Prédica: Filipenses 2.5-11
Leituras: Zacarias 9.9-10 e Marcos 15.1-39
Autor: Valdemar LĂĽckemeyer
Data LitĂşrgica: Domingo da PaixĂŁo (Ramos)
Data da Pregação: 16/04/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Quaresma
1. O texto
O texto de Fp 2.5-11 já foi estudado em Proclamar Libertação (PL) por trĂŞs vezes: no vol. V (p. 57-64) por Martin Volkmann, no vol. XI (p. 216-220) por Norman Bakken e no vol. XVII (p. 97-101) por Werner Brunken. Para quem tem acesso a estes subsĂdios (e tempo para lĂŞ-los) recomendo a leitura a fim de obter maiores informações a respeito do texto. AlĂ©m desses trĂŞs textos, encontramos ainda bons estudos introdutĂłrios Ă Carta do apĂłstolo Paulo aos Filipenses, e Ă comunidade de Filipos, no vol. 20 de PL (p. 86s.) por Marli Lutz, no vol. 21 (p. 244s.) por Louraini Christmann e tambĂ©m no vol. VII (p. 172-183) por Augusto E. Kunert, entre outros. Na elaboração do presente estudo recorri aos auxĂlios já elaborados e mencionados.
2. A Carta aos Filipenses
Na cidade de Filipos o apĂłstolo Paulo fundou a primeira comunidade cristĂŁ em solo europeu. A cidade, um centro comercial, ligava a Europa ao Oriente, e, conseqĂĽentemente, a vida polĂtica, cultural c religiosa era diversificada. A BĂblia na linguagem de hoje oferece uma introdução simples e concisa:
Filipos era uma cidade que ficava na provĂncia da MacedĂ´nia, regiĂŁo que hoje ia/ parte da GrĂ©cia. A igreja de Filipos foi a primeira fundada na Europa por Paulo, na sua segunda viagem missionária (Aios 16.12-40). Anos depois, quando está na prisĂŁo (1.7), Paulo escreve esta Carla aos Filipenses. Ele havia recebido notĂcias de que havia sĂ©rias dificuldades entre os cristĂŁos de Filipos e estava muito preocupado com as falsas doutrinas que alguns ensinavam lá. E estava preocupado tambĂ©m por saber que alguns lĂderes da igreja tinham ficado contra ele. Ao mesmo tempo, ele havia recebido ajuda dos cristĂŁos de Filipos e escreve a carta nĂŁo somente para tratar dos sĂ©rios problemas da igreja como tambĂ©m para agradecer aos filipenses tudo o que tinham feito em seu favor.
A carta mostra o grande amor que Paulo tinha pelos filipenses e fala da confiança, alegria, uniĂŁo e firmeza que devem ser marcas dos seguidores de Jesus Cristo. Paulo diz que, acima de tudo, todos devem imitar o exemplo do prĂłprio Cristo, que seguiu o caminho da humildade e da obediĂŞncia a Deus, caminho este que o levou Ă morte na cruz e Ă altĂssima posição de Senhor de todos (2.5-11).
Nessa comunidade Paulo se sente muito bem. Lembra dela com carinho. Escreve a carta (provavelmente eram trĂŞs cartas, unidas mais tarde em uma sĂł) procurando animar, corrigir e agradecer.
Através desta carta, que na verdade é uma junção de três cartas, tomamos conhecimento do que significa para Paulo e outros/as apóstolos/as o seguimento de Jesus Cristo morto e ressurreto. Paulo é preso, torturado, sofre humilhações, é ridicularizado. Em At 16 há um relato sobre uma situação vivida em Filipos que é consequência de viver o evangelho de forma concreta e encarnada na realidade, no mundo. Em Fp 1.20 e 2.17 Paulo dá a entender que pode contar com uma eventual sentença de morte. (Marli Lutz, p. 86.)
Assim como Paulo, perseguido e preso, também a comunidade se encontra no sofrimento, pois falsos missionários anunciam um falso evangelho que leva muitos a abandonarem a comunidade.
O assunto básico da carta Ă© estabelecer critĂ©rios para distinguir entre o verdadeiro e o falso evangelho, entre o verdadeiro e o falso missionário. O Evangelho de Jesus Cristo está centrado na cruz. (Comblin, p. 16). Isso significa: a) luta contra quaisquer outros meios de salvação; b) renĂşncia e aniquilamento; c) esvaziamento e disposição para sacrificar a vida; d) servir em vez, de ser servido. No hino cristolĂłgico (2.5-11) Paulo encontrou um bom resumo das caracterĂsticas do evangelho da cruz. (GĂĽnter Wehrmann, p. 14.)
3. Comentários exegéticos
O texto em estudo contĂ©m o hino cristolĂłgico (vv. 6-11), material já existente que o apĂłstolo Paulo usou, ampliando-o com observações cristolĂłgicas de sua parte para destacar a importância da centralidade da pessoa de Jesus Cristo para a vida de fĂ© da comunidade e do indivĂduo cristĂŁo.
V. 5: Ele Ă© a ponte que liga o texto anterior (vv. 1-4) ao que segue, isto Ă©, ao hino cristolĂłgico. Embora lambem contenha um imperativo, ele liga toda a parĂŞnese anterior ao hino cristolĂłgico. A parĂŞnese, o imperativo, tem sua fundamentação nas palavras que apontam para o Cristo. Jesus Cristo Ă© a fundamentação para a nova vida do cristĂŁo, que, agora, está em Cristo. NĂŁo se trata, pois, de imitar, de seguir o exemplo de Jesus Cristo (como dá a entender inclusive a introdução Ă Carta aos Filipenses na BĂblia na linguagem de hoje, citada acima), mas, sim, de estar nele, de estar em Cristo. A tradução melhor para o v. 5 Ă©: Tende em vĂłs o mesmo sentimento como tambĂ©m em Cristo, ou, traduzindo livremente: Orientai-vos segundo aquilo que vale na esfera do senhorio de Jesus Cristo.
V. 6: Inicia o hino cristológico formado por duas estrofes: vv. 6-8, onde Jesus é o sujeito, e vv. 9-11, onde Deus passa a ser o sujeito de toda a ação. O hino usa linguagem mitológica; fala de Jesus Cristo como o preexistente, igual a Deus. Esta é a sua posição desde sempre; ele não a precisa conquistar.
V. 7: O Cristo preexistente abdicou da sua posição de igual a Deus e se tornou semelhante às pessoas, isto por livre e espontânea vontade sua. Cristo tomou a forma de pessoa para tornar-se solidário com o ser humano escravizado pelo pecado. Forma, aqui, não significa apenas a aparência exterior, mas é a forma de ser, a posição.
V. 8: Aqui está o novo, o que faz a diferença: a obediência. Jesus não foi apenas uma pessoa entre outras; a sua humildade o levou ainda mais para baixo. Ele optou, livremente, por andar com pecadores e marginalizados. Esta obediência livre o levou à morte de cruz.
V. 9: Agora Deus age; agora ele é o sujeito que eleva aquele que se humilhou até o ponto mais baixo para colocá-lo acima de tudo, acima de todos. Aquele que tinha tomado a forma de servo, de empregado fiel e submisso, é elevado e colocado acima de todos os senhores, de todas as autoridades, acima de todos os nomes (Mt 28.18).
Vv. 10-11: Todo joelho e toda lĂngua querem expressar o poder universal de Cristo, que foi colocado acima de todos os senhores pelo prĂłprio Deus. E Ă© citado expressamente o nome de Jesus. Jesus, o histĂłrico, o homem de NazarĂ©, que morreu na cruz, Ă© o exaltado, o elevado, o Senhor.
4. Meditando sobre o texto e as leituras do dia
No Domingo de Ramos a comunidade medita sobre o caminho de Jesus. Caminho que vai claramente em direção à cruz. O rei, justo e salvador, não vem em carros fortes, carros de guerra ou outros carros reais/oficiais, mas vem num animal de carga, de trabalho (Zc 9.9). O rei, que para gozação recebeu uma túnica de púrpura e uma coroa de espinhos (Mc 15.17), é levado à cruz, e, assim que morre, se diz dele:' 'Verdadeiramente este homem era Filho de Deus'' (Mc 15.39).
Vem chegando um novo rei. Ele vem para instalar seu reino. Convoca cidadĂŁos e cidadĂŁs para o seu reino. O que vale no seu reino Ă© aquela postura que ele adotou: a humildade assumida livremente por obediĂŞncia a Deus. O que vale no seu reino Ă© o estar aĂ para o outro, Ă© o assumir a postura de servo, de empregado.
A comunidade é confrontada com a palavra imperativa: Orientem-se, tanto na vida comunitária quanto na vida social, segundo aquilo que vale na esfera do senhorio de Jesus Cristo, ou seja, orientem-se pelo novo padrão de vida inaugurado pela obediência total de Jesus a Deus. Ele, embora Filho de Deus, deixou sua posição de superior para mostrar onde e como Deus se revela: naquele que se identifica com os sem-poder, com os fracos. E justamente por essa atitude coerente e obediente até o fim é que ele se tornou Senhor = Deus o tornou Senhor.
O padrão de vida que a comunidade deve buscar constantemente é esse padrão bem estranho ao mundo: Jesus, o Cristo, rei humilde e por isso exaltado por Deus. Ele trouxe uma nova maneira de viver, de conviver entre as pessoas, também entre as pessoas e Deus.
Jesus e seus discĂpulos nos dĂŁo um ensinamento inteiramente distinto sobre a postura da pessoa. A humildade nĂŁo Ă© uma atitude nociva Ă personalidade nem depreciativa do valor humano, como dizem hoje as ciĂŞncias sociais. É, isto sim, uma renĂşncia voluntária que tem sua origem na redenção de Cristo. O Deus exaltado se fez humilde ser humano. Mesmo continuando igual a Deus, seu Filho, em sua vida terrena, se esvaziou e assumiu a forma de servo. Tornou-se obediente atĂ© a morte, e morte de cruz.
Este fato Ă© decisivo para o cristĂŁo. Desta sua completa aceitação decorre uma nova atitude. A humildade cristĂŁ Ă© obra de Deus na pessoa. É poder que converte o pensamento soberbo em mansidĂŁo e amor. O que Ă© loucura para o mundo sem Deus Ă© poder diante do Senhor. Ser cristĂŁo implica converter a soberba do mundo em disposição de servir a Deus e ao prĂłximo, em verdadeiro amor. Os impossĂveis do ser humano sĂŁo possĂveis no amor de Deus em Cristo. (SĂ©rgio N. Schmidt, in: Um olhar para o Vale : 100 mensagens de fĂ©, esperança e amor, SĂŁo Leopoldo : Sinodal, p. 62.)
5. Um hino e uma lenda
O hino:
O exemplo de Cristo
l. O Evangelho nos ensina com clareza
Que o Verbo carne humana se tornou
Este Ă© o Cristo que optou pela pobreza
Entre os humildes deste mundo habitou.
2. Nosso Senhor como um coitado se humilhou
E assumiu forma de servo sofredor
O ser igual a Deus ele nĂŁo usurpou
Esvaziou-se pra mostrar o seu amor.
3. Sua caminhada o levou até a cruz.
Sofreu tortura, desrespeito c muita dor
Sem vacilar sua opção ele conduz
Até a morte pra tornar-se o Senhor,
4. Quem segue a Cristo tem o mesmo sentimento
Esvaziando-se em favor do seu irmĂŁo
NĂŁo Ă© orgulhoso e nĂŁo tem constrangimento
De ser pequeno e ter humilde coração.
5. Compartilhar Ă© a vivĂŞncia do cristĂŁo
O dar de si Ă© sua forma de amar
Por isso prega a justa distribuição
Dos bens de todos para o mundo transformar.
(Rodolfo Gaede.)
Uma lenda:
O homem mais rico do povoado estava orgulhoso de si e dos seus bens. Numa manhĂŁ de domingo realizou seu passeio a cavalo pelo mato. De repente ouviu uma voz. Parou o cavalo e escutou. Ouviu alguĂ©m orando. Logo ele viu, na sombra de um barranco, um velhinho do povoado que por diversas vezes já lhe pedira esmolas. Ele estava agradecendo a Deus por um pedaço de pĂŁo e por uma caneca de água. Isto era algo incompreensĂvel para o homem rico. Ele ficou inquieto. Nunca tinha visto a sua quantidade de bens como um motivo para agradecer a Deus. Saiu dali apressado, mas a figura do velhinho nĂŁo lhe saiu da mente. De repente o cĂ©u escureceu, nuvens escuras cobriram o cĂ©u e uma sensação estranha tomou conta do mato. Um sentimento estranho se apoderou do homem; ele nĂŁo conseguiu entender isto. Era como se estivesse pressentindo um acidente. AĂ ele teve a sensação de ter ouvido uma voz que lhe disse claramente: Nesta noite morrerá o homem mais rico do povoado. Ele estremeceu. Inquieto e nĂŁo conse¬guindo suportar por mais tempo a agitação interna, foi rapidamente para casa. Aqui chegou com grande agitação e logo mandou chamar o medico. Passou uma noite terrĂvel, cheia de medo. Quando o primeiro raio solar entrou no seu quarto, ele ficou corado novamente, afinal estava vivo. No povoado ouviu dizer que naquela noite realmente a morte tinha vindo. Aquele velhinho, que ele encontrou antes no mato, morrera. Ainda pensativo, foi para casa. A sua esposa o recebeu com um sorriso. Espero, disse ela, que tu vás reconhecer que aquela voz misteriosa que ouviste nĂŁo passou de um engano. O erro já se comprovou: a noite passou. Tu estás vivo e estás bem. Está certo, respondeu ele, mas aquela voz tinha razĂŁo mesmo assim. A noite faleceu o homem mais rico do povoado. Quem poderia ser isto?, perguntou ela, quem aqui Ă© mais rico que nĂłs? E ele respondeu: O homem que pode dizer a Deus: 'Se eu tenho somente a ti, nĂŁo preciso perguntar nada mais sobre o cĂ©u e a terra. O homem mais pobre do povoado podia dizer isto. No povoado vĂŁo te falar que ele faleceu hoje Ă noite. Ele certamente nĂŁo deixou o suficiente para que com isso pudesse ser pago seu enterro. E, mesmo assim, era o homem mais rico do povoado. (P. Langholf, ap. Wolfgang Greive, p. 247s.)
6. Rumo à prédica
A partir do colocado até aqui, vejo duas possibilidades de elaboração da prédica.
Uma:
Partir de uma pergunta provocativa: os nossos joelhos se dobram diante de quem? Quem são os senhores que querem (e até conseguem!) nos dominar, guiar? Diariamente estamos sendo expostos a autoridades que querem determinar nossa vida, tanto no presente como no futuro.
Num segundo momento trabalhar a mensagem do texto: os joelhos dos discĂpulos de Jesus Cristo se dobram diante dele: a) na humildade; b) na obediĂŞncia; c) no serviço. Este Ă© o caminho da cruz e da ressurreição, caminho de contraste ao mundo.
Outra:
Desdobrar o hino cristológico (uma condensação da história de Jesus Cristo) à luz da semana santa:
Jesus Ă© o Cristo, o Rei/Senhor que inverte totalmente os valores do mundo. Os seus seguidores vivem o mesmo ' 'sentimento'', pois vivem ' 'nele'', a partir dele.
Quais sĂŁo esses valores? Essencialmente o servir. (Claro: este nĂŁo Ă© o caminho da glĂłria, mas sim o da cruz.)
Bibliografia
BRUNKEN, Werner. Meditação sobre Fp 2.5-11. In: KILPP, Nelson, WESTHELLE, VĂtor (Coords.). Proclamar Libertação. SĂŁo Leopoldo : Sinodal, 1991. vol. XVII, p. 97-101.
GREIVE, Wolfgang. Meditação sobre Fp 2.5-11. In: Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart : Calwer, 1979. vol. 2A, p. 239-248.
VOLKMANN, Martin. Meditação sobre Fp 2.5-11. In: KIRST, Nelson (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1979. vol. V, p. 57-64.
Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia