Prédica: Lucas 10.17-20
Leituras: Daniel 10.10-14; 12.1-3 e Apocalipse 12.7-12
Autor: Antônio Carlos Ribeiro
Data Litúrgica: Dia de São Miguel e Todos os Anjos
Data da Pregação: 29/09/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:
1. Introdução
Majestosa Catedral
de sonhos então desfeitos
sem rezas e sem respeito.
Por ti não dobram teus sinos,
relíquia da Humanidade.
Que sina, triste destino
do teu povo que, teatino,
ainda pena na orfandade…
(Wilmar Campos Bindé.)
A figura de Miguel e seus anjos nos remetem a outro episódio, bem mais recente, histórica e geograficamente situado, envolvendo padres jesuítas e índios dos chamados sete povos das missões, na fronteira do Brasil com a Argentina. O fato também envolveu luta, poderes que se digladiavam e interesses em jogo. A diferença é que do lado do bem não estava Miguel, cujo nome significa quem é como Deus? na língua hebraica, mas homens, mulheres e crianças indígenas, que sequer eram considerados pessoas pela teologia da época.
Do outro lado estavam poderes. Não bons poderes, mas os poderes do mal, sob as cores e as insígnias de Portugal e da Espanha, com seu Servido de Diós y Su Majestad, como atestam os documentos da colonização. Nessa batalha venceram o Dragão e seus sequazes.
Luta diferente da descrita por Daniel (10.10-14; 12.1-3) e por João no Apocalipse (12.7-12), deixou marcas até os nossos dias, disponíveis nas ruínas d:i Igreja de São Miguel Arcanjo, no caráter de um povo e na saga de resistência tias populações indígenas, que terminam o século sepultando seus mortos e lutando para serem reconhecidas na sociedade a partir de um estatuto.
Maus poderes criaram entre nós mecanismos de perpetuação. Dirigentes políticos corromperam os poderes da República, utilizaram táticas fisiológicas para subverter a Constituição, especialmente nos preceitos em que se defendem a democracia, o trabalho e o patrimônio construído ao longo do tempo, e impuseram um modelo de desenvolvimento que privilegia os donos do grande capital e empurra operários à mais alta taxa de desemprego. Na realidade das famílias brasileiras Miguel está perdendo a luta para o adversário.
2. Considerações exegéticas
O texto bíblico do qual vem essa perícope faz parte do chamado relato da viagem, em que Jesus aparece a caminho de Jerusalém, enviando os 70 discípulos c retornando. Muito provavelmente Lucas usou material de Marcos e da tradição dos logia, alterando a redação das formulações. Segundo Danker, seu interesse primário era explicar a rejeição da mensagem apostólica por Israel. O material da tradição de Q continha os ditos, entre os quais encontram-se os trechos de 9.51 a 13.35.
O texto de Lucas deve ter sido redigido depois do Evangelho de Marcos, a partir do ano de 70 d.C. e possivelmente em torno do ano de 90. O prólogo antimarcionita cita a Acaia como o local, mas o mais provável é que tenha surgido numa região sob a influência do cristianismo helenístico.
Uma divergência existente, pouco relevante, é a de alguns textos trazerem o número de discípulos como sendo 72, como aparece nas edições católicas da Bíblia, ou 70, como aparece nas diversas edições da tradução de Almeida. No texto grego essa expressão aparece em parênteses e as notas de rodapé indicam os manuscritos onde aparece dessa forma.
3. Breve análise do texto
O texto começa trazendo uma expressão de exclamação dos discípulos (v. 17). Segundo Champlin, uma alegria estupefata. Não tinham esperado tão grandes e imediatos resultados. Haviam pensado que o poder de expulsar demônios se confinara exclusivamente à ação imediata do Senhor ou dos doze apóstolos; e então descobriram que possuíam, por semelhante modo, o poder de libertar da escravidão. Parece que os discípulos, mesmo envolvidos com a luta, se surpreendem ao vencê-la. A primeira conquista é a interior. É a de ter descoberto que vencer era possível, factível.
Afinal, toda a luta se justifica na busca da vitória, mas, passado o fragor da batalha, o que fazer diante da vitória? É preciso consolidar a conquista. Na estratégia militar isso significa ter projetos viáveis e criar condições para efetivá-los. Um risco presente nesse momento é perder-se indefinidamente na celebração da vitória, esquecendo-se da necessidade de consolidá-la. A intervenção de Jesus confirma a vitória. Noutras palavras, ele já sabia que a vitória era possível. A menção de Jesus a Satanás, palavra hebraica para designar adversário, descrevendo-o como quem foi derrotado e precipitado por terra, chama os discípulos a celebrarem os primeiros resultados práticos de sua missão e a porem os olhos nos desafios que já começam a se avizinhar (v. 18). “Este ‘ver’ de Jesus não é uma visão à distância, mas implica a sua presença que atua com autoridade e poder por meio dos discípulos”, segundo Lancellotti e Boccali.
Jesus venceu o poder do mal e preocupou-se em comunicar a sua força transformadora aos seus discípulos missionários (v. 19). A habilidade para exorcizar supõe não ter uma grande ambição como discípulo. A luta agora terá prosseguimento através do trabalho dos discípulos, e posteriormente através da Igreja, a quem ele transmitiu a sua autoridade ao citar as palavras do Salmo 91.13, dando o dom messiânico da segurança aos seus discípulos (Is 11.8). A tarefa seguinte será incrementar no mundo a força transformadora do evangelho. A Igreja passou a assumir essa mensagem depois da partida de Jesus, consciente de que o reino de Deus chega onde essa mensagem chega. O destino humano, visto como o sentido da missão, é decidido em termos de sua resposta a essa mensagem.
A segurança para a missão resulta da comunhão com Deus, razão pela qual a Igreja exorta os cristãos a viverem de acordo com os direitos de cidadania de Deus, como filhos e herdeiros dele (Rm 8.16-17). Experimentarem da alegria do Reino deve ser fator de alegria para os discípulos, terem os nomes conhecidos e amados pelo Pai, descobrirem-se numa comunhão profunda, guardados por bons poderes, mesmo sob ameaças, como compôs Dietrich Bonhoeffer:
De bons poderes sinto-me cercado, bem protegido e bem consolado;
assim desejo eu passar os dias e ter convosco um ano de alegrias.
Por bons poderes muito bem guardados, confiantes esperamos o que há de vir;
Deus está conosco sempre noite e dia, assim é certa hoje sua alegria.
Ainda o antigo nos tortura, o peso de maus dias dá amargura.
Senhor, dá a nossas almas acuadas a salvação à qual são preparadas.
Estende-nos o cálice amargo da dor e o beberemos sem embargo,
porque nos vem de tuas mãos divinas. Até com gratidão sofrer ensinas.
E se quiseres dar-nos alegrias ainda sob o sol dos breves dias,
então lembrar-nos-emos do passado e entregamo-nos ao teu cuidado.
Quando o silêncio se espalhar profundo todo ao redor deste pequeno mundo.
Repleto de adoração ecoa do canto que a ti teus filhos entoam.
4. Meditação: para vencer é preciso amar
O que fazer para se libertar de estruturas que aprisionam, limitam e reduzem suas possibilidades? Manter-se refugiado num modus vivendi eclesiástico rural e etnicamente definido é a situação para a maior parte das comunidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Uma tomada de consciência social-política-cconômica é um dos caminhos. A catarse físico-emocional coletiva dos cultos carismáticos parece ser outro. Há vários outros, mas sobretudo é preciso amar.
Esse texto nos coloca diante de dilemas: o que precisamos fazer para somar forças na luta contra a fome e a miséria? Será possível transformar o Brasil num lugar que nos encha de orgulho? Como vencer as barreiras que nos impedem de ser uma Igreja popular, redescobrindo a contribuição dos luteranos para este país?
Essa discussão exige um envolvimento e a pergunta inicial é: se de fato nos sentimos responsáveis, como Igreja, por buscar respostas para os dilemas brasileiros, por que não encetar o diálogo? Visível, honesto e bem intencionado? Essa pergunta, feita pelo ex-presidente da IECLB e da Federação Luterana Mundial ao defender a Declaração Conjunta de Católicos e Luteranos sobre a Justificação por Graça e Fé, deveria transformar-se em assunto de debate em círculos bíblicos, prédicas, encontros de mulheres e jovens, forçando sua entrada nas pautas de outros grêmios.
Como essa Declaração Conjunta pode juntar uma Igreja majoritariamente grande, como a Católica, com uma Igreja de pequena expressão numérica, como a IECLB, na luta contra a fome? Como lembrou Brakemeier, sofismas teológicos não cabem, quando o povo tem fome (…) é inegável também que o combate à fome é debilitado pela divisão dos cristãos enquanto persiste. A miséria em nosso continente é insistente apelo à unidade das Igrejas (in: Doutrina da justificação por graça e fé, Porto Alegre : EDIPUCRS; São Leopoldo : CEBI, 1998, p. 41). Juntos podemos vencer a fome e a miséria.
Sobre a transformação possível do Brasil um bom exemplo é o futebol. Do esporte elitista trazido da Inglaterra e praticado por rapazes brancos da alta sociedade, o futebol se transformou numa paixão nacional. Isso o fez deixar o estádio, freqüentado por senhoras distintas e cavalheiros de fraque e cartola, e ganhar as várzeas e subir os morros, de onde, jogado nas ruas e terrenos baldios, voltou às escolas da classe média e tornou-se uma unanimidade. Baseado no desempenho físico, subverteu o sofisticado esquema discricionário e guindou favelados ao status de mais bem pagos atletas do mundo, superando o desprezo das elites, capitaneando inigualável volume de recursos publicitários e embalando a alegria de milhões de pessoas.
Já imaginaram quando o brasileiro tiver com os políticos o tipo de relação que tem com os ídolos do futebol, chegando a telefonar, cobrar, xingar, exigir o belo, não se contentar com o meio-termo? Mais que isso, já pensaram como será o país quando descobrirem a possibilidade de vencer na sociedade como conseguiram no gramado: transformar um jogo de elite num esporte popular, conquistar a fama de melhores do mundo e recuperar auto-estima e o respeito próprio?
E, finalmente, por que a IECLB não cresce? Qual é a barreira que impede as outras pessoas de se encantarem com essa Igreja, quererem ser membros, serem aceitas na comunidade e operarem a mudança preconizada por Schlieper em 1951? O que nossos membros temem que aconteça à sua Igreja se ela se popularizar, se ganhar a praça? Talvez até mostremos que podemos crescer como as igrejas luteranas da Indonésia, Tanzânia, Etiópia, Madagáscar e índia — mais recentes, mais pobres e com maior número de membros que a IECLB —conquistando a admiração dos luteranos do mundo. E nos sentindo brasileiros, crescendo com nosso país e influindo cada vez, mais no seu destino.
Enquanto sentimos vergonha do nosso país, não o mudaremos. Nós só mudamos o que amamos. E amar supõe vencer o medo (l Jo 4.18).
Numa palavra: é preciso amar. E mudar.
5. Subsídios litúrgicos
Prédica: Para falar sobre a correlação de forças na sociedade, o/a pregador/a deve mostrar um feixe de 15 varinhas de bambu, pedir a um voluntário para segurá-las com as duas mãos e tentar quebrá-las contra o joelho. Diante da impossibilidade, deve perguntar: E então, não é possível quebrar todas ao mesmo tempo?'' Em seguida, deve perguntar à comunidade: ' 'Será que ele conseguirá quebrar todo o feixe de varinhas de bambu? Diante da resposta negativa, deve ponderar com o voluntário: E se você usar a cabeça e desfizer o feixe, será que conseguirá quebrar as varinhas de bambu? Sugerir que o voluntário vá tentando com cinco, três, duas e, finalmente, uma varinha. Perguntar aos presentes: E se outras pessoas se dispuserem a ajudá-lo a quebrar as varinhas de bambu?
Refletir: assim como a tarefa de vencer os demônios parecia difícil aos discípulos, há tarefas que parecem impossíveis à primeira vista. Mas se colocarmos a autoridade que nos foi dada a serviço, encontrarmos alternativas e envolvermos outras pessoas, o objetivo irá se tornando realizável. Assim é na vida e na fé. Jesus tentou dizer aos discípulos que vencer Satanás era possível.
6. Bibliografia
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo : Milenium, 1980. v. 2.
DANKER, F. W. Jesus and lhe New Age according to St. Luke. St. Louis : Clayton, 1979.
GORGULHO, G. S., ANDERSON, A. F. O caminho da paz: Lucas. 2. ed. São Paulo : Paulinas, 1980.
LANCELLOTTI, A., BOCCALI, G. Comentário ao Evangelho de São Lucas. Petrópolis : Vozes, 1979.
STORNIOLO, I. Como ler o Evangelho de Lucas : os pobres constroem a nova história. 2. ed. São Paulo : Paulus, 1992.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia