Prédica: Gálatas 1.11-24
Leituras: I Reis 17.17-24 e Lucas 7.11-17
Autor: Nilton Giese
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/06/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:
21 de junho:
* Início do inverno.
* Início do ano novo andino.
* Ontem, em 1923, foi assassinado Doroteo Arango, Pancho Vila, general revolucionário mexicano.
* Em 25 de junho de 1530 foi divulgada a Confissão de Augsburgo, escrita por Filipe Melanchthon.
1. Antes de falar é preciso ouvir – I
1.1. Quem eram os gálatas?
A Anatólia Central de Galácia pertence hoje à Turquia. Tornou-se província romana em 25 a.C. Desde então as terras passaram para as mãos dos romanos ou direta-mente para as mãos do imperador. Isso significava que a Galácia era também ponto de parada das tropas militares romanas. Os gálatas tinham de atender as necessidades do exército durante a sua permanência em seu território. Por ser lugar de parada, o exército deixava ali os seus prisioneiros. Talvez por isso, a Galácia ficou conhecida como um importante mercado de escravos. Hans-Dieter Betz chega a afirmar que a liberdade em Cristo não tinha apenas um valor religioso para os gálatas, mas denunciava também uma situação político-social. (Betz, 1979.)
A comunidade dos gálatas constituia-se, ao que parece, de gente com certa educação e com alguns recursos financeiros (Tamez, p. 89). Eles chegaram à fé cristã convertidos de crenças cósmicas da religião helenista, com uma visão escravagista do ser humano e da sociedade (Gl 4.3). Para essas crenças, o destino das pessoas e da sociedade estava pré-determinado pêlos poderes e leis cósmicas, e não havia possibilidade de mudança ou transformação. Paulo anuncia que a libertação desse mundo peverso se dá em Cristo (Gl 6.14), que se entregou pêlos nossos pecados (Gl l .4). Ou seja, Cristo pode perdoar, e onde há possibilidade de perdão também há possibilidade de mudança. Essa foi a mensagem entregue aos gálatas no passado.
1.2. Por que Paulo escreve aos gálatas?
Paulo escreve aos gálatas desde Efésios. Paulo passou cerca de três anos (52-55 d.C.) em Éfeso. A comunidade dos gálatas está agora diante de um novo perigo (1.7). Trata-se da presença e da pregação de um grupo de judeus-cristãos. Eles pregam que os gentios, convertidos ao cristianismo, devem ser circuncidados (Gl 5.2ss.; 6.12ss.), observar a lei mosaica e a tradição judaica. Para os judeus-cristãos não há possibilidade de salvação sem a circuncisão e obediência à Lei.
Além disso, eles proclamavam que as pregações de Paulo eram falsas; que pregava apenas para ganhar o favor dos homens (1.11); que ele não tinha nenhuma legitimidade/autoridade apostólica. Diante disso, Paulo precisa se defender. É isso que ele faz em 1.11-24 (a defesa de Paulo segue adiante até 2.21).
Paulo destaca a sua situação antes da experiência a caminho de Damasco (At 9). Deixa claro que ele não era apóstolo de Jesus, que foi um perseguidor da Igreja, um judeu que se sobressaía aos demais no cumprimento da lei. Não tem nenhuma referência que o qualifique como pregador do evangelho. Nenhuma boa obra que possa apre¬sentar. No entanto, Deus o escolheu (1.15). Não havia nenhum mérito nele que justifi¬casse a escolha de Deus. Deus o fez por graça (1.15). A escolha de Deus tem um propósito, uma finalidade: pregar o evangelho entre os gentios (1.16; 2.7-9).
1.3. A justificação pela fé e graça de Deus
A justificação pela fé e graça de Deus é a linguagem teológica de Paulo. Essa é a forma de Paulo entender o evangelho (1.11; l Co 15.1-11). Ele leva esse evangelho até os gentios.
A perspectiva da inclusão dos gentios ao povo de Deus é a valiosa contribuição de Paulo à história da Igreja cristã. A doutrina da justificação pela fé é o respaldo teológico, elaborado por Paulo, para defender os direitos dos gentios convertidos de serem também herdeiros das promessas de Deus. Com a justificação pela fé, Paulo defende que a fé em Cristo traz a libertação de toda submissão à lei e aos poderes cósmicos. Passa-se da categoria de escravos, de crianças, que precisam de um tutor, para a categoria de filhos/filhas, livres e sem distinção, nem marginalização ou opres¬são de qualquer tipo (3.8).
Com a fé em Cristo se começa uma nova etapa de vida. A exclusão por não ter privilégios chega ao fim em Cristo. Ter nascido judeu já não é mais nenhum privilégio diante de Deus. Agora, se é justo por ter fé e não por ter a lei. O novo povo de Deus não é fruto da lei, mas da fé em Jesus Cristo (Gl 4.18). Com isso o apóstolo elimina todo privilégio concedido anteriormente aos que tinham a lei.
Paulo abre, assim, a possibilidade de salvação para outros povos. A promessa de que em Abraão serão benditas todas as nações (3.8) se cumpre em Cristo. A justificação pela fé abre a homens e mulheres a oportunidade de integrarem a família de Deus, na qual já não pode haver mais exclusão, discriminação ou marginalização (3.28-29). Nesse sentido, Paulo chega até a relativizar as instâncias diretivas da Igreja da época: os apóstolos. Paulo acentua que eles não lhe ensinaram nada (2.6; 1.1 Is.).
Para Paulo, ser justificado por graça implica que Cristo abre para todas as pessoas a possibilidade de viverem de forma justa. Isso é vivificar. Viver de forma justa. A fé vivifica, por isso o justo viverá pela fé (3.11). A justificação leva Paulo a sonhar com uma utopia: uma sociedade de iguais, na qual reina a solidariedade; uma comunidade sem diferenças discriminatórias (3.28).
A fé vivifica, por isso o justo viverá pela fé. Na prática, isso significou para Paulo não concordar com o padrão de vida da sociedade greco-romana. Ali a igualdade era algo inconcebível. Por isso, ele toma o lado dos fracos/pobres em Corinto (l Co 1.26ss.; 11,17-34). A própria conversão de mulheres, escravos e jovens, que pertenciam à casa de um pater famílias não convertido, constituía uma ofensa política contra a ordem patriarcal (Tamez, 1993, p. 54). Resumindo, Paulo entende que a justiça de Deus faz dos seres humanos armas/instrumentos de justiça na terra, a serviço de Deus (Rm 6.13).
1.4. Os textos de leitura bíblica
Os dois textos de leitura deste domingo (l Rs 17.17-24 e Lc 7.11-17; veja os volumes de PL que os abordam) tratam como tema a ressurreição de filhos de viúvas. Crianças e viúvas são pessoas discriminadas na sociedade. Nos tempos bíblicos, o filho era a única chance de dignidade e respeito da viúva. A morte do filho era também a sua morte na sociedade. Os textos valorizam a escolha de Deus, não por mérito dos escolhidos. A escolha de Deus se dá por graça. É o amor de Deus chegando, chamando para a vida, e vida com dignidade. Nos dois textos vemos que Deus é Deus da vida. Ele defende a possibilidade de vida concreta. Era isso que os filhos significavam para as viúvas.
2. Antes de falar é preciso ouvir – II
2.1. Motivos para pregar sobre esse texto hoje
A IECLB está sofrendo com a situação de apatia, ignorância, passividade de suas comunidades e membros… A IECLB olha com inveja o crescimento de grupos pentecostais, ou com arrogância; olha com medo os terreiros de umbanda. Há muita insatisfação entre pastores e membros na IECLB, muito desânimo. Isso leva à irritação, agressão, desconfianças, impaciência. (W. Buchweitz, PL I-II, p. 129.)
Eu creio que a libertação trazida por Cristo significa concretamente um estar a serviço permanente do Reino de Deus… (para) uma ocupação com e no Reino de Deus não são exigidas coisas de anjos, mas sim coisas bem humanas como: boa vontade, disciplina, humildade, coragem, alegria, choro, luta… A reunião dessa manifestação é difícil de se encontrar na vida da Comunidade em que tradicionalmente vivemos. (A. Mädche, PL I-II, p. 132.)
Você acha que essas observações são tiradas do último relatório desses pastores? Que nada, são observações feitas em 1979. No entanto, continuam valendo para muitas de nossas realidades.
O desafio de defender a legitimidade do pastor/pastora ou mesmo da própria instituição está presente em diferentes comunidades da nossa igreja. Quem nunca passou por aquelas situações em que o membro diz que a igreja está muito cara, que ele não sabe por que a igreja precisa cobrar tanto, que nas outras igrejas é bem mais barato e que, se não aceitarem o que ele quer dar, então podem riscar o seu nome. Ou aquele outro que diz que agora ele já não precisa mais da igreja, que cumpriu com a sua obrigação, porque todos os filhos já estão casados. Ou então, quando num encontro com outras denominações somos desafiados a defender a nossa forma de entender o evangelho como evangélico-luteranos.
Antes de reagir, precisamos ter sempre clara a pergunta diante de nós: Afinal, estamos dando testemunho da graça de Deus ou somos apenas zeladores da instituição? Essa pergunta é importante porque, se não a consideramos, nossos discursos podem levantar voo de forma que apenas os que estudaram teologia irão nos compreender. O desafio que Paulo nos lança é: nossa forma de falar do evangelho é evangelizadora? Nossa forma de falar de Deus (teologia) atrai? A justificação pela fé e graça de Deus é apenas doutrina ou é também norma de vida? Ou, nas palavras de uma confirmanda: Pastor, eu aprendi que Deus me perdoa os pecados, por causa do sangue de Cristo na cruz, que Deus quer me salvar, sem que eu precise fazer nada para isso. Mas, pastor, por que Deus quer me salvar? A gente poderia responder: Porque Deus te ama. Mas não basta terminar por aí. Quem ama também espera algo da pessoa amada, não é mesmo?
2.2. A importância de falar e viver o evangelho
Nós não temos nenhum problema em definir a nossa teologia. Sabemos em quem cremos e porque cremos. No entanto, por não considerarmos suficientemente a realidade que nos cerca, esquecemos de lançar o desafio de demonstrar a nossa fé em atos de amor. Falar da justificação pela fé sem falar do viver pela fé esvazia as nossas comunidades. As pessoas acham que elas não precisam fazer nada. Já estão salvas. E como consequência social, ficam tremendamente conservadoras diante de movimentos sociais. Saber o que Deus espera de mim concretamente, como justificado, deve ser tema de nossas prédicas sobre a legitimidade da Igreja e do pastorado.
Aqui nos lembramos de Martim Lutero e do sacerdócio universal de todos os crentes. Muitas vezes pensamos que sacerdócio universal de todos os crentes se refere apenas à participação de algum trabalho na comunidade. Creio que Lutero pensava muito mais no que hoje chamamos de sociedade civil do que na comunidade/instituição quando vislumbrava onde o sacerdócio universal seria aplicado. Como estou vivendo o fato de ter sido justificado? Estou apoiando e/ou participando de alguma obra por amor? (Gl 5.6; 6.2). Tenho mostrado interesse na melhoria do meu bairro ou da escola dos meus filhos? Tenho apoiado um trabalho social ou uma organização reivindicativa? O que tenho falado dos movimentos sociais que defendem melhores condições de vida? E a questão ecológica?
A justificação pela fé tem uma finalidade, um objetivo. Deus tem um projeto que se chama Reino de Deus. Jesus ensaiou esse projeto. A salvação é obra de Deus e tem como objetivo o chamado para que as pessoas participem desse projeto de Deus. O evangelho quer nos transformar em armas/instrumentos da justiça a serviço de Deus (Rm 6.13). Testemunha a salvação aquele/a que participa do projeto de Deus. Quem se nega a participar rejeita a salvação. E participar do projeto do Reino não é só exercer alguma função na comunidade eclesiástica, mas estar ativo na sociedade, defendendo e/ou nela participando com seus dons pessoais, a fim de que a justificação produza obras de justiça para todos/as. Afinal, essa é a diferença entre a lei e a justificação por graça e fé. A lei apenas denuncia o pecado e a injustiça. A justificação por graça e fé mobiliza para a prática da justiça. Em vez de falar de justificação (palavra chave na teologia paulina e conciliar), deveríamos falar de libertação. Afinal, trata-se da mesma realidade, mas fica mais clara a sua dimensão dinâmica histórica. (Citação de palestra de L. Boff.)
Jesus nos ensinou isso. Mt 5-7 e 23-25 falam que a justiça inter-humana é fundamental e a entrada no Reino depende dessa justiça. Outro texto que nos chama a atenção nesse sentido é Mt 18.23-34, em que o rei, vendo a realidade de pobreza do servo, perdoa-lhe a dívida, esperando, a partir daí, a mesma atitude do perdoado. A parábola nos mostra um justificado injusto. Quem assim vive perde a justificação. A fé que reconhece a justificação deve levar à transformação do justificado. Ou seja, a minha justificação, realizada exclusivamente por obra e iniciativa de Deus, não tem um fim em si, mas Deus anuncia a salvação para que eu me incorpore no seu projeto de justiça, chamado de Reino de Deus.
2.3. Subsídios litúrgicos
Sugestão de introdução ao texto: copos de diferente qualidade e tamanho. Uma jarra de água. Conversar um momento sobre isso: que tipo de copos são? Qual é o tipo mais caro? Qual é o melhor? Quando estamos com sede, o que é mais importante – o copo ou a água? Nesse momento, colocar água nos copos.
Quando a gente coloca água num copo, geralmente é porque queremos usar essa água para alguma coisa. Ou vamos bebê-la ou vamos usá-la para regar uma planta, etc. Se o copo é pequeno ou grande não importa muito. Ele pode ser usado diversas vezes para a mesma finalidade. O copo é apenas um meio, um instrumento feito para uma finalidade.
Como é isso com os cristãos? O amor de Deus tem uma finalidade? É sobre isso que o apóstolo Paulo quer nos falar hoje.
Seguir com a reflexão.
No final, fazer a oração de mãos dadas. Lembrar na oração que Deus nos chamou e escolheu porque Ele tem uma tarefa para nós. A comunidade pode participar com intercessões ou repetindo o refrão: mostra-nos, Senhor, o teu caminho.
Bibliografia
BETZ, Hans-Dieter. Galatians. Philadelphia, 1979.
BORNKAMM, Günther. Bíblia -Novo Testamento. São Paulo : Paulinas, 1981.
CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo : Sinodal, 1970.
TAMEZ, Elsa. Contra toda condena. San José : DEI/SBL, 1993.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia