Prédica: Mateus 7.21-29
Leituras: Deuteronômio 11.18-21,26-28 e Romanos 3.21-25a
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 2º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 06/06/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:
1. Introdução
Os textos previstos para este domingo de alguma forma concordam no dado básico da importância do ouvir e do praticar a palavra de Deus e as bênçãos daí advindas.
O texto de Dt 11.18-28, tomado no seu todo, move-se dentro do princípio da retribuição divina em relação ao agir humano: guardando as palavras, respectivamente mandamentos de Deus, Deus proverá a bênção, aqui em especial da posse da terra. Este é um típico princípio do pensamento e da teologia deuteronomistas. Ouvir e praticar a palavra da Tora implica bênção (vv. 26-27) e o não fazê-lo implica maldição (vv. 26 e 28). Em todo caso, a prática das palavras da Tora conduz a uma justificação perante Deus: a justificação do justo = daquele que realiza o que propõe a Tora. ' 'Deves perseguir a justiça e somente a justiça, afirma uma regra básica do pensamento deuteronômico em Dt 16.20. E o princípio central da Tora é a prática da misericórdia.
O texto de Rm 3.21-25a fala em termos básicos da justificação através da fé em Jesus Cristo. No entanto, o início do v. 21, sobretudo a expressão nuni de xoris nomou, traz algumas dificuldades. Ela deveria ser entendida como: e agora, fora da Tora (…) manifestou-se a justiça de Deus (…) . Esta é a grande novidade de Paulo: anunciar que a justiça e a justificação acontecem fora do espaço da Tora e dos profetas, sim, que ela se visualizou e encarnou em Jesus Cristo. Há um desenvolvimento na história da salvação. Porém seria uma ruptura total? Não! Paulo não argumenta em favor de um cristianismo sem lei ou sem a Tora. Anulamos, pois, a Tora pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a Tora (Rm 3.31). Para ele, a Tora é santa, justa e boa (Rm 7.12); Deus atua em Cristo a fim de que as sentenças justas da Tora possam ser realizadas na força do Espírito (Rm 8.4), e, por fim, o tornar pleno da Tora é o amor (Rm 13.10). Paulo anuncia esta grande novidade da justificação pela fé em Jesus Cristo.
O texto de Mt 7.21-29, sobretudo a parábola dos dois fundamentos, mostra que a boa nova da justificação através de Jesus Cristo não está desvinculada da Palavra (Torá?). Quem ouve estas (minhas) palavras e as pratica (…) . A justificação está vinculada com a prática da Palavra. O amor é exercício concreto da fé e da Palavra. Este é o tema básico do texto do Evangelho previsto para este domingo.
2. Mateus 7.21-29: a prática do amor é o exercício da fé e da Palavra
Inicialmente convém destacar que o texto de Mt 7.21-29 faz parte do trecho de conclusão do Sermão do Monte (Mt 5-7). O final característico está dado em 7.28-29, destacando que as multidões estavam maravilhadas da sua doutrina, porque Jesus ensinava como quem tem autoridade (exousia).
Como final do Sermão do Monte, entende-se muito bem a colocação da chamada parábola dos dois fundamentos. Ela coloca todo o discurso de Jesus no Sermão do Monte sob a dupla perspectiva da bênção e da maldição. Nisso há um paralelismo claro com o final de outros trechos de cunho legal na Bíblia, como o final da lei deuteronômica (Dt 12-26*) em Dt 28 e 30.15-20 e também como o final do código da santidade (Lv 17-26) em Lv 26. Trata-se, pois, de um recurso comum para sublinhar a inter-relação entre ouvir e praticar. Apenas o ouvir não basta! (Lückemeyer, p. 158.)
O trecho de Mt 7.21 -29 apresenta pelo menos três temáticas diferentes. O final, nos vv. 28-29, ressaltando a multidão maravilhada com a autoridade de Jesus, fecha todo o Sermão do Monte. A parábola dos dois fundamentos, nos vv. 24-27, destaca a necessidade da prática da palavra de Jesus (de Deus). Os vv. 21-23 estão, na verdade, vinculados tematicamente com 7.15-20, onde se destaca o problema dos falsos profetas. A esses falsos profetas também se alude nos vv. 21-23.
Apesar dessa vinculação dos vv. 21-23 com os vv. 15-20, os vv. 21-23 estão relacionados com os vv. 24-27 através da perspectiva escatológica. Em Mt 7.22, o ambiente escatológico se destaca através da expressão naquele dia, seguido em 7.23 por então. Isso tem a sua contrapartida na parábola dos dois fundamentos, onde a formulação será comparado (omoiotesetai) aponta para um futuro escatológico. O Cristo que prega e ensina passa a ser, no final do Sermão do Monte, o Cristo-juiz. A ele cabe a prerrogativa do julgamento. O julgamento não deve ser antecipado pela comunidade. Nesta persiste a convivên¬cia do joio e do trigo (Mt 13.36-43), o que em lermos luteranos seria equivalente ao simul justus et peccator. A comunidade, porém, precisa ter um critério de reconhecimento daqueles que dela fazem parte. Qual é esse critério?
Olhando-se para o conjunto da nossa perícope, vai ficando claro que o critério para o reconhecimento dos verdadeiros discípulos e verdadeiras discípulas de Jesus é a práxis do amor. A prática ou o agir é o espaço de realização e verificação do seguimento. Isso é desdobrado nos dois blocos maiores da perícope. Vejamos.
a) Em Mt 7.21-23 provavelmente há uma referência a falsos profetas ou a uma espécie de carismáticos. A atuação de tais pessoas ou grupos está atestada em vários textos sob o ponto de vista da dubiedade (Zweideutigkeit) deste fenômeno (cf. l Jo 2.18-27; 4.1-6; Mc 9.38-40; Tt 1.10-16; At 20.29s.; Ap 2.20; 2 Pe 2.1 e também Didaqué 11.3 = 12.5). Tais profetas ou carismáticos provavelmente eram pessoas vinculadas à Igreja cristã primitiva; falavam em nome dela e em nome do Senhor Jesus, com realizações carismáticas e com dons espirituais como profetizar, expulsar demônios e realizar milagres. Trata-se de obras praticadas pela fé em Jesus e a serviço da Igreja! (Trilling, p. 189). O problema dessas obras, porém, é que estão em desacordo com o princípio do amor. (…) elas ficam como que extrapoladas da própria vida, pois eles [os profetas] mesmos não fizeram a vontade de Deus (…) (Trilling, p. 189). Coloca-se, aqui, a contradição entre a confissão verbal e o testemunho pela prática a partir do amor. Essa contradição é bem perceptível também hoje dentro do chamado mundo evangélico.
A crítica de Mateus contra esses profetas ou carismáticos não é que eles defendam ou ensinem outra doutrina. Não, o problema não está em nível doutrinário. Eles até são crentes em Jesus e em seu nome realizam feitos espirituais. O seu problema reside na sua prática. Para isso é elucidativa a sentença condenatória de Mt 7.23: Apartai-vos de mim vós que realizais a não-lei (anomia). A tradução de Almeida e outras: vós que praticais a iniquidade não está bem correta neste ponto. Fala-se de realizar a anomia, o que equivaleria a dizer viver sem lei, ou viver sem a ligação com a Tora de Deus. Esses profetas ou entusiastas até já foram designados de antinomistas (Luz, p. 402s.), isto é, gente que se expressa claramente contrária à Tora de Deus como critério de orientação para a prática. A referida sentença do v. 23 é uma citação de SI 6.9, onde se fala em praticar a iniquidade (pa’al ‘awen). Praticar a iniquidade, aqui, é ação característica da pessoa desligada da Tora. Em termos vétero-testamentários, portanto, é uma pessoa ímpia ou pecadora. Esses profetas são, pois, qualificados como sendo contrários ou indiferentes à Tora, e isso perfaz a sua iniquidade.
Mateus, porém, no decorrer de todo o Evangelho, procura manter a vinculação da pessoa cristã com a Tora de Deus. Em Mt 24.3-14, onde se descreve o princípio das dores, novamente retorna o tema da anomia associado aos profetas do fim dos tempos. Neste contexto, a prática da anomia (iniquidade) é afirmada como a causa do esfriamento do amor. Jesus (e Mateus), portanto, vincula(m) a prática do amor com a observância da Tora como orientação para a realização da vontade do Pai que está nos céus.
b) Essa vinculação da pessoa cristã com a palavra (Torá) de Jesus/Deus, segundo Mateus, também está bem presente em Mt 7.24-27, na chamada parábola dos dois fundamentos. O trecho inicia com (…) quem ouve estas minhas palavras (…). A inclusão de estas provavelmente é exclusiva de Mateus e, no contexto, refere-se ao Sermão do Monte. Em Lc 6.46 a formulação é mais genérica.
Nessa parábola dos dois fundamentos enfatiza-se a inter-relação e/ou unidade entre o ouvir e praticar. Na nossa Comunidade de Niterói, numa primeira rodada de estudo sobre este texto, algumas pessoas, indagadas sobre a diferença entre o homem prudente e o homem insensato, manifestaram opiniões como: o insensato busca o caminho mais fácil, o insensato se deixa levar por opiniões diversas e tolas. Observando-se o texto, porém, é interessante perceber que tanto o homem prudente quanto o homem insensato ouvem a Palavra. O ouvir é o ponto de partida comum a ambos. O que perfaz a grande diferença entre os dois é o praticar. Isso fica bem claro no texto: todo o que ouve estas minhas palavras e as pratica (v. 24) versus todo o ouvinte destas minhas palavras e não praticante delas (v. 26). A diferença entre a pessoa prudente e a pessoa tola é a observância das palavras de Jesus/Deus na prática do dia-a-dia. Disso advém a bênção ou a maldição, respectivamente a firmeza ou a ruína.
Segundo Mateus, o que dá a firmeza é o exercício constante sobre o fundamento da palavra de Jesus/Deus. Não há uma garantia especial somente para o crente-ouvinte ou só confessante. O exercício diário é fundamental. Isso se pode deduzir no texto do fato de que sobre a construção de ambos, do prudente e do insensato, abatem-se as mesmas intempéries: chuva, rios, ventos. A casa aqui, ao meu ver, deveria ser metaforicamente entendida no sentido de corpo ou vida da pessoa. Para a casa, o alicerce é fundamental. Para o corpo da pessoa, o saber-se alicerçado, pela fé, em Cristo e o exercício constante dessa fé através da prática do amor são imprescindíveis para garantir a firmeza dessa construção. Ela haverá de perdurar mesmo durante as tempestades que se abatem na vida da gente.
3. Apontamentos para a celebração
Sugestão de versículo de intróito: Ajudem uns aos outros e assim vocês estarão cumprindo a lei de Cristo (Gl 6.2).
Sugestões para o encaminhamento da reflexão sobre o texto (na reflexão, optarei pela parábola dos dois fundamentos de Mt 7.24-27):
a) Se houver Bíblias disponíveis, fazer uma leitura comunitária do texto.
b) Provocar uma discussão com coleta de opiniões a partir das seguintes perguntas:
* Quais são os dois fundamentos mencionados no texto?
* Onde está o erro da pessoa insensata?
* Qual foi a sensatez do sensato?
c) Uma história para ilustrar e cativar a atenção:
Num encontro de um Curso de Teologia para Leigos, uma senhora ativa em várias frentes da Igreja e da Comunidade contou que constantemente sonha o mesmo sonho. Sonha com chuvas e inundações. Mas, no sonho, ela consegue ficar firme, enquanto à sua volta pessoas e casas desmoronam. Ela pergunta: Pastor, por que sempre sonho com isso? O que significa esse sonho?
Tentei esquivar-me de dar uma resposta. Devido à insistência respondi o seguinte: A firmeza da senhora no sonho significa a fé de uma pessoa que se sabe assentada sobre o fundamento da Palavra que é o próprio Cristo.
d) A fé vem pelo ouvir:
O apóstolo Paulo já afirmava isso. O texto de pregação também destaca isso quando diz: todo aquele que ouve estas minhas palavras (…).
A fé precisa ser abastecida com regularidade. A fé e a espiritualidade são como nosso corpo. O corpo necessita de alimento. Ainda que a pessoa não sinta fome, ou esteja simplesmente sem vontade de preparar uma comida, o corpo acaba sentindo falta. A falta de alimento acaba produzindo fraqueza.
O culto comunitário é um espaço privilegiado para alimentar a fé e a espiritualidade. Não é o único espaço. Também em casa, lendo a Bíblia, Senhas Diárias ou o Castelo Forte pode-se ter um bom alimento. Mas participar do culto é como comer uma sopa em comunidade. É bem diferente do comer sozinho em casa. Tem mais sabor porque pode-se ter comunhão.
A fé vem pelo ouvir da Palavra, e quem ouve a palavra de Cristo/Deus está no caminho de ser uma pessoa sensata ou sábia.
Mas será que somente o ouvir é suficiente?
e) A fé precisa de exercício:
Sim, o próprio texto da pregação afirma isso quando diz: quem ouve estas minhas palavras e as pratica''. No caminho da pessoa prudente estão o ouvir e praticar.
Ouvir a palavra de Deus sem praticá-la seria como ir ao médico, ouvir os conselhos, receber a receita e não pôr nada daquilo em prática. Para nada serviria!
Ou seria como a pessoa que ouviu dizer que caminhar diariamente faz bem para a saúde e ajuda a baixar aqueles quilinhos a mais. Se a pessoa não colocar isso em prática, de nada serviria! Só o bom propósito não basta. Há que exercitar, também a fé.
Jesus, aqui, nos diz uma coisa bem simples: a fé em Deus não é somente um exercício mental ou espiritual. A fé sempre se encarna; torna-se concreta no lugar onde se vive; ela leva em conta as pessoas com quem se convive. A fé se torna prática pelo exercício do amor.
Toda a Lei ou Tora de Deus insiste neste ponto: deve-se meditar sobre a Palavra dia e noite. Mas, sobretudo, deve-se perseguir sempre a justiça, somente a justiça. Em Mt 7.12, o evangelista Mateus traça um resumo dessa lei de Deus: Tudo quanto, pois, quereis que as pessoas vos façam, assim fazei-o também a elas; porque esta é a lei e os profetas. A prática do bem e do amor é o supra-sumo da Tora e dos profetas. É neste ponto que toda a pregação quer chegar. O evangelho não é somente a base para uma ética do amor. O próprio evangelho já é a prática desse amor.
Fé sem exercício se atrofia. Fé sem obras de amor é morta.
f) O verdadeiro fundamento é o ouvir e praticar a palavra de Deus/Cristo. É isso que faz a diferença entre a pessoa prudente/sábia e a pessoa tola ou insensata.
Sugestões de hinos: Hinos do povo de Deus n° 109 (Da Igreja é fundamento); 97 (Deus é castelo forte e bom); O povo canta n° 44a (Pela palavra de Deus).
Bibliografia
LOCKMANN, Paulo. Uma leitura do Sermão do Monte (Mateus 5-7) : o Sermão do Monte no Evangelho de Mateus. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis Leopoldo, v. 27, p. 48-55, 1997.
LUCKEMEYER, Valdemar. Mateus 7.21-29. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1992. v. XVIII, p. 157-160.
LUZ, Ulrich. Das Evangelium nach Matthäus : 1. Teilband — Mt 1-7. Zürich/Neukirchen-Vluyn, 1985. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament).
PORZEL Filho, Otto. Mateus 7.24-27. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1980. v. VI, p. 233-236.
RICHARD, Pablo. Evangelho de Mateus: uma visão global e libertadora. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis/São Leopoldo, v. 27, p. 7-28, 1997.
TRILLING, Wolfgang. O Evangelho segundo Mateus : Parte I. Petrópolis : Vozes, 1968.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia