa, como pura formalidade. Significa esquecer-se do Deus libertador do êxodo, daquela força que é, que acontece. Que ouve e sente. Que está presente. A causa primeira da idolatria está no Estado monárquico, no estabelecimento de reis c opressão no povo de Israel.
2. O canto, o texto
Quem diz que a denúncia não pode ser cantada em versos? A poesia e o canto são formas bem usuais de manifestar a denúncia. Mercedes Sosa (Argentina), Sílvio Rodrigues (Cuba), Geraldo Vandré (Brasil) e outros o fizeram muito bem.
O canto é uma forma popular de retransmitir a memória. É uma forma criativa e eficaz de fazer ouvir a voz profética, a voz de Deus. Como diz Caetano: Um poema ainda existe, com palmeira, com trincheiras, canções de guerra, quem sabe canções do mar. (Soy loco por ti América.)
Como diz Sellin-Fohrer, a poesia no AT não é só uma forma de arte, mas é considerada como um distintivo da inspiração, do trato com o sobrenatural. Na poesia transita a voz de Deus. É instrumento e dá autoridade ao dito. (Introdução ao AT, p. 35).
O uso do canto e da poesia serve como testemunho para avivar a memória e a consciência, e para tornar próximo o Deus libertador. A parte do canto que nos toca como texto de pregação deste domingo, 32.36-39, é rico em imagens: Deus vai ao encontro de seu povo, quando a este lhe faltarem as forças. É a evocação do Deus do êxodo, deste Javé que ouve, que sente, que está com, que caminha com, quando vê que já não restaram nem fracos, nem fortes. É um Deus que dá força e não exige nada em troca. Ele é graça. Quando o povo já não aguenta mais, Deus vem ao encontro. Não como última saída, mas como apoio permanente, definitivo, que não vacila.
Esse Deus é contraposto aos ídolos. Os ídolos pedem a força da gente. Eles não dão nada. Comem a gordura dos sacrifícios. Sugam força e vigor dos corpos. Exploram e justificam a violência nos corpos cansados de tanto pagar tributos, de tanto reproduzir filhas e filhos para o exército e de tanto trabalhar e produzir riqueza para uns poucos.
Os ídolos justificam a opressão e necessitam da força das pessoas, dos sacrifícios. Deus, ao contrário, dá força no desânimo. Ele se faz presente justamente quando a situação está pior. Quando tudo parece estar nas mãos do mal, sob o poder do opressor, Deus reafirma o seu poder.
Eu sou o único Deus. Eu dou a vida e a tomo. Eu causo a ferida e a curo. Ninguém escapa do meu poder!
Cuidado! Não é a imagem de um Deus distante, Todo-Poderoso, que brinca com o ser humano como lhe dá gosto, vendo como este se quebra com os seus erros. Não! O Deus que dá a vida, que cura a ferida, é como a mãe carinhosa, que dá à luz, que, preocupada com seus filhos e filhas, senta-se com eles/as para curar suas feridas, fazer massagem, soprar para que a dor passe. É um Deus conosco. Presente.
É Deus que, por seu grande amor, quer que suas filhas e filhos cresçam, sejam independentes, caminhem. E mesmo quando os filhos e filhas se equivocam, quando erram o caminho e caem, Deus está aí, junto deles/as. Não as/os abandona como os ídolos o fazem. Esse é o poder de Deus. Poder com, poder em, e não sobre.
3. Sugestões para a prédica
Sugiro concentrar a prédica em dois momentos:
Um vem do Dt e pergunta pela coerência entre a religião pregada e a religião vivida. O Dt insiste na não instrumentalização do culto e denuncia a idolatria que justifica a opressão. Que consequência tem isso para os nossos cultos hoje?
O desejo de muitas pessoas é que no culto se fale das coisas de Deus e não do mundo, ou seja, da pobreza, da injustiça, fazendo, assim, uma abstração de Deus. Também é preciso denunciar, como o Dt, a manipulação do religioso, do sagrado, tanto a nível de comunidade, de prática, quanto a nível amplo, como faz a teologia da prosperidade (Deus me abençoou e comprei um carro novo!).
Com isso já entramos no segundo ponto da prédica, que seria tirar consequências práticas da aliança entre Deus e seu povo. A aliança implica compromisso mútuo (como ao casamento). Ela nasce do amor, da vontade de Deus querer entrar em relação com seu povo, desse Deus que não aceita ídolos nem imagens ou conceitos (todo-poderoso, pai, juiz) que o encerram. Deus é força, é vento forte, é brisa suave, é hálito. Acontece. E tudo isso não passa de aproximações humanas para descrever a experiência com o sagrado. E o povo, quem é? Israel foi o povo pobre, humilde, explorado. Ele busca na relação com Deus sua força de vida e liberdade. E hoje, quem é este povo? Segue sendo o povo pobre, humilde, explorado, marginalizado, excluído, que tem o corpo sofrido, doído, e os rostos marcados, cuja gordura e força foram comidas pelo ídolo do momento: o mercado.
4. Domingo de Ramos
A época litúrgica é rica em simbologia. Das duas leituras, o texto de João traz estes símbolos: a entrada-caminho marca o processo. A prática não é lineal, estática. Às vezes, só resta uma opção, entrar! Com o corpo, com a mente, com a força. Enfrentar. Mas nessa entrada não se está só. Há gente, povo ao redor.
Ramos: é a manifestação do povo, a aclamação de que este é o seu rei. Muitos estão conscientes de que este rei não é igual ao poder romano, outros nem tanto.
O burro: não é cavalo de guerra, não é carruagem, não é limusine, é instrumento de trabalho do pequeno agricultor.
O texto de Fp é canto, poesia. O tema central é o que Deus manifestou em Jesus Cristo. Ele descreve o caminho da revelação de Deus em Jesus. Jesus era divino mas se esvaziou, tornou-se humano para que toda língua confesse: Jesus é o Senhor. Esse hino é a confissão de fé dos primeiros cristãos e quer revelar e ressaltar o senhorio de Jesus nessa forma humilde, humana, de escravo (Comblin, p. 40-41).
É o Deus que dá forças, em contraposição aos ídolos, ao poder opressor. É o Deus presente, junto com o seu povo, que com Ele caminha.
5. Bibliografia
COMBLIN, José. Epístola aos Filipenses. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal; São Bernardo do Campo : Metodista, 1985. (Comentário Bíblico NT).
LÓPEZ, Félix Garcia. El Deuteronomio : una ley predicada. Estela : Verbo Divino, 1989. (Cuadernos Bíblicos, 63).
SELLIN, E., FOHRER, G. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo : Paulinas, 1978. vol. 1.
STORNIOLO, Ivo. Como leer el libro del Deuteronomio : escoger Ia vida o la muerte. Bogotá : San Pablo, 1994.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia