Prédica: Romanos 4.18-25
Leituras: Oséias 5.15-6.6 e Mateus 9.9-13
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13/06/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:
1. Introdução
Uma busca em auxílios homiléticos os mais variados, inclusive Proclamar Libertação, mostrou-me que Rm 4 praticamente não aparece. Há, isto sim, muitas interpretações de Rm 3.21-31. Mas já uma rápida leitura do cap. 4 mostra que ele ocupa uma posição-chave no todo da Carta aos Romanos.
Nele é apresentada exaustiva prova escriturística da justificação pela fé. Encerra a parte dogmática da carta e encaminha para os caps. 5-8, nos quais a justificação é apresentada concretamente como realidade de nova vida.
Ao elaborar a prova escriturística, Paulo emprega toda a acuidade, toda a agudeza de percepção. Opera com fortes antíteses e manifesta incrível audácia. Isto não é de admirar, pois se trata da defesa da doutrina da justificação pela fé, ponto central da teologia paulina.
2. A principal argumentação do apóstolo
Abraão teve fé em Deus e isso lhe foi levado em conta de justiça (literalmente: e isso lhe foi imputado para justiça) (v. 3).
O apóstolo cita Gn 15.6: é uma passagem decisiva. O judaísmo contemporâneo pintava Abraão como um fiel observante da lei e destacava suas obras. Paulo não nega as boas obras do patriarca, mas deixa bem claro que ele não foi justificado com base nelas, e sim pela fé. O que importa é a aceitação da palavra de Deus e a permanência sob a mesma. Isto significa confiança pessoal e esperança numa promessa que nenhum ser humano pode garantir.
O verbo imputar, sem dúvida, é um termo do contexto da contabilidade, é terminologia de caráter jurídico e financeiro. De maneira figurativa imaginava-se uma espécie de registro contábil das obras boas ou más das pessoas.
Justiça de Deus não é uma questão de contabilidade! Deus nunca loi devedor de Abraão! Critérios de merecimento estão excluídos. Excluído também está o critério da produção.
Paulo, neste ponto, usa um exemplo da vida diária para sua argumentação. O operário tem direito de receber a recompensa pelo seu esforço. Quem trabalha recebe a remuneração a que faz jus. As relações entre operário e patrão são reguladas por determinações jurídicas. Para determinado trabalho é pago o salário correspondente.
Mas esse raciocínio não serve para a relação com Deus. Aqui recebe quem não realiza obras. Então não se trata mais de débito, mas de graça, xáris! O ser humano gosta de se entender diante de Deus como operário. Parece que há um estranho fascínio por querer exigir pagamento por obras realizadas. Mas na relação com Deus o critério da produção não tem lugar. Isto não significa nunca que fé seja passividade. No fundo é uma questão bem simples que está em jogo: somos operários ou filhos e filhas? Um operário realiza obras para receber seu salário, um filho recebe de graça, por isso realiza obras. Em que, em última análise, depositamos a nossa confiança? Nas obras da Lei ou na bondade de Deus? Isso não é um jogo de palavras. É, isto sim, algo extremamente sério. Aqui está em jogo o próprio conceito de Deus. Deus é um mero distribuidor de recompensa e castigo ou ele é o Deus soberano para compadecer-se dos ímpios e livre para amar?
A salvação vem pela fé naquele que justifica o ímpio. Não há, da parte do ser humano, pressuposto nenhum para a justificação.
Permanece, pois: Abraão se entregou incondicionalmente e sem reservas à promessa divina, e isto lhe foi imputado para justiça. Não há outro modo de se tornar justo diante de Deus. Para sublinhar esta tese e lhe dar mais destaque ainda, Paulo se refere a Davi como argumento adicional.
Conforme uma regra judaica, cada afirmação devia fundamentar-se em duas testemunhas. Assim, o apóstolo invoca a autoridade de Davi e cita uma passagem do Salmo 32. Só que a argumentação acontece em forma negativa: Feliz o homem cujo pecado o Senhor não leva em conta (é o mesmo verbo ' 'imputar). É bem-aventurado todo aquele que desiste de fazer cálculos com Deus.
Mas será que essa bem-aventurança não está restrita aos circuncisos? De maneira alguma, pois Gn 15.6, a palavra da fé, antecede a ordem da circuncisão de Gn 17.10ss. Quando Abraão creu, ainda não havia recebido a circuncisão. Assim sendo, ele é também o pai de todo gentio que veio a crer. São os que crêem que são filhos de Abraão (Gl 3.7).
Também os judeus devem seguir os passos de seu antecessor, imitando sua fé, se querem ser considerados filhos de Abraão.
Israel não pode reivindicar privilégios, pois a justiça de Deus não se limita ao âmbito da circuncisão. Mas precisamos ouvir, neste particular, um alerta de Käsemann:
“A revogação dos privilégios reivindicados por Israel não significa a revogação tio proto-evangelho, ligado a Israel mediante a promessa: a justificação não elimina a história da salvação, mas remove as suas barreiras, demolindo a cerca da lei, e não limita a salvação a um grupo reservado de pessoas. Ela mostra que Deus trata com o mundo e não somente com as pessoas piedosas. Também Israel, seguindo as pegadas de Abraão, é salvo unicamente pela fé, logo, não mediante a sua piedade e tradição desta, mas através da justificatio impii. A história da salvação é a história da palavra divina, que encontra fé ou provoca a incredulidade; por isso, ela não se assinala por uma continuidade terrena perceptível, mas por fraturas e paradoxos, e conduz sempre além das tumbas e delas faz ressurgir.” (Perspectivas paulinas, p. 102.)
Justificação do ímpio é sempre creatio ex nihilo, que conduz à existência!
3. Nosso texto: vv. 18-25
O apóstolo Paulo reforça a tese que lhe é decisiva: Abraão foi justificado pela fé: Esperando contra toda esperança, ele acreditou e assim se tornou pai de um grande número de povos (…)• Fundamental é a fé, definida no v. 17b como fé no Deus que faz viver os mortos e chama à existência o que não existe.
O paradoxo dessa fé é ilustrado com a situação do próprio Abraão: ele não fraquejou ao considerar o seu corpo — era quase centenário — e o seio materno de Sara, ambos atingidos pela morte (v. 19). Há quem queira sugerir que a capacidade generativa de Abraão teria sido conservada de alguma maneira milagrosa. Mas isso estaria em oposição à argumentação do capítulo todo. Está em contradição igualmente a leitura proposta pela variante Koiné que diz: Abraão não fraquejou, ao não olhar o seu corpo (…) Ele não se teria dado conta da sua real situação ou a teria ignorado. Mas esta proposta viria em prejuízo do paradoxo da fé.
Abraão justamente creu apesar da impossibilidade sua e de Sara de gerarem um filho. Espera onde, humanamente falando, não há nada para esperar! Abraão não ignora a realidade, não foge dela, mas a encara.
“Não se refugia na ilusão, nem mesmo em nome de uma piedade edificante. Vê-se, ao contrário, aqui na terra, em confronto com a morte e o nada, em si mesmo e no mundo que o cerca, Neste sentido, ele é caracterizado não pelo credo quia absurdum, mas pelo credo absurdum, isto é, no que assim é considerado pela razão humana. Contra toda realidade terrena, Abraão ousou confiar na promessa divina e abandonar-se àquele que ressuscita os mortos. Não tem outra garantia, além da promessa.” (E. Käsemann, p. 107.)
Fé não é ruga, fé não é entorpecente! Ela faz enxergar a realidade tal qual é e conta com a ressurreição dos mortos.
Abraão creu na promessa. E mais uma vez a conclusão: Eis por que isto lhe foi levado em conta de justiça'' (v. 22).
Os vv. 23-25 reforçam que todas essas considerações do apostolo Paulo não devem ser entendidas como um discurso teórico sobre um personagem da História. Não se quer alimentar mera curiosidade intelectual. Nossa causa está em jogo!
O episódio de Abraão é recordado para ser aplicado aos leitores. Tudo o que é declarado a respeito dele se repete na história dos seus filhos. Ora, não é para ele só que está escrito: Isto lhe foi tomado em conta, mas para nós também (…) (vv. 23-24a). E nós no caso significa os cristãos, pois o texto continua: (…) visto que cremos naquele que, dentre os mortos, ressuscitou Jesus, nosso Senhor (…).
Abraão é mais do que um exemplo de fé. A sua fé no Deus que faz os mortos viverem (4.17) é prefiguração da fé cristã no Deus que ressuscitou Jesus dos mortos. Existe uma correspondência indissolúvel entre as duas! A diferença é que os cristãos já têm concretamente o penhor (ou o aperitivo, como prefere Rubem Alves) do cumprimento da promessa.
Em outras palavras: em Jesus nós temos uma amostra do Deus que cria e conduz à existência. Temos um sinal visível da vitória sobre a morte. Mesmo assim, também nós, igual a Abraão, continuamos esperando. Esperamos o cumprimento total da promessa, quando veremos face a face (l Co 13.12).
O último versículo (v. 25), é um antigo credo cristológico. A linguagem litúrgica e o paralelismo dos membros o evidenciam: Jesus Cristo entregue por nossas faltas e ressuscitado para nossa justificação. No capítulo anterior (3.21 ss.) o apóstolo afirma que a justificação nos vem através da morte expiatória de Jesus. Aqui ela é vista como fruto da ressurreição. Não será isto uma contradição? De forma alguma! Em todos os escritos paulinos cruz e ressurreição formam uma unidade inseparável, são um só acontecimento. Em seu conjunto evidenciam que a fragilidade do amor de Deus vence pecado e morte!
4. Em direção à prédica
l. Todos os trechos bíblicos previstos para o 3° Domingo após Pentecostes (Os 5.15-6.6; Mt 9.9-13; e o texto para a prédica, Rm 4.18-25) testemunham que Deus busca o perdido. O trecho do Antigo Testamento diz: Misericórdia quero, e não holocaustos, pois não vim chamar justos, e, sim, pecadores. No Evangelho lemos: Mas Jesus, ouvindo, disse: Os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes. É mensagem que se tornou o centro da Reforma! Por isso sugiro iniciar a pregação com uma reflexão em torno da pergunta: Como consigo um Deus misericordioso? É a pergunta básica da nossa vida. Ela não é uma questão entre tantas outras. Não visa o preenchimento de alguma lacuna na nossa vida, não é mero complemento. Da sua resposta depende o todo da nossa existência!
Nossas alegrias, nossas preocupações, nossos assuntos do dia-a-dia, tudo recebe sua direção a partir da resposta a esta pergunta: Como encontrar um Deus misericordioso? Ter um Deus misericordioso significa vida, significa vivei a partir da graça.
2. O apóstolo Paulo nos apresenta um homem que encontrou. Encontrou o quê? A resposta é muito simples: alcançou graça. Deus se revela na história. Deus falou a Abraão. Falou de forma definitiva em Jesus Cristo. Fala também a nós através da proclamação da sua palavra e através da administração dos sacramentos. Ele desperta fé! Aqui imagino considerações mais detalhadas sobre a natureza da fé no sentido do exposto anteriormente no estudo do texto bíblico. Abraão teve fé em Deus e isso lhe foi levado em conta de justiça (v. 3). Esperou onde, humanamente falando, não havia motivo para esperança.
3. Fé é crer no Deus que justifica o ímpio, é crer no Deus que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem (v. 17). Fé é crer naquele que dentre os mortos ressuscitou Jesus, nosso Senhor (v. 24).
4. Fé não é fuga da realidade! Não se engana quanto à situação de morte que nos rodeia. Não se contenta com uma piedade edificante e desligada do mundo. É, antes, esperança contra a esperança! A partir da certeza de que Deus ressuscita mortos e chama à existência, a fé é protesto contra tudo o que promove morte.
Neste sentido, a fé liberta para viver. A mensagem evangélica da graça de Deus é inspiração poderosa para trabalharmos os desafios que se nos colocam na sociedade hoje. Estamos livres para nos voltar aos excluídos e lutar com eles por vida digna. Vivência na fé não nega o mundo! Lembro Dietrich Bonhoeffer, que me marcou, já no meu tempo de estudante, com sua afirmação: Só quem ama a terra e Deus ao mesmo tempo pode crer no reino de Deus. Podemos amar a terra e ouvir o grito do oprimido exatamente porque Deus, em sua infinita misericórdia, nos libertou a nós mesmos da preocupação de termos que nos mostrar merecedores da sua justiça.
Comunidade que, como Abraão, alcançou graça é espaço de liberdade para viver!
5. Subsídios litúrgicos
Tanto o texto de Oséias quanto o do Evangelho segundo Mateus são muito impactantes. Sugiro recitar pausadamente as passagens mais marcantes, ao final da prédica, e deixá-las ecoando, sem nada mais.
Em 1983, a Comissão Interluterana de Literatura editou as devoções diárias Castelo Forte exclusivamente com textos de Lutero. Já se passam 15 anos e muitos não têm mais acesso a esta pequena preciosidade. Por isso, cito aqui, para inspiração com vistas à interpretação do último versículo (v. 25) da nossa perícope, o seguinte texto:
Ressuscitou por causa da nossa justificação
Cristo foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação. (v. 25).
Quando olho para os meus pecados, eles me sufocam. Por isso devo olhar para Cristo, que tomou sobre si os meus pecados e se tornou bênção. E agora os pecados não estão mais sobre minha consciência, mas sobre Cristo, a quem procuram sufocar. Vejamos, então, o que os pecados fazem com Cristo. Derrubam-no e o matam. Ó Deus, que é feito de meu Cristo e meu Salvador? Eis que Deus o traz para fora e o ressuscita. E não só lhe dá vida, mas também assento no céu, e faz com que tenha domínio sobre todas as coisas. E que foi que aconteceu com o pecado? Está pendurado na cruz. Se confio nisso, tenho, a exemplo de Cristo, uma consciência feliz, pois estou livre do pecado. Que a morte, o diabo, o pecado e o inferno se atrevam a me fazer algum mal! Na medida em que estou em Adão, certamente podem fazê-lo; terei de morrer em breve. Mas Cristo tomou sobre si o meu pecado e morreu por causa do mesmo, de sorte que não podem me fazer mal. Pois Cristo é forte demais para eles. Eles não conseguem segurá-lo. Cristo vem para fora e os deixa deitados no chão. Sobe aos céus, leva cativo o pecado e toda desgraça, e dos céus domina sobre tudo para todo o sempre. Assim tenho uma boa consciência, sou feliz e estou salvo, não tenho mais medo de nenhum desses tiranos, pois Cristo tomou o meu pecado e o levou sobre si. Mas eles não podem ficar sobre Cristo.
Bibliografia
ALTHAUS, Paul. Der Brief an die Römer. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1959.
(Das Neue Testament Deutsch).
BÍBLIA : tradução ecumênica. São Paulo : Loyola, 1994.
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. São Paulo : Paulinas, 1980.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia