Prédica: Romanos 8.1-11
Leituras: Oséias 5.15-6.2 e Mateus 20.17-28
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: 4º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 14/03/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:
1. Introdução
Nas séries antigas de perícopes, que serviam de base para os estudos em Proclamar Libertação, o texto de Rm 8.1-11 era tema de pregação para o Domingo de Pentecostes. Como tal, foi analisado duas vezes nesta coleção: no v. l, p. 39ss., e no v. 14, p. 253ss. Na nova série ABC, ainda não foi tema de análise específica. Os textos paralelos foram enfocados em PL 21 (Mt 20.17-28), respectivamente em PL 23 (Os 5.15-6.2), ambos como texto de pregação para o 4° Domingo da Quaresma.
Qual a relação desses textos entre si e com a época da Quaresma? Em Oséias e Mateus a relação com a Quaresma é clara: Oséias trata da penitência e Mateus aborda um episódio durante a caminhada para Jerusalém, logo após uma nova referência de Jesus à sua morte iminente, em que ele acentua que o seguimento dele implica a disposição ao sofrimento e, principalmente, a atitude de serviço. Já o texto de Romanos não tem esta evidência clara. Não se fala em penitência nem nas implicações do discipulado. Ou será que o andar segundo a carne/inclinar-se para a carne, em contraposição ao andar segundo o Espírito /inclinar-se para o Espírito (vv. 4-5), quer ser tal referência à penitência? Olhemos primeiramente mais a fundo o texto do apóstolo Paulo e, depois, vejamos a relação que há entre as diferentes leituras e a data proposta.
2. Antes de falar — ouvir: o texto em seu contexto
A Carta aos Romanos, diferentemente das demais cartas de Paulo, é mais um tratado teológico do que uma carta. Por isso cada parte está na sequência da argumentação anterior. Assim, os caps. 5 a 8 são uma fundamentação, sempre sob nova ótica, da tese central da Carta e de toda a mensagem cristã: a justificação por graça (3.21 28). Esta senha é sempre retomada na passagem para um novo enfoque: 5.1 justificados mediante a fé (…) por meio de Jesus Cristo nosso Senhor; 5.21 — justiça para a vida eterna mediante Jesus Cristo nosso Senhor; 6.23 — o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor; 8.1 — já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus (cf. Nygren, p. 253-257).
Esta é a tese — nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus — que é fundamentada a seguir (observe que quatro vezes é usada a conjunção gar porque [vv. 2, 3, 5 e 6]. Esta tese é retomada numa segunda parte, agora diretamente dirigida aos leitores: vv. 6s.! E, como na primeira parte, com nova fundamentação. Desta vez, no entanto, não com a conjunção causal gar, mas em forma de orações condicionais (ei/eiper. que também aparece quatro vezes: v. 9 |2x], 10, 11). Assim, o texto está claramente estruturado:
Tese: nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus — v. l.
Fundamentação: a) a lei do Espírito da vida livrou da lei do pecado e da morte — v. 2;
b) assumindo a fraqueza da carne, o Filho venceu o pecado da carne e trouxe a justificação do Espírito — vv. 3-4;
c) carne e Espírito se contradizem — v. 5;
d) carne produz morte, Espírito produz vida — vv. 6-7;
Conclusão: os que estão na carne não podem agradar a Deus — v. 8.
Complementação da tese: vós não estais na carne, mas no Espírito — v. 9a.
Fundamentação:
a) quem não tem o Espírito não está em Cristo — v. 9c;
b) o corpo está morto, mas o Espírito é vida — v. 10;
c) quem ressuscitou Jesus dos mortos vivificará os corpos mortais — v. 11.
Esta estruturação já nos mostra que o texto está carregado de termos teológicos centrais que são mencionados diversas vezes: sarx/carne — 10 x pneuma/Espírito — 9 x; hamartia/pecado — 5 x; nomos/lei — 4 x; zoe/vida — 3 x (duas vezes junto com paz e justiça, em conexão com Espírito); thanatosl morte — 2 x, ambas em conexão com carne ou pecado. Portanto, em jogo está a contraposição entre dois conjuntos que marcam o ser humano: ou Espírito — vida, paz e justiça ou carne — lei, pecado e morte.
Vejamos inicialmente o segundo conjunto. Toda a argumentação do apósto¬lo, nas diversas fundamentações, vai na direção de demonstrar que os que andam segundo a carne são determinados pela carne (v. 5), têm a morte como seu fim (v. 6), são por isso inimigos de Deus (v. 7) e não podem agradar a Deus (v. 8). Por quê? Porque a carne abusa da lei para perverter o seu sentido original de expressão da boa vontade de Deus, transformando-a em meio de levar o ser humano a agir justamente contra a vontade de Deus (7.7ss.).
Assim, fica evidente que a carne representa um poder, uma força que determina toda a maneira de ser da pessoa. Carne não são, como esta acostumados a pensar por influência do pensamento grego, os instintos carnais, geralmente identificados com a sexualidade. Carne é uma força que determina a pessoa integralmente, também as suas ideias, seu espírito, seus ideais muito nobres. Em suma, carne é toda a realidade que vive em oposição a Deus (v. 7) e, conseqüentemente, não agrada a Deus (v. 8). Por isso ela é idêntica ao pecado e leva à morte.
Mas Deus venceu a oposição a ele, entrando no arraial do inimigo. Deus não vence o poder da carne eliminando-a, mas destruindo o seu poder dentro da sua própria área (enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa — v. 3). Em meio a um ambiente hostil, Jesus destrói a força dessa realidade mediante a obediência total a Deus e, assim, restabelece a possibilidade de vivência segundo a vontade de Deus (v. 4).
Como isso foi possível? Porque um outro poder foi determinante no próprio Filho: o Espírito. À semelhança de carne, Espírito também não significa apenas os pensamentos nobres em contraposição às paixões inferiores. Espírito' ' é igualmente um poder, uma força que determina toda a pessoa. É o poder de Deus que orienta toda a maneira de ser da pessoa. Por isso ele significa vida e paz (v. 6). Portanto, em jogo estão estas duas possibilidades: viver segundo a carne ou viver segundo o Espírito.
Chama a atenção o fato de que Paulo usa o termo nomos em conexão com Espírito e não apenas com carne (v. 2). Isso se deve à argumentação do cap. 7, em que o apóstolo reflete sobre a validade da lei diante do evento da cruz. Já ali Paulo destaca que a lei é boa, santa e espiritual (vv. 12, 14). Aqui o apóstolo retoma essa avaliação positiva da lei, destacando que os crentes encontram a boa vontade de Deus expressa na lei nesta maneira de ser que nasce do Espírito vivificador de Cristo (v. 4). Logo, o viver segundo o Espírito, que dá vida e paz (v. 6), é um viver que cumpre a vontade de Deus, justamente por ser movido e orientado pelo Espírito de Deus.
Interessante é observar como o apóstolo varia a maneira de falar sobre o Espírito nos vv. 9-11. Fala de Espírito de Deus (v. 9b), Espírito de Cristo (v. 9c) e Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos (v. 11). Além disso, no v. 10, mesmo não falando do Espírito, continua a mesma ideia ao usar a expressão Cristo em vós. Conforme Ez 37.5s., o Espírito de Deus é a força que dá nova vida em meio à morte. Por isso o crucificado, que foi ressuscitado pelo poder do Espírito de Deus, é o verdadeiro representante deste Espírito de Deus, e por isso esse Espírito de Jesus também determina a maneira de ser dos que lhe pertencem (cf. Stuhlmacher, p. 112). Aqui e agora, mesmo continuando a viver na carne e a ter este corpo, aqueles em quem Cristo está vivem uma nova realidade: sob a força e a orientação do Espírito, eles vivem uma vida nova. Este é o critério para se saber quem é e quem não é dele (v. 9c). Mas isso não é um critério definitivo no sentido de nós podermos determinar, já aqui e agora, quem são os de Cristo e os definitivamente excluídos. Por isso, no v. II, o apóstolo aponta para a concretização definitiva desse viver em Cristo. O verbo no futuro — vivificará — aponta para a consumação. Na fé essa esperança já é uma certeza. E por isso ela se torna constantemente o impulso e o critério para a vivência sob o Espírito de Cristo.
3. Antes de falar — ouvir novamente: o texto em nosso contexto
Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. Esta é a verdade revolucionária do evangelho. Nisto se resume o cerne do Novo Testamento. Mas essa verdade se torna, para algumas pessoas, motivo de inquietação; para outras, motivo de auto-suficiência. Auto-suficientes se tornam aqueles que, podendo mostrar sinais evidentes da presença espetacular do Espírito, vêem nisso a comprovação do viver segundo o Espírito ou de que de fato o Espírito de Deus habita neles (v. 9). Inquietos se tornam aqueles que não podem comprovar tais feitos espetaculares. Intranqüilos se tornam também aqueles que, preocupados com coisas bem concretas da vida, tais como a sobrevivência, o trabalho, a preservação da natureza, a saúde, o bem-estar das pessoas, uma sociedade mais justa e igualitária, se perguntam se tais preocupações não são por demais carnais e pouco espirituais. Será que o Espírito de Deus habita em nós?
Para quem considera a manifestação espetacular do Espírito como prova do andar segundo o Espírito, cabe lembrar que isso em si não é critério último, conforme o apóstolo Paulo desenvolve extensamente em l Co 12-14. Pode ser, no fundo, um cogitar as coisas da carne (v. 5). Porque não visa a edificação do próximo, mas a promoção pessoal.
Para os que se preocupam com a promoção da vida, cabe perguntar pela motivação última de todo o engajamento. Preocupar-se com tais coisas pode ser profundamente carnal, isto é, um viver segundo a carne, quando a motivação para tal não nasce do agradecimento a Deus, mas da autopromoção, do egoísmo. E aí não será a lei do Espírito da vida, mas a lei do pecado e da morte que estará determinando o seu ser. Por outro lado, a motivação será profundamente espiritual e, portanto, um viver segundo o Espírito quando a pessoa se sabe agraciada por Deus. Quando todo o seu engajamento por vida plena não visa conquistar esta vida, mas nasce da certeza de que ela já é dádiva recebida em Cristo Jesus.
Com esta observação final chegamos ao cerne da questão: em Cristo Jesus. Vale observar quantas vezes o texto faz referência ao evento fundante Jesus: para os que estão em Cristo Jesus — v. 1; Espírito da vida em Cristo Jesus — v. 2; isso fez Deus enviando seu próprio Filho em semelhança de carne — v. 3; se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele — v. 9; Cristo está em vós — v. 10; o seu Espírito que em vós habita — v. 11. Estas múltiplas referências destacam que esse evento é o ponto central e o critério último. Por outro lado, também vale que ter consciência disso nunca será conquista pessoal nossa. Isto terá que ser dito a nós. Será sempre algo que vem de fora para dentro de nossa realidade: Porquanto o que fora impossível à lei (…) isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne. Entre a auto-segurança de uns e a incerteza de outros, cabe destacar repetidamente esta verdade cristalina que o evangelho ousa anunciar de graça e para todas as pessoas que a quiserem ouvir: Não há mais condenação para os que estão em Cristo Jesus. Quem está em Cristo Jesus? Todas aquelas pessoas que se deixam presentear por ele: que foram balizadas em seu nome; que crêem nele; que abrem seus ouvidos constantemente a esse anúncio.
Uma vez ouvido esse anúncio, o texto se reporta às consequências desse evento: viver segundo a carne ou viver segundo o Espírito. No início desta segunda parte já apontávamos para essa dialética, mais sob o enfoque da certeza /incerteza de se ter ou não o Espírito Santo. Vejamos novamente essa dialética sob outro enfoque: compreensão de carne e Espírito em nosso dias. Por vivermos num mundo fortemente marcado por uma compreensão dualista do ser humano, carne/viver segundo a carne ainda é identificado com paixões inferiores: tudo o que diz respeito ao corpo humano e especialmente à sexualidade. Logo, viver segundo a carne é ser dominado por tais paixões mundanas. Por outro lado, viver segundo o espírito significa negar e anular todos esses desejos do corpo e, em lugar disso, dedicar-se puramente a coisas transcendentais, não corporais, não deste mundo. Urge ajudarmos a redescobrir a dimensão global da vida e do ser humano, assim como se nos apresenta na compreensão bíblica e como também está na base deste texto. Carne e espírito não são duas partes distintas do ser humano ou da realidade do mundo. São, ao contrário, duas grandezas que determinam integralmente a pessoa. Cuidar de sua corporalidade, viver a sua sexualidade não significa estar vivendo segundo a carne. Da mesma forma, dedicar-se a causas nobres ou levar uma vida totalmente entregue ao fomento da cultura e do intelecto não significa viver segundo o espírito. Em toda a nossa vida e em relação à integralidade da vida e de todo o mundo, o que importa é a partir de onde entendemos a nossa vida: a partir de nós mesmos, fazendo de nós mesmos o critério e finalidade de tudo que, para Paulo, é a lei do pecado c da morte. Ou a partir da dádiva da vida como presente incondicional, válido para todos indistintamente, que, para Paulo, é a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus''.
Qual a relação disso tudo com a Quaresma? Essa relação reside no fato de que, enquanto vivemos entre o evento da cruz e a parúsia, vivemos nesta dialética: já e ainda não. Já temos totalmente a salvação a partir do Batismo. Mas ainda vivemos em um mundo sob o domínio da morte. Quaresma é, portanto, conscientizar-se desta dupla realidade: já justificados no Batismo/na fé/no evento da cruz, mas ainda não plenamente perfeitos/ainda vivemos na carne e expostos às tentações da carne.
4. Depois de ouvir — falar: a pregação sobre o texto
Estamos na época da Quaresma. É tempo de preparação, de reflexão, de concentração naquele evento que mudou toda a história — o evento da cruz. Como comunidade cristã nós vivemos já agora desse evento, pois fomos batizados no nome de Jesus Cristo — já não há mais nenhuma condenação para os que estão em Cristo Jesus. Ou, como diz o v. 9, retomando esta tese: Vós não estais na carne, mas no Espírito. Mesmo assim, nós não vivenciamos esta realidade em sua plenitude — ainda permanecemos na carne. Por isso a época da Quaresma é momento propício para refletir sobre essa dialética que marca a vida cristã: já — ainda não. O texto, sem dúvida alguma, destaca a primeira parte — o já: já não há mais condenação para os que estão em Cristo Jesus — v. 1; vós não estais na carne, mas no Espírito— v. 9. Este deve ser o destaque fundamental da pregação: anunciar com toda a ênfase esta nova realidade criada pela ação exclusiva de Deus, em Jesus Cristo (v. 3!). Importa igualmente fundamentá-la assim como Paulo o faz neste texto, destacando a contraposição entre a antiga realidade: viver sob a lei do pecado e da morte (v. 2); o domínio sob a carne que é contrária a Deus (v. 7) e que leva para a morte (v. 6) — e a nova realidade: andar segundo o Espírito (v. 4) ou viver sob o Espírito que significa vida e paz (v. 6). Ou seja, cabe destacar que, na fé, nós já vivemos totalmente no céu, integralmente determinados pela realidade divina.
Num segundo momento, cabe apontar para o ainda não — o céu ainda não é realidade plena (v. 11). Ainda vivemos na carne. E aí pode-se estabelecer facilmente a referência à Quaresma: viver o ainda não é seguir Jesus para a cruz, é estar disposto ao sofrimento (referência ao texto de Mateus). Viver segundo o Espírito, mas constantemente sob a tentação de deixar-se determinar segundo a carne, é conscientizar-se da necessidade de penitência constante (referência ao texto de Oséias).
Bibliografia
NYGREN, Anders. La Epistola a los Romanos. Buenos Aires : La Aurora, 1969.
STUHLMACHER, Peter. Der Brief an die Römer. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1989. (Das Neue Testament Deutsch, 6).
WILKENS, UIrich. Der Brief an die Römer. Benziger/Neukirchener, 1980. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament, IV/2).
WINTZER, Friedrich. Meditação sobre Rm 8.1-2(3-9)10-11. In: Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart : Calwer, 1984. vol. 6B, p. 21-28.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia