Prédica: Efésios 5.8-14
Leituras: Isaías 42.14-21 e João 9.13-17,34-39
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: 3º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 07/03/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:
O toque da mão do mestre
Estava muito gasto e arranhado, e o leiloeiro
Achou que quase não valia a pena
Gastar tempo com o velho violino,
Mas ele o levantou com um sorriso.
Que me dão por este velho violino?
Quem vai fazer a primeira oferta?
Um dólar — dois dólares? E quem me dá três?
Três dólares uma vez, três dólares duas vezes,
Vendido por três, mas não;
Do fundo da sala um homem grisalho,
Veio até a frente, pegou o arco
E, limpando o pó do velho violino,
Apertando as cordas frouxas,
Tocou uma melodia pura e suave,
Como um cantar de anjos.
A música então parou, e o leiloeiro,
Com voz agora embargada e baixinha,
Disse: Que me dão pelo velho violino?
E levantou-o com o arco.
Mil dólares! E quem dá dois?
Dois mil! E quem dá três?
Três mil uma vez; três mil duas vezes,
Vendido, vendido, gritou ele.
E as pessoas aclamaram, mas algumas disseram:
Não compreendemos,
O que mudou o preço dele?
Rápida veio a resposta: O toque da mão do mestre.
Existem muitos homens cuja vida está fora de sintonia;
Gastos e cheios de cicatrizes do pecado,
Que são leiloados por um preço barato a uma multidão indiferente,
Como o velho violino.
Um prato de sopa, um copo de vinho,
Um jogo, e ele continua.
Vendido uma vez,, vendido duas,
Ele está indo, quase vendido de vez.
Mas o mestre chega, e a tola multidão
Jamais pode compreender inteiramente o valor de uma alma
E a mudança operada
Pelo toque da mão do mestre.
(Myra Brooks Welch, in: K. C. Miller, Quando o amor se transforma em ira, São Paulo : Candeia, 1995, p. 22.)
Deus te quebra em mil pedaços quando te quer usar, [pois] Deus é uma pessoa tal que tem vontade de realizar o que perante o mundo é tolo e ineficaz. (M. Lutero.)
O país se encontra, aparentemente, em uma situação onde, ao contrário do cenário de expansão econômica e melhoria do quadro social desenhado como consequência da almejada estabilidade de preços, o que se tem é a impossibilidade do crescimento sustentado da economia e o agravamento do quadro social, ambos associados aos pilares básicos do programa de estabilização em curso. (Adhemar S. Mineiro, in: Aurélio Vianna Jr. (Org.), A estratégia dos bancos multilaterais para o Brasil, Brasília : INESC, 1998, p. 24.)
O avião chegou tarde
No meio da noite houve batidas na porta de nossa estação missionária. Diante de nós estava uma jovem mãe com um bebê de 8 semanas. Por causa das muitas lágrimas mal conseguia falar. Era a sua primeira criança, uma menina, que adoeceu quando estava com 4 semanas. Primeiro ela gritava, depois chorava, finalmente apenas gemia. Não tomou mais leite c tornava-se cada vez mais fraca. A mãe implorou aos parentes: Ajudem-na, chamem o feiticeiro. Mas os homens disseram: Se fosse um menino, ainda valeria a pena. Mas por causa de uma menina não faremos tanto empenho. Da próxima vez talvez venhas a ter um menino. Assim a mãe relatava aos prantos. Não é, vocês também só têm duas meninas e nenhum menino, e fiquei sabendo que não estão tristes por isso. Ajudem a minha criança! Ela não tem culpa de ter nascido menina, dizia ela. Estava amanhecendo e, pelo rádio, chamamos um avião. Quando já podíamos ouvir de longe o ruído do motor do tão esperado avião, o gemido da criança parou. Ela esticou os membros. A pequena menina estava morta. Se a mãe nos tivesse procurado pelo menos um dia antes, a menina provavelmente poderia ter sido salva… (Henriette Gänssbauer, in: Kinderbrief aus der Weltmission. n° 5, 1977, ap. Friedrich, p. 111.)
1. Reflexão
O tempo da Quaresma é uma oportunidade de examinarmos nossa fé, de fazermos uma revisão da vida pessoal, comunitária e social. Será que, como dizia Karl Barth neste contexto, estamos respondendo ao grande SIM de Deus por nós com os nossos constantes pequenos sins (Kirchheim, p. 158)? Será que estamos caminhando com Jesus o caminho de baixo, sem fugir do que sua Paixão impotente e sua cruz inglória significam para nós?
Observo que a Carta aos Efésios está sendo a preferida dos carismáticos radicais, de evangélicos agressivos, para justificarem a teologia da batalha espiritual contra Satanás e seus demônios, os dominadores deste mundo tene¬broso (6.12). Submetem a visão da unidade do crescimento orgânico no cap. 4 a um modelo de coerção autoritária e vêem a armadura do cristão de modo triunfalista, ignorando que em 6.13ss. cinco das seis armas são de defesa (cinto, couraça, calçado, escudo, capacete) e apenas uma é de ataque (a espada do Espírito, a palavra do evangelho da paz). A cosmologia da carta dá oportunidade a essa distorção beligerante e gloriosa, ao descrever a ação do diabo nos ares (2.2; pormenores em W. Fuchs, Auxílio homilético sobre Ef 4.1-16, in: Proclamar Libertação, 1996, vol. 22, p. 215s.). Assim, afirmações centrais da carta como a justificação por graça mediante a fé (não por obras, para que ninguém se glorie — 2.8ss.) e também o texto do presente domingo são lidos sob a mesma ótica e prensados dentro do mesmo esquema de guerra, neste caso entre as trevas infernais e a luz celestial. A exegese cuidadosa, porém, desmonta essas leituras equivocadas e recupera a dimensão de realismo na caminhada do cristão pelos sofrimentos e cadeias (6.20) desta vida. Aliás, acredito que essa teologia carismática pentecostal se apropria de Efésios de maneira distorcida porque não consegue acessar bases mais sólidas para a fé como, p. ex., a justificação por graça e a liberdade cristã tematizadas na Carta aos Gálatas. Propagandeiam os dons, os carismas, de cura, de glossolalia, de profecia, etc., mas não articulam os frutos do Espírito, o amor-ágape, alegria, paz, paciência (Gl 5.22). A culpa disso recai sobre os demais evangélicos, supostamente melhor preparados em teologia, que também não sabem mais articular o significado da graça e do caminho da cruz, que eram centrais para o protestantismo.
Nesse contexto é preciso ter cuidado, mas não ter medo de falar da oposição entre trevas e luz, pois a experiência do contraste entre trevas e luz, antes e agora, faz parte da vida e também da caminhada de fé. Sem dúvida é legítima a dimensão de vitória contida na metáfora de que a luz, por mais fraca que esteja, não pode ser derrotada pelas trevas, mas serve de orientação e esperança ao andarilho. A oposição entre Jesus e o mal é radical e total. Por outro lado, nem sempre o sofrimento pode ser identificado com as trevas. Filhos da luz são os cidadãos do novo mundo, da alvorada do Reino. A noite, embora necessária, é passageira. A primeira obra da Criação foi a luz, mas o anoitecer e amanhecer fazem parte do dia (Gn l .5). Contra as aparências de perseguição, de prisão, de lutas e até mesmo através delas, o cristão vislumbra já o Reino presente, chegan¬do cada vez mais. Para não permanecer somente no jogo de imagens trevas versus luz, é importante centrar a questão em Jesus, que, conforme João, é a luz (Jo l .9; 3.19; 8.12; ele.), de modo que andar na luz é cumprir a vontade de Cristo.
Igualmente é preciso, no v. 8, equacionar ou até superar o que na exegese se convencionou chamar de indicativo e imperativo: Em Cristo vocês são luz, andem como filhos da luz. Não são uma afirmação e uma ordem postas lado a lado. A compreensão mais apropriada é de consequência, de decorrência. A árvore boa produz bons frutos (Mt 7.17). Quem é da luz traz frutos, quem não é, não os produz. Fruto é o que será saboreado por outros, não pela própria árvore! Aí está o critério tanto para examinar (v. 10) como para reprovar (v. 11) e denunciar e trazer à luz (vv. 12s.)! Obras infrutíferas são produtos que não alimentam, que não asseguram o sustento da vida humana e social, p. ex. os efeitos da estabilização econômica que não assegura bem-estar continuado ao conjunto da sociedade. Não proporcionam a articulação e o crescimento do corpo de Cristo em amor pela cooperação de todas as suas partes (4.16)!
O cap. 5 todo contém partes dedicadas à instrução batismal (catequese), como uma relação de vícios (vv. 3-7) e de virtudes cristãs (vv. 8ss.; cf. Wendland, p. 111). Há também grande unanimidade de que o v. 14 é o fragmento de uma liturgia batismal, a citação de um hino antigo baseado em Is 60.1; Desperta de entre os mortos, Cristo te iluminará! Luz vem de luz. Não temos luz própria. Somos planetas, não astros. Jesus, o astro-rei, precisa nos iluminar e aquecer para que possamos aquecer e brilhar para outros. E esse o mistério da fé. Acordar-se equivale a ser acordado pela pessoa que chama: Desperta! Mas o levantar é conosco! Só que levantar não será nenhuma glória nossa, pois apenas atendemos o convite, assim como ninguém se consideraria cheio de méritos por ter devolvido o abraço de um amigo.
2. Pregação
Diante da riqueza e densidade dos temas, como ocorre em quase todos os textos de Efésios, é preciso optar por um eixo temático. Sugiro como título da pregação: Obedece à luz e brilharás. Recusa a luz — e ficarás nas trevas (cf. a cegueira mencionada nos textos de leitura).
O esboço pode ser o seguinte (seguido pelo autor):
2. l. Contraste e mudança: trevas — luz, desânimo — esperança; tristeza — alegria; doença — saúde; desconfiança — confiança; desacreditar de si — autoconfiança; opressão — libertação; antes – depois; outrora — agora, etc. Quem de nós não os experimenta? Como reagimos? Nós reconhecemos a importância da luz, de tê-la, de caminhar em direção a ela, de mudar a realidade para alcançá-la. Vejam as mobilizações populares diante dos recentes apagões após a privatização da companhia elétrica do Rio de Janeiro. A experiência desse contraste é tomada para ilustrar duas coisas: o que Deus fez por nós e o que nós precisamos fazer.
2.2. O grande SIM de Deus a nós (cf. O toque da mão do Mestre): somos luz no Senhor (v. 8)! Não é uma luz qualquer, mas a luz de Cristo que brilha e descobre a glória de Deus. Considerando que em última análise toda exortação no NT é parênese batismal (Voigt, p. 241), é preciso realçar o Batismo, pelo qual somos inseridos em Cristo. É pelo Batismo que se concretiza a transformação fundamental e fundante para a fé, porque ele é, em qualquer idade, a afirmação do extra nos, do agir de Deus de fora sobre nós, anterior e superior ao nosso agir. Ele é o veículo da graça que nos alcança, que nos acorda, sem que a tenhamos merecido (cf. 2.8-10).
2.3. Não apenas temos, agora, a vantagem de caminhar na luz, mas também podemos trazer frutos da luz, da graça e do amor de Deus: bondade, justiça e verdade-ação. Os filhos da luz têm uma utilidade a partir do momento em que outros são beneficiados pela luz, assim como o som do violino encanta aos ouvintes. Como agir?
2.3.1. Examinando sempre (v. 10). Quanto mais luz, tanto melhor as coisas se diferenciam! Quanto mais amamos, tanto mais desmascaramos o desamor. Queremos? Então digamos todos: sim!
2.3.2. Não participando das obras das trevas, que não trazem frutos (v. 11). A laranjeira doente perde as laranjas antes que amadureçam. Nosso agir será diferente (cf. O avião chegou tarde, acima, um exemplo do contraste entre uma cultura pagã e outra de inspiração cristã, que também não traz tantos frutos como devia). Queremos evitar a produção improdutiva das trevas? Então digamos: sim!
2.3.3. Reprovando-as. Desconfiança, briga, fofoca, impureza, covardia, egoís¬mo, ganância, indiferença com a dor do próximo, autoritarismo, etc. Que frutos trazem? Trazem a morte, a não-vida. Apesar de escusas e vergonhosas, é preciso citar essas atitudes reprováveis. E mais, é preciso revelar que sua raiz é má, mortífera. Se não queremos, ficamos nas trevas, entre os mortos (v. 14). Mas queremos? Então digamos: sim! E Cristo te iluminará!
3. Dinâmica
Desenvolvida pelo autor para ilustrar o v. 21, a seguinte dinâmica pode ser útil para esclarecer um aspecto do andar na luz. Pode ser exercitada em cultos, retiros e seminários. A questão é: como funciona na prática o sujeitar-se um ao outro no temor de Cristo? Que é preciso fazer para substituir em nossa vida pessoal e social o sistema de dominação, de imposição, pelo novo sistema de amor, de ajuda mútua constante? Será possível de fato que um se submeta ao outro, e o outro se submeta ao primeiro?
Convida-se para urna brincadeira dos nossos bons tempos de criança: a brincadeira de empilhar mãos. Grupos de quatro a cinco pessoas estendem suas mãos e vão empilhando-as alternadamente sobre a mesa ou o encosto do banco da igreja. Depois o que tem a mão embaixo a retira e coloca em cima. Assim uma mão após a outra é tirada de baixo e colocada em cima, cada vez com maior rapidez. No momento mais animado, a brincadeira pára. Convida-se para inverter a brincadeira: a mão de cima precisa ser colocada por baixo da pilha, uma após a outra. É muito mais difícil. Aos poucos os grupos descobrem como fazer. Todos os participantes precisam evitar de fazer peso com suas mãos sobre as outras. Quanto mais leve a pilha, tanto mais fácil é submeter-se.
Dialogando sobre a primeira fase e a segunda, os participantes percebem a diferença: a primeira é a do individualismo. Cada um pensa em cuidar rapidamente da sua mão, em não perder a vez para sair de baixo, largando a mão com força em cima das outras. Ã segunda é a fase da cooperação. Não funciona se um faz peso sobre as mãos dos outros. Além disso, as mãos empilhadas precisam ficar juntas, sincronizadas. Desunião é inimiga do sujeitar-se (cf. Fp 2.3).
Conclusão: para sujeitar-se mutuamente, o importante é não fazer peso sobre o próximo, não oprimir, mas colaborar unânimes para aliviar o peso da própria mão e das dos outros. Jesus diz: O meu fardo é leve (Mt 11.30).
Bibliografia
FRIEDRICH, Johannes. Meditação sobre Ef. 5.8B-14. In: BORNHÄUSER, H. Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart. ano II, vo). B, p. 107-115.
KIRCHHEIM, Huberto. Auxilio homilético sobre Ef 5.9-14. In: VAN KAICK, Baldur (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1978. vol. III, p. 153-160.
VOIGT, Gottfried. Die neue Kreatur. 3. ed. Göttingen, 1977. p. 241-245.
WENDLAND, Heinz-Dietrich. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1974.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia