Prédica: Lucas 20.27-38
Leituras: I Crônicas 29.10-13 e II Tessalonicenses 2.(13-15)16-17; 3.1-5
Autor: Verner Hoefelmann
Data Litúrgica: Antepenúltimo Domingo do ano Eclesiástico
Data da Pregação: 08/11/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema
1. Informações sobre o texto
A. Para entender o que está em jogo neste texto é imprescindível conhecer os interlocutores de Jesus. Quem são os saduceus? Em primeiro lugar, são pessoas pertencentes a uma mesma classe social. Os membros do grupo são escolhidos dentre as famílias abastadas de Jerusalém e arredores: sacerdotes dirigentes, comerciantes ricos, grandes proprietários de terra. O historiador judeu Flávio Josefo resume: Eles contam sobretudo com os ricos e não têm o povo do seu lado.
Em segundo lugar, são pessoas que se articulam como um partido
político, em defesa dos interesses do grupo. Não hesitam em adaptar-se às novas contingências políticas para continuar pactuando com o poder. Por isso alcançam cargos de confiança e de alta responsabilidade, tanto na administração herodiana como na dos procuradores romanos. Formam a maioria no sinédrio. Controlam o templo e o sistema financeiro a ele ligado.
Em terceiro lugar, são pessoas com um certo tipo de convicção religiosa, que se poderia caracterizar de conservadora. Josefo escreve: A doutrina dos saduceus diz que as almas desaparecem juntamente com os corpos. A informação é confirmada pelo NT. Lc 20.27 define os saduceus como os homens que dizem não haver ressurreição. Pedro e João são presos por iniciativa de saduceus, ressentidos por estarem aqueles pregando a ressurreição de Jesus dentre os mortos (At 4.1-41). Paulo provoca uma desavença entre os membros do sinédrio ao apresentar-se como mensageiro da esperança e da ressurreição. O texto explica: Os saduceus declaram não haver ressurreição, nem anjos, nem espíritos; ao passo que os fariseus admitem todas essas coisas (At 23.6-9).
B. Os saduceus limitam, portanto, a sua religiosidade a esta vida. Como explicar essa postura? Uma outra frase de Josefo pode ser uma primeira tentativa de resposta: Eles não se preocupam em observar nada mais senão as leis. Como se sabe, somente em escritos mais recentes o AT testemunha de modo claro a esperança na ressurreição (Is 26.19; Dn 12.1-3; Sl 16.10s.). Ora, esses livros não possuem autoridade normativa para os saduceus. Eles reconhecem apenas o Pentateuco como Escritura, pois ali se concentram as leis que devem reger o povo de Deus. Os livros restantes são rejeitados, assim como é rejeitada a tradição oral criada pelos escribas para atualizar as leis. Assim sendo, é compreensível que a discussão permaneça restrita ao Pentateuco: os saduceus provocam Jesus com um caso construído a partir de Dt 25.5-10. Jesus responde recorrendo a Êx 3.1-6. Isso significa que Jesus aceita permanecer no campo dos adversários. O diálogo só pode evoluir quando se parte de uma base comum.
C. A história da mulher casada sucessivamente com sete irmãos pressupõe a lei do levirato (do latim levir = cunhado). Segundo Dt 25.5-10, caso alguns irmãos vivam juntos e um deles morra sem deixar descendência, um dos sobreviventes (cunhados) deve desposar a viúva. O primeiro filho nascido desse novo matrimônio é legalmente considerado como filho do falecido. Com algumas variantes, essa lei é exemplificada no AT na história de Tamar (Gn 38) e de Rute.
O significado da lei é claro. Por um lado, ela visa garantir a descendência do homem que morreu sem gerar filhos, para que o nome deste não se apague de Israel (Dt 25.6; cf. ainda Rt 4.5,10). De certa forma se poderia dizer que a descendência desempenha aqui o papel da ressurreição, pois é através dela que o homem continua sobrevivendo. Por outro lado, a lei procura evitar a alienação do património da família, para que a propriedade continue com a família do falecido (Rt 4.10, tradução da Bíblia na Linguagem de Hoje). Embora a lei do levirato também possa ser vista como uma forma de proteção da viúva, ela está claramente a serviço de uma estrutura patriarcal e conservadora: preservar a memória do homem e os bens de sua família.
A história da mulher, em tom irônico, foi construída para colocar Jesus em apuros. Com ela os saduceus querem mostrar que a crença na ressurreição não pode ser conciliada com a lei mosaica do casamento levirático, pois isso implicaria incesto e abominação no céu. A lógica saducéia, portanto, está armada. Como indica o exemplo da mulher, a proposição sustenta que a ressurreição não pode ser imaginada em termos práticos. Segue-se que a ressurreição deve ser descartada como uma tolice.
D. A resposta de Jesus está dividida em duas partes: inicialmente ele se refere à forma da ressurreição (w. 34-36). Em seguida ele a fundamenta biblicamente, recorrendo, da mesma forma, a Moisés (vv. 37-38). Na primeira parte da resposta Jesus examina os pressupostos da proposição dos saduceus. Eles não podem conceber a ressurreição, porque imaginam que a era vindoura seria uma mera reprodução das relações deste mundo. Eles só podem imaginar um mundo semelhante ao que aí está: mulheres a serviço dos homens, poder a serviço de uma elite privilegiada, riqueza a serviço de uma minoria seleta, religião para legitimar estruturas geradoras de segregação. Tudo isso lhes parece tão natural, incontestável e divino, que, se houvesse uma era vindoura, essa seria um reflexo da realidade atual. Mas isso não lhes interessa. Eles não são homens dados a sonhos e fantasias. Eles são realistas. Suas esperanças se limitam a esta vida e ao que ela tem a oferecer. E esta vida tem muito a lhes oferecer. Ela lhes sorri, tem sido generosa e pródiga. Se Deus tem algo a ver com isso? Tudo! Pois é nesta vida que Deus premia ou castiga, segundo os méritos de cada um.
Jesus desmonta a lógica desse raciocínio. E o faz com uma frase de efeito: na era vindoura as pessoas não mais se casarão (como se dizia dos homens) nem serão dadas em casamento (como se dizia das mulheres). Assim são gerados os filhos deste mundo, os filhos da velha ordem. Neles, a imagem de Deus está sendo continuamente desfigurada. Por isso, suas vidas e suas realizações estão marcadas pela transitoriedade, pela alienação, pela segregação, pela luta fratricida, em suma, pelo pecado.
Não se busque nessa frase de Jesus nenhum tom de desprezo pela sexualidade, que é, e continuará sendo, uma boa dádiva de Deus. A frase também não se presta para fazer especulações sobre como será a vida futura. A comparação com os anjos pouco adianta, porque ninguém sabe exatamente como eles são e vivem. O que Jesus quer dizer é simplesmente isso: a transição da era presente para a era futura só será possível através de uma ruptura radical e de uma transformação profunda. Por isso, o casamento de levirato, que garantia as estruturas patriarcais da família e a concentração da propriedade, não mais existirá. Os filhos da era vindoura, que são os filhos da ressurreição, serão gerados por um novo ato criador de Deus, que reconduzirá a criação à sua intenção original, onde Ele será tudo em todos.
Se a era vindoura supõe uma ruptura profunda com a realidade atual, isso significa que a era presente, com suas contradições, não corresponde à vontade de Deus. Por isso, antes que o futuro seja definitivamente instaurado, a era presente passará pelo juízo de Deus e dela será erradicado tudo aquilo que não corresponde à sua soberania. Quem necessitar aqui de material para ilustrar a derrocada da velha ordem e a instauração do novo mundo de Deus, basta recorrer aos sonhos visionários dos profetas (Is 65.17-25; Ap 21.1-5). Portanto, este é o sentido da primeira parte da resposta de Jesus: os planos de Deus para com as pessoas humanas não se restringem a esse mundo, razão por que incorrem em erro e engano aqueles que querem absolutizar o presente, fechando-se para o futuro de Deus. Nesse ponto Jesus atinge de frente os saduceus.
Na segunda parte da resposta (vv. 37s.), Jesus procura mostrar que, de maneira diferente do que alegavam os adversários, há concordância entre a lei mosaica e a fé na ressurreição. A passagem bíblica que serve de demonstração provém do início da história do êxodo. Quando Deus se revelou a Moisés no monte Horebe, ele se apresentou como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó (Êx 3.1-6). Se Deus assim se revela, associando seu nome aos patriarcas, então eles devem estar vivos, ou seja, ressuscitados, pois Deus não costuma associar seu nome aos mortos. Ele, o Deus da vida, também é o Deus que vivifica e não deixa na morte os que lhe pertencem.
2. Meditação
Há pouco tempo acabamos de celebrar o dia de Finados. Em três semanas estaremos comemorando o último domingo do ano eclesiástico. Enquanto a primeira data nos faz recordar a trajetória daqueles que já encerraram sua peregrinação por este mundo, a segunda nos lembra que nosso próprio mundo é passageiro. O calendário da Igreja nos anima, assim, a atentar para a transitoriedade e a provisoriedade da nossa vida e de nossa história.
Olhamos ao redor e percebemos que as marcas da transitoriedade realmente estão por toda parte. Só não vê quem não quer enxergar. Alguns de nossos entes queridos já se foram, uns em ditosa velhice, outros surpreendidos no vigor de seus dias. Os jardins que cultivamos e que floriram na primavera perderão sua beleza com a aproximação do outono. Nossos filhos crescem enquanto nossos cabelos embranquecem e nossa força se esvai. A terra em que plantamos e que nos deu o sustento já não dá o seu fruto com a mesma generosidade. Algumas de nossas utopias mais caras foram se desfazendo como bolhas de sabão. Muitas dessas coisas são incontornáveis.
Caminhamos inexoravelmente em direção a elas ou elas vêm implacavelmente ao nosso encontro. Outras poderíamos evitar, mas não encontramos força, capacidade ou sabedoria para resistir ao seu avanço. De uma ou outra forma, elas nos confrontam com os nossos limites, sejam aqueles que impomos a nós mesmos, ou aqueles que impomos uns aos outros, ou aqueles que nos são impostos por nossa condição de finitude.
Tomar consciência da precariedade e transitoriedade da condição humana é um passo importante. Mas não conduz a lugar nenhum, nem é capaz de mover-nos do lugar. Por isso é importante continuar perguntando: como viver e como conviver ante a consciência de que somos vulneráveis e finitos? Como enfrentar o tema sem entrar num beco sem saída ou sem perder-nos num labirinto?
A fé cristã parece propor um caminho alternativo entre dois extremos. Falemos inicialmente dos extremos para então aprofundar o específico da nossa fé:
a) De um lado estão aqueles que, ante a consciência de sua finitude, decidem tirar o máximo proveito do que esta vida tem a oferecer. Entre esses estão os saduceus; entre esses está o fazendeiro rico que teve uma colheita estupenda, construiu celeiros maiores para armazenar os produtos e só pensava ainda em desfrutar os seus bens (Lc 12.13-21). Nada contra o desejo de viver plenamente. O próprio Jesus assegurou que veio para que nós tenhamos vida, e vida abundante. Vida plena, realizada, feliz, é o que todos devemos aspirar. Mais: por ela devemos lutar.
Mas qual é, então, o perigo dessa postura? O perigo surge no momento em que absolutizamos nossos sonhos e desejos, colocando-nos no centro do universo. Aí vale tudo. Nada mais é capaz de abalar a nossa consciência: se a realização do nosso sonho lem como efeito colateral o pesadelo dos outros, se as nossas alegrias se alimentam das lágrimas dos outros, se as nossas vitórias são construídas sobre o fracasso dos outros, se a nossa abundância produz a carência nos outros, se procuramos garantir o nosso futuro tirando dos outros a possibilidade de viver o presente de maneira digna e aceitável. Em tais circunstâncias, a fé aciona um sinal de alarme.
Uma postura como essa é incompa-lível com o evangelho. Não se pode justificá-la eticamente, muito menos em nome de Deus. A vida plena, a que Jesus se referiu, não é regalia prevista apenas para minorias seletas, mas projeto que engloba todos os filhos e filhas de Deus.
b) De outro lado estão aqueles que, ante a consciência de sua finitude, transferem para o futuro todos os seus anseios, absolutizando a realidade escatológica que Deus vai criar. A realidade deste mundo é, então, desprezada ou menosprezada, já que não tem mesmo valor permanente e está destinada a desaparecer.
Essa posição revela uma face perniciosa e diabólica quando é divulgada por pessoas que usufruem de boa condição social. A própria Igreja, muitas vezes, adotou essa posição. Durante séculos, por exemplo, tentou convencer os negros africanos de que sua escravidão era um negócio altamente vantajoso, pois eles teriam trocado a escravidão temporal do corpo pela libertação eterna da alma.
Outras vezes, porém, essa posição é assumida pelas próprias pessoas oprimidas e sofridas. Revela, então, a tentativa de buscar no futuro sentido para uma vida que no presente se mostra absurda. Ela encobre, em última análise, a frustração de quem foi colocado à margem dos recursos deste mundo.
É desnecessário dizer que também nesses casos a mensagem do evangelho está sendo deturpada c esvaziada. Não resta dúvida de que o evangelho tem uma palavra animadora a dizer sobre a plenitude da vida após a morte. Mas ela jamais pode ser dita em prejuízo da vida que nos foi dada viver neste mundo.
c) A fé cristã sinaliza para uma terceira via. Por um lado, ela reafirma a esperança como uma dimensão constitutiva e inalienável do ser humano. Proclama que ele será mais pobre, incompleto e infeliz se renunciar a dimensão da esperança ou se ela lhe for arrancada do peito. Testemunha, assim, que o sentido mais profundo da vida e da história está oculto no futuro que a Deus pertence e que Ele vai revelar quando lhe aprouver.
O apóstolo Paulo expressa essa convicção de maneira admirável: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam (l Co 2.9; cf. Is 64.4). Assim como a compa¬ração com os anjos, também essa palavra não ousa explicar exatamente como esse futuro será. Basta saber que Deus há de recriar e renovar radicalmente o ser humano através da ressurreição, dando-lhe um novo corpo não mais sujeito à corrupção (l Co 15.42). E não se trata de palavras vazias. Penhor dessa promessa é a própria ressurreição de Cristo, sendo isso a garantia de que os que estão mortos também ressuscitarão (l Co 15.20). Penhor dessa promessa é a fidelidade de Deus em favor do seu povo, testemunhada na Escritura e na história.
Essa expectativa coloca sob novo enfoque aquilo que realizamos ou deixamos de realizar neste mundo. Nada daquilo que construímos pode reivindicar a marca do absoluto, do inquestionável, do definitivo. Nossas conquistas passarão pelo crivo do juízo de Deus e mostrarão assim sua verdadeira face. Ali se verificará seu valor e sua consistência. Ali será dado um veredito justo e definitivo sobre nossas realizações. Da mesma forma, nossas frustrações e fracassos perderão o peso que neste mundo possuem. Também esses serão colocados sob a luz do olhar divino. Não serão e não terão a última palavra sobre o nosso destino. Não é com base neles que seremos avaliados com respeito ao nosso valor e à nossa dignidade. Tanto em nossas realizações como em nossos fracassos, portanto, estaremos submetidos à justiça e ao amor do Deus que nos foi revelado em Jesus Cristo. A última palavra pertence a ele. Graças a isso, podemos e devemos relativizar nossos sucessos e insucessos, depositando nele toda a nossa esperança.
Por outro lado, a esperança cristã colabora positivamente, já agora, com a renovação do nosso mundo. Ela pode ser experimentada desde logo como uma força capa/ de levantar o que estava caído, consolar o aflito, animar o desiludido, fortalecer o fraco, congregar o solitário. Ela pode ser vivida desde logo como renovação daquilo que nos parecia irremediavelmente corrompido c estragado. Por isso a fé cristã protesta quando se pretende restringir os efeitos da esperança para o futuro. A ressurreição definitiva, aguardada para o futuro, pode ser antecipada na forma de ressurreições parciais. Elas serão sempre um pálido reflexo daquela, mas nem por isso serão menos autênticas. Elas podem ser experimentadas sempre que a comunidade, em resposta à sua fé e esperança, se empenhar em favor da vida, da saúde, da reconciliação, da comunhão, da solidariedade. Assim nos é dado provar, desde agora, um aperitivo do grande banquete que Deus nos está a preparar. Como se sabe, o aperitivo tem a função de abrir e estimular o apetite, que nesse caso se refere à fome e sede por mais justiça, misericórdia e fé.
Os três pontos da meditação podem ser utilizados para estruturar a prédica, que poderá ser concretizada com exemplos do texto estudado e da realidade local.
3. Subsídios litúrgicos
Hinos: Hinos do Povo de Deus: 298; 302. O Povo Canta: 64; 154; 158.
Intróito: A palavra de Deus nos assegura a seguinte promessa: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam (l Co 2.9).
Confissão de pecados: Amado Deus: muitas vezes nossa vida se assemelha à vida daqueles que não têm esperança. Por isso nos sentimos arrasados diante de nosso fracasso, desconsolados diante da morte de nossos entes queridos, angustiados ante a nossa própria finitude. Outras vezes procuramos compensar a nossa falta de esperança tirando o máximo dessa vida, sem importar-nos se o nosso sucesso e a nossa fartura são conseguidos às custas do fracasso e da carência dos outros. Quebramos, assim, a solidariedade e rompemos a comunhão, tornando-nos culpados diante de ti e de nosso próximo. Perdoa-nos a nossa culpa, restitui-nos a alegria de viver e ajuda-nos a reconstruir nosso caminho de maneira solidária. Tem piedade de nós, Senhor.
Palavra de graça: Jesus Cristo diz: Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida (Jo 5.24).
Oração de coleta: Amado Deus: Nesta hora em que te rendemos nosso louvor e ouvimos a tua palavra pedimos que renoves a nossa fé e a nossa esperança com a certeza de tuas promessas. Ensina-nos a corresponder à tua palavra com a nossa confiança. Amém.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia