Prédica: 1 Coríntios 15.19-28
Leituras: Isaías 25.6-8 e João 20.1-9(10-18)
Autor: Roberto N. Baptista
Data Litúrgica: Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 23/04/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Páscoa
1. Introdução
Pisamos em terreno minado. Se você tem em sua casa os volumes de Proclamar Libertação (PL), logo descobrirá quanto o texto de l Co 15.19-28 já tem sido comentado. Particularmente, gosto muito de retomar os bons comentários que ocorrem aqui no PL. Acho isso até muito importante. No entanto, se aqui abordasse cada um dos textos produzidos pelos colegas, já teria ocupado todo o espaço reservado para esta reflexão. Assim, deixo a você a relação onde a nossa perícope já foi comentada1. Vale a pena dar uma olhada.
O culto da Páscoa também é outro terreno minado. A cada ano temos a tarefa, como cristãos e cristãs, de redescobrir e renovar a bela mensagem pascal. Que tarefa! Como fazê-la com criatividade? Sem dúvida, é esse o espírito que agora me toca diante desta tríade pascal. Tenho certeza que você também estará assim neste culto da Páscoa, último deste século/milênio.
Diante dessa responsabilidade, vou seguir alguns passos. Quero lhe dizer: antes de mais nada, justifica-se o conjunto de leituras para este domingo. Segundo, olharemos a nossa realidade: como a Páscoa aparece para nós hoje? Depois, precisaremos enxergar o contexto e os conteúdos desta nossa perícope. E, final¬mente, voltaremos à nossa realidade, agora perpassada pela luz do texto que a ilumina. Vamos juntos!
2. A tríade pascal
Estamos na Páscoa. Facilmente percebemos o motivo do uso de l Coríntios 15 num domingo como este. E ressurreição. Ocasionalmente, no PL XVÏÏI ele apareceu no Último Domingo do Ano Eclesiástico, quando lembramos nossos mortos. Tudo muito óbvio.
O profeta Isaías, na leitura do Antigo Testamento, também já nos lembrava: Javé acabará para sempre com a morte (v. 8). O Evangelho de João, mais forte, afirma a mensagem pascal, quando Madalena anuncia aos discípulos: Eu vi o Senhor (v. 18). O conjunto dos textos deste domingo forma uma unidade de conteúdo. Não há dúvidas.
3. Olhando a realidade
É importante olhar a realidade. Antes e depois de nos aproximarmos do texto de Coríntios. Olhando-a, neste momento, queremos que ela nos ajude na maneira de entrar no texto bíblico. É esse olhar que nos direcionará diante da polissemia do mesmo texto.
Walter Altmann, já em 1976, nos lembrava:
Na Páscoa haverá menos gente do que dois dias antes, na Sexta-Feira da Paixão; mas ainda serão mais do que nos domingos comuns (…) Mas, afinal, o que fazer desse culto de Páscoa, mais um numa sequência de todos os anos?
O que traz ao culto aquelas fisionomias desconhecidas e o que aumenta nesses dias a expectativa dos participantes costumeiros? (PL I-II, p. 17.)
Depois desses anos, queria ampliar a pergunta: qual o significado da Páscoa para esta nossa sociedade que se preocupa cada vez mais com o presente e tão pouco com um futuro escatológico de consumação do reino de Deus? Nossa gente luterana é diferente das pessoas que formam essa nossa sociedade imediatista?
Acho que o culto da Páscoa deve levar em consideração as aflições imediatas do nosso povo. Sem dúvida, a ressurreição tem forte presença na memória do povo. É a essência do evangelho: sem ressurreição já estaríamos todos mortos. No entanto, ela deve vir ao encontro das nossas aflições mais imediatas.
É assim que se apresenta a doutrina da reencarnação. Não é, principalmente, na aflição da perda de uma pessoa querida que esta crença vem e ocupa espaço nos corações sedentos das pessoas? Ela ocupa esse espaço porque responde ao momento presente, ou, pelo menos, para os próximos anos das pessoas que nela se fiam. E a ressurreição cristã? Está há dois mil anos do nosso tempo e só Deus sabe quantos anos à frente. Como trazê-la com impacto para os nossos dias? É claro que estou provocando. Aliás, provocando todos/as nós. Urge!
A Páscoa está maquiada de chocolate. Percebemos a necessidade de recontarmos a ressurreição de Cristo a cada ano. Até como forma de resistência ao conteúdo pobre em que o comércio se apóia. Porém, na cabeça de muita gente, Páscoa é ovo e chocolate.
Junto com esse pensamento, há um esvaziamento do conteúdo religioso pascal. Para tanta e tanta gente, hoje em dia, a Páscoa não tem sentido. Na mais absoluta literalidade da frase.
Por outro lado, há ainda uma forte espiritualidade em nosso povo. Na religiosidade popular temos um grande número de encenações neste período. Todavia, você logo percebe que a ênfase está no drama da crucificação. Como representar a ressurreição? Trata-se de uma encenação bastante difícil. Talvez, por isso, a crucificação chame mais a atenção. Ela está mais próxima da nossa realidade sofrida, coberta de injustiça e violência, acompanhada de compaixão.
Para nossa gente luterana, resta a tradição. Essa lembrança forte da infância, a lembrança de suas origens, parece empurrá-los ao templo neste domingo. Em meio às aflições da vida, resta a esperança. A gente vai à igreja para ouvir mensagens positivas, algum leigo ou leiga já dissera.
Nem tudo está perdido. Nossa gente luterana, nossa sociedade imediatista, nossas crianças encantadas com o mundo dos ovos, essa gente que não encontra conteúdos na espiritualidade pascal: para todas, resta a esperança. Resta-nos também comunicarmos uma esperança que encontre sentido e lugar nos corações aflitos de toda essa gente.
4. Texto: contexto e conteúdos
Não vou me deter muito na exegese. Nos outros comentários do PL podemos contemplar boas exegeses. Quero me concentrar em aspectos do contexto e de conteúdos que possam nos ajudar em direção a definições para a prédica da Páscoa.
Neste capítulo 15, Paulo responde aos coríntios questões referentes à ressurreição. Ela é fonte de toda a esperança cristã.
Iniciamos com algumas breves considerações históricas. Corinto era uma cidade cosmopolita. Ali viviam pessoas oriundas de várias partes do Império. Além disso, sabemos que dois terços da sua população era composta de escravos. Ela era o exato reflexo contraditório do Império Romano. Aliás, reflexo de todo império: opulência e opressão. De um lado, as minorias (nem sempre as minorias são oprimidas): magistrados, funcionários do Império, governantes, que lutavam por manter o status quo. Oprimiam e exploravam o trabalho alheio. Do outro lado, a grande massa de marginalizados e explorados pelo Império. A Igreja em Corinto vai refletir essa tensão.
Tensão de conteúdos teológicos, com fortes consequências na esfera sócio econômica. O conceito sobre a ressurreição é só mais um exemplo. Parece haver uma corrente — se é que podemos assim dizer — afirmando que não há ressurreição de mortos (v. 21). À primeira vista, poder-se-ia imaginar uma descrença, uma desafirmação em relação à possibilidade de haver ressurreição Porém sabemos que havia, de fato, uma dificuldade em relação à dimensão histórica da ressurreição. Primeiro, porque afirmavam que a ressurreição já ocorrera. Esta, ao que parece, seria adquirida pelos ainda vivos por ocasião do recebimento do Espírito Santo (cf. 2 Tm 2.11). Além disso, essa corrente diferenciava o Jesus morto na cruz do Cristo ressurreto. Este último Cristo, inclusive, os teria libertado para uma vida entusiasta até as últimas consequências: comamos e bebamos, pois amanhã morreremos (v. 32).
Paulo combate essa ideia. Ele inicia o cap. 15 com um belo querigma pascal (vv. 3-5). O apóstolo amplia este querigma com a citação de muitas testemunhas que confirmam a ressurreição do Jesus crucificado.
E, desta maneira, nosso trecho começa forte: Se a nossa esperança é somente para esta vida, somos as mais miseráveis dentre as pessoas (v. 19). A palavra miserável (heleeinós) — veja também Ap 3.17 — dá o tom. Reduzir todo o querigma pascal a uma interpretação entusiástica da vida, reduzindo a ressurreição a uma libertação dada pelo Cristo para somente se gozar a vida, fazia dos seus intérpretes seres miseráveis, pobres de espírito, desprezíveis.
Paulo segue adiante, explicando exatamente o significado da ressurreição de Cristo. Ele se preocupa aqui em enfocar justamente a dificuldade histórica dos coríntios. Por isso, relata quase uma cronologia da consumação dos tempos, ou da consumação do plano de Deus. Cristo é as primícias dos que dormem (v. 20). Ele usa aqui uma palavra de forte conteúdo teológico vétero-testamentário. Primícias são os primeiros feixes de trigo, os primeiros frutos da terra dados em sacrifício a Deus (Nm 15.18-21; Dt 18.4). Neste sentido, a ressurreição de Cristo é ponto de partida, início da nossa própria ressurreição.
A seguir, Paulo vai se concentrar na vitória final de Cristo. No v. 22, apresenta o paralelismo (como a Carta aos Romanos já explicara tão bem) entre Adão e Cristo, entre morte (pecado) e vida (ressurreição). Ele, de propósito, parece ter colocado o verbo no futuro para dizer que essa consumação da ressurreição ainda está por vir.
Temos, portanto, a sequência escatológica do Reino. Cristo é primícias da ressurreição. Depois, será a nossa vez. Apesar de o v. 23 enfatizar somente os de Cristo, sabemos pelos conteúdos de tantos outros textos que a ressurreição é para todos. Assim, vamos chegando ao fim do reinado de Cristo, com a destruição de todos os poderes antidivinos: principados, potestades e poder. No v. 25 percebemos que o seu reinado já começara desde a sua ressurreição. A consumação final (v. 26) é a destruição do último inimigo, a morte. O v. 27 aponta para o poder divino de Cristo. E tudo se completa, enfim, quando Deus será tudo em tudo (v. 28).
5. Reolhando a realidade
Levar em consideração as aflições do nosso povo, já dizia eu anteriormente. E assim que desejo voltar e olhar a realidade. O texto bíblico vai nos ajudar nesta tarefa.
A aflição básica hoje começa com a falia de esperança. Os mais jovens ficam perplexos frente ao futuro de suas vidas. Poderei estudar? Será que conseguirei um emprego que possa me sustentar? As aflições dos mais idosos, além de seu próprio sustento ameaçado pela mísera aposentadoria da grande maioria, talvez também seja a de ir deixando este mundo assim, mal acabado, sem esperanças para seus mais queridos, que ainda terão muito que lutar.
No que devemos colocar nossa esperança? Sem dúvida, as pessoas querem respostas imediatas. Além disso, deve ser uma resposta que possa ser realizada com muita facilidade. Deste modo, a reencarnação conforta. Mas será que deve ria mesmo confortar?
Peço desculpas àqueles que se colocam do lado desta ideia. Devo dizer que ela me parece muito opressiva em sua essência. Por isso, assim me posiciono. Veja bem. Ela ecoa com facilidade e é bem aceita entre os poderosos. Com essa propaganda podem-se controlar os oprimidos.
Vejamos, primeiro, o seu conteúdo expiatório. Todo sofrimento atual, que já é duro e difícil de se carregar, é ainda realçado mais fortemente através do complexo de culpa de vidas passadas. O sofrimento faz parte de um carma. É analgésico: fique quieto; aguente; faz parte; você merece; é bom. E por aí vai. Segundo: a reencarnação é esperança sem consistência. Confesso que sobre este aspecto há muitos mistérios. Os mistérios sobre a ressurreição são até maiores. Tudo — reencarnação, ressurreição, vida após a morte, céu, inferno, etc. — é muito discutível. E quanto à reencarnação, muita gente vai querer prová-la. Porém pode ser um tremendo engano. E é aí que queremos colocar toda a nossa esperança?
O texto bíblico deste domingo de Páscoa quer nos animar em nossas esperanças. Quer nos colocar no processo de sua semeadura. Jesus começa o seu reinado com a própria ressurreição. E nós estamos envolvidos, juntamente com ele e tantos outros cristãos no mundo, na construção do seu reinado. Vamos construindo em direção à consumação de Deus tudo em tudo.
Neste domingo de Páscoa, teremos que passar adiante uma visão mais abrangente do seu reino. Nem tão só aqui nesta terrinha (se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida… — v. 19), nem tão lá nos céus das ruas de ouro. Estamos construindo um reino, o reino de Deus. Não é um império, como o dos faraós. Mas tem sua magnificência e sua eternidade. Sabemos que não podemos resolver todos os problemas deste mundo com nossos anos de vida aqui na Terra. É um processo que exige continuidade. Uns começaram. Nós continuamos. Outros virão. Tudo em direção à consumação das coisas.
Queremos esperanças imediatas, também. A esperança deste texto bíblico quer aqui nos ajudar. Sabemos que Jesus está lutando ao nosso lado contra os poderes antidivinos. Fome, opressão, miséria, doenças, violência, injustiças, preconceitos vêm antes de tudo. São as primeiras coisas com as quais lutamos. Até vencer o último inimigo: a morte. Viva a ressurreição!
Talvez essa seja uma chave da grandiosidade desta missão que Deus nos confiou. Na Páscoa, lembramos que sua ressurreição é primícias que desencadeia uma sequência em direção à nossa ressurreição. O último inimigo c a morte. Não podemos começar a vencer a morte se nem sequer estamos lutando para vencermos os poderes antidivinos (vv. 25-26). Se não entendermos esta vida, como poderemos entender a morte?
6. Bibliografia
ALTMANN, Walter. Meditação sobre l Co 15,19-28. In: Proclamar Libertação. 2. ed. São Leopoldo : Sinodal, 1983. vols. I-II, p. 16-25.
BRUNKEN, Werner. Meditação sobre l Co 15,19-28. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1989. vol. XV, p. 207-212.
DREHER, Martin N. Meditação sobre l Co 15,20-28. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1992. vol. XVIII, p. 280-285.
DROSTE, Rolf. Meditação sobre l Co 15,19-28. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo
: Sinodal, 1983. vol. IX, p. 207-215.
HOEFELMANN, Verner. Corinto: contradições c conflitos de uma comunidade urbana. In: Estudos Bíblicos, Petrópolis : Vozes / São Bernardo do Campo : Metodista / São Leopoldo : Sinodal, n. 25, p. 21-33, 1990.
LAZIER, Josué Adam. A espiritualidade de Paulo em I Coríntios. In: Estudos Bíblicos. Petrópolis : Vozes / São Bernardo do Campo : Metodista / São Leopoldo : Sinodal, n. 30, p. 59-66, 1991.
LÓPEZ, Rolando. A cruz nas cartas l e 2 aos Coríntios : cartas a partir da prática das comunidades : uma leitura de l e 2 Coríntios. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA), Petrópolis : Vozes / São Leopoldo : Sinodal, n. 20, p. 80-91, 1995.
Nota
l No PL I, já em 1976, Walter Altmann, no Domingo da Páscoa. No PL IX, em 1983, Rolf Droste, no Domingo da Páscoa. No PL XV, em 1989, Werner Brunken, também no Domingo da Páscoa. E, finalmente, no PL XVIII, cm 1992, Martin Dreher, no Último Domingo do Ano Eclesiástico.
Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia