Prédica: Lucas 4.1-13
Leituras: Deuteronômio 26.4-10 e Romanos 10.8b-13
Autor: Almir dos Santos
Data Litúrgica: 1º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 01/03/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema: Quaresma
1. Primeiro Domingo da Quaresma (Invocavit)
Quaresma é tempo de preparação para a Páscoa. São 40 dias de penitência e conversão, de morte ao pecado, para que possamos ressurgir para uma vida nova com Cristo na sua Páscoa, renovando e vivendo de modo mais profundo o nosso batismo. Essa é a estação eclesiástica por excelência para estudos e experiências espirituais. Só os que estão devidamente preparados podem aproveitar a Páscoa, que é o clímax do ano cristão.
Tradicionalmente, a Quaresma tem sido tempo de jejum, oração e esmola (esmola não em sentido pejorativo e mesquinho de quem dá o que sobra, mas no sentido bíblico de ter amor e compaixão, de abrir o coração para com os irmãos necessitados e injustiçados, ajudando-os efetivamente).
Durante a Quaresma terás em mente o clímax da Semana Santa e da Páscoa. Em imaginação, entras com Jesus em Jerusalém, no Domingo de Ramos. Com ele visitas o templo, participas da última Ceia, no cenáculo; vigias no jardim e experimentas a tragédia da sua morte. É assim que poderás compreender a glória da ressurreição. A Quaresma te prepara para: a) compreender que nem tudo é brincadeira; b) reconhecer que Deus sempre triunfa; c) ser um melhor servo de Deus em sua vitória; d) fortalecer o desejo de ser cristão durante o ano todo; e) ser vitorioso sobre ti mesmo.
É preciso ter em conta que os 40 dias da Quaresma (contam-se apenas os dias da semana) relembram aquele período que Jesus passou no deserto. Esse tempo foi empregado no preparo da sua missão.
2. Libertação: dom e compromisso
A fé dos israelitas era de extrema simplicidade. Ela não se apoiava em verdades ou princípios abstratos, mas naquilo que Deus havia feito concretamente por eles no decorrer da história. No centro da fé estava o fato pascal: libertação do Egito – dom da (erra prometida. Em seu reconhecimento (eucaristia = ação de graças), eles ofereciam a Deus as primícias da terra. Também o centro da fé cristã é um fato histórico: a paixão-morte-ressurreição de Cristo. Ele é a nossa Páscoa porque nos liberta e nos dá todo o bem que vem do Pai.
Certos momentos na história de um povo constituem a sua epopéia; são os acontecimentos da libertação, do seu nascimento como povo, quando toma consciência dos laços que o unem e do destino a que é chamado. O povo de Israel viveu essa experiência na história e a reviveu na memória poética e ritual. É isso que nos fala a leitura de Deuteronômio, encontrando nos acontecimentos do Êxodo o ponto referencial para a sua consciência de ser o povo escolhido em vista de uma missão. Ele sentiu sua libertação como uma obra prodigiosa de Deus e não como fruto de iniciativa humana. Conseqüentemente, toda a sua religião baseia-se nessa libertação e no seu desenrolar dentro de um desígnio de salvação.
Superando a tentação de Satanás (leitura do evangelho) com a força do seu amor à palavra de Deus, Cristo mostra que a libertação é, antes de tudo, interior. A pessoa deve superar o egoísmo, a busca ansiosa dos bens materiais, a sede de posse e de domínio sobre os outros, a ilusão do sucesso imediato, para possuir-se a si mesma e atingir assim a plena liberdade daquela que se entrega ao seu libertador. A comunidade dos remidos, a Igreja, luta, por sua vez, pela libertação da humanidade das forças do mal: miséria, ignorância, ódio, violência, febre de consumo, egoísmo e falta de amor. Cumprindo essa tarefa no espírito e com a força de Cristo, a Igreja prepara para o seu Senhor um povo aberto ao anúncio do evangelho e ao caminho para a perfeita liberdade.
3. Quaresma, preparação para a Páscoa
Entre todos os dias do ano, que a devoção cristã honra de vários modos, não há nenhum que supere a festa de Páscoa, porque esta torna sagradas todas as outras solenidades. Ora, se considerarmos o que o universo recebeu da cruz do Senhor, reconheceremos que, para celebrar o dia de Páscoa, é justo preparar-nos com um jejum de 40 dias, para podermos participar dignamente dos divinos mistérios. Não só os bispos, pastores e diáconos devem purificar-se de suas faltas, mas todo o corpo da Igreja, todos os fiéis; porque o templo de Deus, que tem por base o seu próprio fundador, deve ser belo em todas as suas pedras, luminoso em cada uma de suas partes… (São Leão Magno.)
4. Quaresma, tempo de cuidado
Quem não se cuida, arrisca-se… E por mais que se cuide, há momentos em que é preciso redobrar a atenção.
Há um processo natural de desgaste das coisas, dos objetos, das casas, dos carros, enfim, da própria vida. O dom de pensar e de aplicar as descobertas do pensamento permite superar o desgaste. Tomamos cuidado, revemos, detectamos as falhas, consertamos, restauramos, renovamos. Às vezes se faz uma reforma total caprichada, que deixa o objeto reformado como se fosse novo.
Essa necessidade de cuidados especiais aplica-se também à vida humana, que se torna maior à medida em que se ganha em idade.
No estágio infantil, os outros cuidam da gente. Quanto mais distante a meninice, mais cresce a consciência e a ação de viver passa para as nossas mãos. Cabe-nos assumir, cuidar da vida para apurá-la, personalizá-la, fortalecê-la. Quanto mais bem cuidada, mais bonita ela se torna, mais firme, mais sólida e mais santa. Nessa perspectiva, compreendemos os valores da Quaresma: um tempo providencial em que a pessoa cristã se dispõe a cuidar melhor da vida.
Por se tratar de perspectiva cristã, o cuidado se volta para o conteúdo da vida, o que lhe dá sentido e irradia felicidade: o amor.
Jesus, que nos inspira a vivência da Quaresma, revelou e praticou a plenitude da vida. Ele revelou o amor de Deus presente na sua pessoa, e amou a humanidade dando a sua própria vida (Jo 13.1). O caminho dos dias dos cuidados da Quaresma ilumina-se pela Páscoa, o maior acontecimento da História. Efetivamente, a Páscoa consiste numa impressionante passagem: da total entrega do amor de Deus nos dolorosos mistérios da paixão e da morte na cruz à experiência da ressurreição.
O grande descuido da vida, que a desgasta e debilita em todas as suas expressões, das relações afetivas mais próximas à desumanidade espalhada por todo o canto, é o do amor. À medida em que assumimos a Quaresma dispostos a diagnosticar e a sanar essa debilidade máxima, viveremos 40 maravilhosos dias de mudança, de crescimento, de transformação.
Em cada dia, o tempinho da oração deixará as mãos do Cristo crucificado e ressuscitado dirigir nossos cuidados. Seremos menos levados a fazer jejuns e penitências e mais a amar, superando barreiras, assumindo renúncias, restaurando relações, vivendo a fraternidade, na medida do possível como Cristo a viveu. Brotará o desejo sincero de praticar o novo mandamento: o amor, antes e acima de tudo, mais valioso do que todos os holocaustos e sacrifícios (Mc 12.22-35).
Dessa forma, irmãos e irmãs, o tempo da Quaresma se tornará tempo de cuidado com a autenticidade da vida cristã. Tempo de cuidar do amor! E o dom de orar e de aplicar a oração será fonte e força, com a graça de Deus, para o sucesso desse cuidado: um homem novo, revestido de santidade (Ef 4.24).
Como em nenhum outro momento do ano, esse tempo nos fará experimentar o quanto a graça de Deus consiste em sermos amados e profundamente cuidados. Cada gesto, cada palavra de Jesus, ressaltados nesses 40 dias que antecedem a Páscoa, nos envolverão da sua coragem de amar a cada um de nós, a toda a humanidade, até o fim!
5. Quaresma, tempo de ascese
Lucas, como Marcos e Mateus, faz das tentações um paradigma de toda a vida de Jesus, mas só ele as estende a todos os 40 dias, apresenta como última a tentação em Jerusalém (v. 9; em Mateus é diferente) e acrescenta que o demônio se retirou de junto dele, até certo tempo (v. 13). Isso significa que os 40 dias no deserto são apenas o primeiro round e que o encontro final se dará em Jerusalém durante a paixão (22.3,53). Singular cm Lucas é também a situação no contexto. As tentações não seguem no relato do batismo, como em Marcos e Mateus, mas à genealogia de Jesus, que, na sua forma ascendente, remonta ao princípio da humanidade. Jesus, o novo Adão, é tentado como toda a criatura, na concupiscência da carne (primeira tentação), na concupiscência dos olhos (segunda tentação) e na soberba da vida (terceira tentação). Ele sai vitorioso por sua fidelidade à palavra de Deus.
A ascese cristã nunca foi um fim em si mesma; é apenas um meio, um método a serviço da vida, e como tal procurará adaptar-se às novas necessidades.
Outrora, a ascese dos Padres no deserto impunha jejuns e privações intensas e extenuantes; hoje a luta é outra. O homem não tem necessidade de um sofrimento suplementar; cilício, cadeias de ferro, flagelações, correriam o risco de extenuá-lo inutilmente. A mortificação de nossa época consistirá na libertação da necessidade de entorpecentes, pressa, ruídos, estimulantes, drogas, álcool sob todas as formas. A ascese consistirá acima de tudo no repouso imposto a si mesmo, na disciplina da tranquilidade e do silêncio, onde o homem encontra a possibilidade de concentrar-se para a oração e a contemplação, mesmo em meio a todos os ruídos do mundo, no metro, entre a multidão, nos cruzamentos de uma cidade. Consistirá principalmente na capacidade de compreender a presença dos outros, dos amigos em cada encontro. O jejum, ao contrário da maceração imposta, será a renúncia alegre do supérfluo, a sua repartição com os pobres, um equilíbrio espontâneo, tranquilo. (Paulo Evdokimov.)
6. Quaresma, tempo de fraternidade
Mas, direis, que divisão vês entre nós? Aqui, nenhuma, mas quando termina o nosso culto, um critica o outro; esse injuria publicamente o irmão; aquele que se enche de inveja, de avareza ou de cobiça; aquele outro se entrega à violência; outro ainda à sensualidade, à impostura, à fraude. Se nossas almas pudessem ser postas a nu, veríeis então a exatidão de tudo isso… Desconfiando uns dos outros, nos tememos mutuamente, falamos ao ouvido do vizinho, e se vemos aproximar-se um terceiro, calamo-nos e mudamos de assunto… Respeitai, respeitai esta mesa da qual todos nós comungamos; respeitai o Cristo imolado por nós, respeitai o sacrifício que é oferecido. (São João Crisóstomo.)
No tempo da Quaresma, que é também um tempo próprio para a oração, podemos orar assim: Concede-nos, ó Deus onipotente, que ao longo desta Quaresma possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder ao seu amor por uma vida santa. Por nosso Senhor Jesus Cristo, teu Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.
7. O que podemos observar durante a Quaresma
Estas rubricas são usadas em algumas igrejas cristãs: – Não se canta Aleluia.
Não se canta o Glória (a não ser nas solenidades e festas, e em algumas celebrações especiais).
Não se costuma colocar flores no local (altares das igrejas). Só se tocam instrumentos musicais para acompanhar o canto.
É costume usar a cor roxa para as vestes litúrgicas, ou para os paramentos dos altares, ou estantes bíblicas ou púlpitos. Também as cores vermelha e preta são usadas.
A Quaresma começa na Quarta-Feira de Cinzas e termina antes da celebração da Ceia do Senhor (Eucaristia) na Quinta-Feira Santa.
– Usam-se ofícios penitenciais, litanias e outros, próprios especialmente para a Semana Santa, tais como o Ofício das Trevas e o Ofício do Caminho da Cruz. Esses ofícios são muito usados na liturgia da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.
8. Bibliografia
Guia Bíblico Litúrgico. Petrópolis : Vozes, 1968. vol. II.
Liturgia da Palavra Caminho da Fé : Ano A. São Paulo : Paulinas, 1986.
Livro de Oração Comum. Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, 1987.
Mais do que palavras. Porto Alegre : Ecclesia, 1958. [Do Departamento de Educação Religiosa da Igreja Episcopal – tradução.]
Preparando a Páscoa : (Quaresma, Tríduo Pascal, Tempo Pascal). Petrópolis : Vozes, 1986.
SÉRGIO, Pe. Antônio, MAGALHÃES, Palombo de. A Quaresma no coração. In: Meditações para o tempo da Quaresma. Petrópolis : Vozes, 1996.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia