Prédica: Atos 17.1-15
Leituras: 1 Pedro 2.4-10 e João 14.15-21
Autor: Walter R. Marschner
Data Litúrgica: 5º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 02/05/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:
Introdução
O texto proposto a partir da série trienal constitui um grande desafio para o pregador. Isoladamente oferece pouca base para uma mensagem. Uma leitura dentro do contexto mais amplo ofereceria mais oportunidades. Sugiro entendê-lo em relação aos caps. 16 e 17, mencionando os episódios de Filipos e Atenas.
O livro de Atos de Apóstolos pode ser visto como uma reflexão coletiva acerca da formação da comunidade primitiva. Nos caps. 16 e 17 temos um bloco temático: o contexto de perseguição, os erros e acertos na missão.
O Paulo perseguido
As viagens de Paulo foram marcadas comumente por conflitos e perseguições. O texto bíblico atesta isso claramente na segunda viagem missionária. Foi uma verdadeira maratona em que foram fundadas comunidades ao longo da Ásia Menor e Grécia. Em quase todas essas cidades Paulo foi perseguido e torturado. Nosso relato bíblico sucede a experiência da prisão em Filipos (At 16.16ss). Lá a sentença que o lançou na prisão é a mesma que se verifica em nosso texto: Estes homens estão provocando desordem em nossa cidade. São judeus e pregam costumes que a nós romanos não é permitido aceitar ou seguir'' (At 16.20-21). Os motivos pelos quais os adversários queriam prendê-lo eram sempre os mesmos. Paulo era uma peste (At 24.5) para os judeus, pois queria revolucionar o mundo inteiro (At 17.6) agindo contra a lei e contra o povo (At 21.28). Perseguiam Paulo por ser líder de uma seita dos nazareus que buscava profanar o templo (At 24.6). O radicalismo do apostolado de Paulo, em especial a rejeição da lei de Israel e a central idade do Cristo, tornaram inevitável o confronto com as estruturas de poder político e religioso da época.
Diz o texto que Paulo, segundo o costume (v. 2), ia à sinagoga dos judeus para discutir as Escrituras com as pessoas dali. O apóstolo provocava dissensões profundas com as tradições locais ao identificar o Cristo histórico, humilhado c crucificado em Jerusalém, como justamente o Messias esperado dos judeus.
Esse seu jeito ofensivo e apologético não o poupava de toda sorte de sofrimentos. Parece que ele tinha na perseguição um sinalizador da autenticidade de sua pregação. Na mente de Paulo havia duas mensagens: a dele e a dos outros: Se alguém vos pregar outro evangelho diferente do que o que recebestes seja anátema (Gl 1.9). A consequência da opção era a cruz — uma aparente fraqueza. Paulo procurava transformar essa fraqueza aparente em força. Ele, como apóstolo, era forte justamente porque era fraco e perseguido, e Jesus podia usar instrumentos fracos.
As comunidades de Paulo
Paulo anunciou o evangelho na dispersão. Ele procurava os judeus da diáspora. Estes não compartilhavam da expectativa missionária como os judeus da Palestina nem se rebelaram contra as forças romanas. Pelo contrário, procuravam ser submissos a Roma tanto quanto possível. Afiançados por uma escatologia de que um dia iriam ser luz para todas as nações (Is 2.2-5), os judeus na diáspora, ainda que dominados, sentiam-se superiores a seus opressores. As sinagogas eram sempre um local de emanação desse espírito altivo e de superioridade moral das colônias judaicas. Para lá ia Paulo — e, mais tarde, outros missionários cristãos — discutir teologia. Ele buscava justamente os pagãos convertidos, atraídos pelo judaísmo. Não se pode dizer que o apóstolo mantivesse uma relação parasitária com a estrutura judaica para levar a termo seu projeto missionário. Ele não era proselitista, mas sim sonhava alcançar, por Cristo, uma comunidade onde as diferenças fossem superadas: Já não há judeu, nem grego, nem escravo, nem livre, nem homem, nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3.28). Não mais a sinagoga é lugar de manifestação divina, mas a Igreja, ekklesia — a assembléia dos que são chamados para fora do sistema. Os cristãos, sejam eles de procedência judaica ou pagã, sentem-se membros de um novo cosmo — são corpo de Cristo.
Nessa confiança comunitária, mesmo oriunda de grupos minoritários, estava a força missionária de Paulo. Por causa disso ele estava disposto a tudo.
Na Primeira Epístola aos Tessalonicenses temos a manifestação de alegria de Paulo por saber dos frutos de sua visita a Tessalônica:
Ao contrário, toda essa gente fala da nossa visita a vocês. Contam como vocês nos receberam bem e como deixaram os ídolos para seguirem e servirem o Deus vivo e verdadeiro. Contam também como estão esperando que Jesus, o Filho de Deus, a quem Deus ressuscitou, volte do céu. É ele quem nos salva do castigo divino que há por vir. (l Ts 1.9-10.)
Aprendendo da experiência
Paulo, de expulsão em expulsão, foi parar em Atenas, centro espiritual do paganismo (At 17.15). Lá ficou só e sem amigos. Sua missão ficou ainda mais difícil, pois teve de lidar com uma cultura totalmente adversa. Não encontrou nenhuma brecha para seu discurso. A clientela era composta de filósofos e o povo pagão em geral. Eis que surgiu uma ideia: o altar erguido ao Deus desconhecido. Pretensioso, Paulo investiu ali seu ataque, buscando subverter o mundo pagão no seu núcleo; ele denunciou a ignorância, apontou para a busca de Deus citando poetas pagãos (At 17.27-28). Apontou também para a iminência do juízo. Tudo parecia bem, mas, ao tocar no calcanhar de Aquiles do pensamento greco-romano, a questão da ressurreição, a reação foi inesperada: (…) basta por hoje! Quem sabe, outro dia a gente terá oportunidade de discutir essas ideias (At 17.32). Esse outro dia nunca mais veio. Desta vez não houve reação violenta. A mensagem sequer tocou a superfície dos corações atenienses.
Amargando o fracasso, Paulo retirou-se dali e foi a Corinto (At 18.1). Lá procurou emprego (At 18.3) e voltou à rotina, só pregando nos finais de semana. Levou algum tempo até retornar o ânimo (18.7ss.).
A experiência valeu — Paulo aprendeu do seu erro. Ele tentou usar em Atenas a força de sua argumentação e raciocínio e saiu derrotado. Aprendeu com isso que precisa dar primeiro lugar a Deus e não se basear no prestígio de palavras.
Missão e poder
Desde Nietzsche a fé cristã tem sido interpretada como promotora de religião de fracos, ressentidos e covardes cuja vontade de poder está perfumada pelo incenso da impotência, da fraqueza e da incompetência. (Westhelle, p. 187.) Desde seus primórdios a missão cristã alimentava uma esperança de sair de sua situação de minoria marginal e perseguida para estruturar-se como um novo poder. Com Constantino isso se fez realidade e passamos a conhecer a história da Igreja como a história da afirmação de uma estrutura que não convivia mais com limites. Na experiência de impotência da comunidade primitiva, testemunhada pelo livro de Atos, percebemos isto de forma sutil. O anúncio acaba-se impondo como uma estrutura de poder. A estratégia de Paulo em Atenas é, de fato, uma tentativa de inculturação que, rapidamente rechaçada, resulta em fracasso.
Então aprendemos com Paulo: Deus é o sujeito da missão. Não a Igreja. Missão é missio Dei. O que se anuncia, o conteúdo da missão, é a revelação de Deus. A revelação não se manifesta em sabedoria nem em sinais de poder, mas na cruz de um Deus que se revela na fraqueza e na infâmia. Manifesta-se no reverso dos valores e evidências. Igreja então é criatura da Palavra. E a Palavra tem essa característica: a alteridade — ela causa sempre estranheza àqueles aos quais a Igreja quer testemunhar e causa estranheza à Igreja mesma. Lutem acerta: diante da Palavra a Igreja é semper reformanda, oscila entre a adaptação e a ruptura com a realidade onde missiona.
Novos tempos: o não-poder
Experimentamos um tempo marcado pela globalização e suas consequências: a homogeneização de culturas diante' do endeusamento do mercado, a relativização de qualquer utopia ou ética que busque a universalidade. É a crise da esperança, o recesso da transformação. Dizem que o mundo se tornou por demais complexo. Assim vale só o fragmentário e o particular: Cada um na sua, mas com alguma coisa em comum… (propaganda dos cigarros Free). Dizem que o sonho será terceirizado e nesse leilão a Rede Globo e Hollywood já fizeram seus lances. Quem dá mais?
Pensar nesse contexto a missão? Justamente aí onde se percebe a impotência, a inviabilidade, é que se precisa afirmar a manifestação do poder de Deus. Deus se revela no Paulo preso em Filipos ou no mesmo apóstolo exaurido em Corinto, mas muito pouco no Paulo exaltado de Atenas. Manifestar-se no não-poder isso é cada vez mais difícil de entender, uma vez que a competitividade nos convida a enaltecer justamente outros valores, como a eficácia e vitória. Compreender a comunidade como comunhão de santos-pecadores, espaço onde a fé se organiza, é algo sempre estranho para o mundo. Pois aí é que está a sacramentalidade da Igreja: celebrar a presença daquele que está oculto no que não tem valor, no revés do mundo.
Rumo à mensagem
A reflexão até aqui apresentada sugere um culto temático; tema: missão. Pode-se optar por uma narrativa comentada dos caps. 16 e 17, destacando os erros e acertos do esforço missionário de Paulo. Podemos refletir acerca de nossa impotência diante da realidade e da tarefa do anúncio nesse contexto. Como Deus se manifesta em nossa fraqueza hoje? Conhecemos experiências missionárias assim? Nossa estrutura local, as paróquias e suas comunidades, podem dar alguma resposta missionária para nossos tempos? Onde começam as iniciativas? Começam no cotidiano de cada membro da Igreja ou nas decisões de diretorias e instâncias maiores?
Experimentei pregar esse texto usando o recurso da dramatização de um julgamento. Um julgamento do apóstolo Paulo. Iniciamos a mensagem apresentando o apóstolo Paulo à comunidade. Ele está ali, vestido a caráter, sentado como um réu, cabisbaixo. A pregação inicia com um breve relato das atividades desse réu. Relata-se acerca de como ele perturba a ordem vigente, do quanto a sua mensagem é avessa aos nossos valores e convicções (podemos fazer uso das informações dos caps. 16 e 17 de Atos). O réu é convidado a explicar-se à comunidade a respeito do porquê de sua teimosia, do sentido de seu trabalho missionário. Aos poucos o julgamento vai tomando o caráter de uma simples entrevista. Perguntas, previamente preparadas por alguns dos presentes no culto (jurados), podem ser apresentadas no decorrer do julgamento. As respostas, também já preparadas previamente, podem ser obtidas de textos das cartas paulinas e, especialmente, do texto para o domingo.
Seguem sugestões:
De que maneira a conversão a Cristo modificou sua vida? Você era perseguidor de cristãos e agora é perseguido como bandido. Por quê? (Fp 3.7-9; l .21; l Co 9.19; Gl 2.20.)
Depois de convertido para Cristo, o que foi que você fez da profissão que aprendeu? Chegou a exercê-la? Como arrumava emprego? (2 Co 11.9; l Co 9.14-15; l Ts 2.9; 2 Ts 3.7-9; At 20.34-35.)
Você já teve problemas com a polícia? Já foi perseguido? Esteve preso? Por quê? Como se sentiu nos contextos de perseguição/prisão? (At 9.23-24; 9.29; 13.8; 13.50; 14.5; 14.19; 16.22; 17.5-9; 17.13; 2 Co 11.25.)
Qual é o lugar que a religião ocupa em sua vida? (Gl 2.20-21; Rm 8.31-39.)
Por que você questiona tanto as nossas tradições? Por que é tão inconformado com a realidade?
O que tem contra as autoridades? (At 16.20-21; 21.28.)
Você se diz revoltado contra a idolatria. Onde você percebe culto aos ídolos em nossa sociedade?
O que você tem contra a Igreja instituída? Por que insiste em fazê-la mudar?
Você quer uma Igreja mais comprometida com a missão. Como você acha que isso pode acontecer nas comunidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)?
Por que você ficou desanimado e enfraquecido depois daquele discurso fracassado em Atenas?
Você não é homem de ficar desanimado! Tinha alguma razão mais profunda?
Qual é sua maior esperança? (Cl 2.12-13; Ef 1.19-20; Rm 8.31 ss.)
Subsídios litúrgicos
Para a confissão de pecados: Sugiro que simbolizemos a nossa realidade de pecado através de uma peneira e sementes de tamanhos diversos. Pode ser uma peneira que é usada para feijão, feita de palha e de buracos grandes. Alguém da comunidade passa as sementes nessa peneira. As maiores ficarão e as menores cairão no chão. Entre as que caíram no chão colocam-se papéis com nomes como Pequenos agricultores, Sem-terra, Sem-teto, Crianças carentes, Mulheres, Portadores de deficiência, Idosos, Excluídos. Explicar que essa é a sociedade hoje. Assim como na peneira, onde só ficam as sementes mais graúdas, também na sociedade não se acolhem mais os pequenos.
Diante das sementes caídas no chão, ao lado da peneira com as sementes graúdas, faz-se a oração de confissão de culpa. Após o anúncio da graça, dá-se o abraço da paz.
Para o testemunho de fé/envio missionário: Após a pregação alguém (pode ser o próprio apóstolo Paulo da prédica) pode trazer uma peneira bem fina. Dentro dela estará escrito num papel: Aqui você tem lugar. Convidam-se os membros a juntarem os grãos do chão e os depositarem nesta peneira. Ao colocar as sementes, cada um pode dizer algo que motive a missão, propósitos, esperança, pedidos… Diante da peneira repleta de grãos, confessa-se a fé com o Credo Apostólico.
Hinos/cantos: Hinos do povo de Deus: 172, 176, 181, 184, 166; O povo canta: Põe a semente na terra (p. 57), Baião das comunidades (p. 147), Axé (p. 74).
Bibliografia
COMBLIN, José. As cartas de Paulo. Belo Horizonte : CEBI, 1994.
MESTERS, Carlos. Palavra de Deus na história dos homens. Petrópolis : Vozes, 1973. 2 vols.
—. Uma entrevista com o apóstolo Paulo. Belo Horizonte : CEBI, 1988.
WESTHELLE, Vítor. Missão e poder : o Deus abscôndito e os poderes insurgentes. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 31, n. 2, p. 183-192, 1991.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia