Prédica: Isaías 53.10-12
Leituras: Hebreus 4.9-16 e Marcos 10.35-45
Autor: Teobaldo Witter
Data Litúrgica: Antepenúltimo Domingo do ano Eclesiástico
Data da Pregação: 12/11/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
1. Introdução
O texto indicado para a pregação, isto é, Isaías 53.10-12, ainda não foi tratado nos auxílios homiléticos de Proclamar Libertação. Estamos, portanto, diante de uma novidade. Certamente trataremos de questões diferentes das tratadas até aqui.
O Ano da Igreja está quase no fim. Já estamos no Antepenúltimo Domingo do Ano Eclesiástico. Logo será Domingo da Eternidade. É tempo de pensar no fim. Fim de um tempo, fim de ano, fim da vida e, talvez, fim da morte, fim do egoísmo, fim da injustiça, fim do rancor, fim dos pecados. Afinal, sonhamos com um novo tempo, um novo milénio sem exclusões e repleto de dignidade humana e paz. Desejo que o estudo e o culto comunitário possam ajudar nesta construção de relações de fé, de esperança e de justiça.
2. Isaías 53.10-12
Isaías 53.10-12 está incluído nos textos de Isaías que são chamados de os quatro cânticos do Servo Sofredor''. Os textos são: Is 42. l -4; 49, l -6; 50.4-9( 10-11); 52.13-53.12. Sugiro dar uma lida nestes textos todos. Isso possibilita perceber e compreender a radicalidade do sofrimento mencionado no texto indicado para a pregação.
O texto da pregação é uma parte do conteúdo que é denominado de o sofrimento vicário do Servo. A comunidade do 2° Isaías viveu num momento histórico determinado. Vamos entender um pouco dessa situação do povo que criou e preservou uma mensagem tão significativa para nós. A partir do contexto, temos melhores condições de perceber o sentido do sofrimento.
Os cânticos do Servo Sofredor foram vividos e escritos durante o exílio babilônico (587 a 538 a.C.), ou logo a seguir, sob a dominação da Pérsia. A comunidade, no entanto, estava na Babilônia. É importante fazer uma reflexão sobre a época.
3. Acontecimentos da época
No fim do século 7 a.C., a Babilônia assumiu a dominação política, militar, ideológica e econômica internacional, na qual Judá estava incluído. A partir do ano de 605 a.C., a Babilônia avançou sobre Judá. Entrou na planície da Palestina, destruiu Ascalom e deportou as lideranças de sua população para a Babilônia.
Em 597 a.C., Jerusalém foi tomada. Jeoaquim (rei de Judá) foi deposto e deportado para a Babilônia, juntamente com a sua família, a corte, seus funcio¬nários, a nobreza, trabalhadores especializados na construção de fortificações e os homens capacitados para o serviço militar.
Judá foi levado ao estado de vassalagem pela Babilônia. O rei Zedequias tentou romper este estado, com a promessa de apoio do Egito. Isso não deu certo. Pelo contrário, motivou a destruição de Jerusalém, em 587 a.C. Os focos de resistência que escaparam, em 597, foram deportados desta vez. Na terra perma¬neceram somente os agricultores mais empobrecidos (2 Rs 25.12; Jr 39.10).
Os babilônios organizaram Judá de acordo com o seu sistema provincial de império. Por um breve período Judá permaneceu como província independente, tendo Gedalias como governador (2 Rs 25.22). Houve resistência em Judá (2 Rs 25.25). Possivelmente, essa resistência levou a uma terceira deportação, em 582 a.C. A partir daí, Judá passou a fazer parte da província de Samaria, provavelmente. Os conflitos internos e com os povos vizinhos enfraqueceram Judá. Isso, inclusive, dificultou a reconstrução, no período da dominação persa e grega.
A catástrofe de 587 a.C. provocou uma profunda crise de fé. Jerusalém era considerada a cidade santa, onde havia a morada de Deus (templo) e a monarquia, que havia recebido, da boca do profeta Natã (2 Sm 7.13-17), a promessa de perpetuação do reinado davídico. Afinal, os hebreus são, na compreensão do Antigo Testamento, o povo da aliança.
Os babilônios eram considerados povos idólatras. No entanto, seu exército vem e ignora a lei, despreza a aliança, arrasa a terra santa, destrói a cidade santa, o templo sagrado e a monarquia abençoada. Leva o povo da aliança para o exílio.
E os judeus entram em crise de identidade e de fé. Onde está o poder de nosso Deus? Nós, o povo da aliança, já perdemos a possibilidade de resistir. Será que Deus também perdeu o controle da história? São perguntas que evidenciam a crise de um povo, no caso, o hebreu.
A Babilônia domina de forma violenta e cruel. Arrasa cidades e povos com sua cultura política, econômica, religiosa, social. E acaba com qualquer iniciativa própria de organização.
No entanto, na Babilônia prosperam os conflitos internos, especialmente entre os adeptos das duas principais divindades: Sol e Lua. Há acusações entre ambas as partes. O exército se divide. Os problemas vão se aprofundando.
Enquanto os babilônios são cruéis com os povos dominados e se combatem entre si, os persas vêm surgindo no horizonte da dominação. Seu rei, Ciro (559 a 530 a.C.), conquista povos com seu jeito diferente de dominar. Já em 550 a.C, ele se torna rei de medos e persas. Em 546, toma Lídia, na Ásia Menor. Em 538 a.C., os persas estendem a dominação à Babilônia. Ciro é recebido como o Enviado de Deus pela população de Judá exilada na Babilônia.
Já no primeiro ano de sua dominação sobre o Império Babilônico, Ciro possibilitou, através de um decreto (Ed l.lss.), o regresso dos exilados para Jerusalém e a reconstrução da cidade e do templo.
A política de dominação persa foi diferente da babilônica. A Babilônia tentava destruir a identidade dos povos dominados. Mas a Pérsia ajudava na reconstrução da mesma. Possibilitava certa autonomia, como p. ex.: 1. regresso dos exilados às regiões de origem; 2. prática do culto aos seus próprios deuses; 3. oficialização de suas próprias línguas (na região siro-palestinense era o aramaico); 4. incentivo a expressões religiosas próprias.
Os persas implementaram um sistema de arrecadação de impostos desvinculado dos templos, através de satrapias, com um rigoroso controle imperial. Construíram um complexo sistema rodoviário que facilitava as comunicações de uma a outra extremidade do império. A Pérsia teve um longo período de dominação, por mais de 200 anos (538 a 332 a.C.).
4. O Servo Sofredor
Os textos conhecidos como os cânticos do Servo Sofredor estão inseridos entre os capítulos 40 e 55 do livro de Isaías. Estes capítulos são conhecidos como II Isaías ou Dêutero-Isaías. São de autoria de um profeta anônimo que viveu entre os exilados, na Babilônia, em torno do ano de 550 a.C.
Nesta época, a Babilônia está vivendo no declínio que começa já em 561, com a saída de Nabucodonosor (604-561 a.C.) e a entrada de Nabonide (561-538 a.C.). Ciro, da Pérsia, já vem surgindo como promessa de retorno. Muitos exilados sonhavam com um segundo êxodo hebreu.
Isaías 53.10-12 também tem sua origem em meio às comunidades agrícolas no exílio. E a segunda geração dos exilados. São os mais empobrecidos da comunidade que são os portadores deste texto, que é parte dos quatro cânticos do Servo de Deus, conforme informação acima. Eles não acreditam num novo êxodo nem nos horizontes de novos tempos que aparecem com Ciro.
O profeta fala livremente de Deus, destacando o seu poder, em meio às derrotas, longe de Jerusalém e de Judá, no exílio. Deus tem poder de criar, recriar e libertar, mesmo em meio à terra do faraó. Esta é a grande novidade da teologia vivida no exílio.
O ambiente do autor é o dos cantores do templo. Sua linguagem é a dos hinos (Is 42.10): Cantai ao Senhor um cântico novo (veja Sl 96; 98 e outros). Porém a tradição hínica é apenas seu pano de fundo, porque o livro é profético.
5. O texto propriamente dito
V. 10: O Servo está enfermo, moído. Isso acontece porque Deus permite (?).
O Servo oferece a sua vida como sacrifício pelo perdão e pelo fim da injustiça. Suas dores são vicárias. Mas suas dores também sensibilizam. E são missionárias.
O Servo vive não da lei, mas da promessa: verá a sua descendência. Na dimensão da ação do Servo, a vontade de Deus prosperará. O Servo se torna senhor não pelo poder dos exércitos, mas pelo poder do serviço de amor e do martírio.
V. 11: O sofrimento do Servo tem sentido. Ele está satisfeito com o fruto de sua missão.
Sendo justo e sofrendo as dores que outros merecem, salvará muitos. Nas suas chagas está a cura das feridas de outros. A justiça dele cura a injustiça de muitos.
V. 12: O Servo ganha a herança que os poderosos queriam para si, somente.
O Servo foi considerado culpado pelo exílio, pelo sofrimento, pela crise de fé, pela perda da identidade do povo. Apanhou, apesar de sua inocência. Foi torturado sem ter culpa no cartório. Não se vingou. Não teve vida rancorosa. Pelo contrário, orou e pediu o perdão da iniquidade de seus agressores.
6. Muitos, nações e reis
No texto aparece três vezes a palavra muitos e, duas vezes, a palavra transgressores. Estas palavras estão na mesma direção de muitos, nações e reis que são mencionados várias vezes no quarto cântico do Servo de Deus (Is 52.13-53.12). Os muitos, nações e reis são o fórum, desde o início, diante do qual transcorrem sofrimentos, perseguições, violência, tortura e homicídio do Servo.
A missão do Servo de Deus, conforme seus cânticos, é mediada pelo sofrimento. As dores do Servo são missionárias. Elas convertem ouvidos, mentalidades, mãos, pés, bocas, corações e sensibilidades. As derrotas como derrotas são vitórias para muitos.
O Servo é justo. Apesar de ter sido desautorizado e derrotado, ele é vitorioso. Foi morto. Mas está vivo. E mais, sobre Ele caíram as maldades de outros. É o sofrimento vicário. No Servo convergem martírio e vicariedade.
Já no primeiro cântico se diz que o Servo não se comporta como os poderosos. E o defensor da cana quebrada e da torcida (pavio) que apenas fumega. Desta não-agressão aos fracos e necessitados de justiça consiste o direito. Pelo martírio vicário do Servo e suas dores missionárias, o direito e a justiça são promulgados para muitos, transgressores, poderosos, nações e reis. Estes vão ficar em silêncio (de queixo caído), verão o que não queriam ver e entenderão, inclusive, aquilo que não ouviram, conforme Is 52.15.
Portanto, o Servo de Deus é escravo. E solidário com a cana quebrada e com gente cansada. Ele não faz vítimas. Mas é vítima de sistemas humanos injustos, corrompidos, superficiais, violentos e egocêntricos. O Servo sucumbe em meio às dores, perseguições e transgressões. É vencido. Este vencido é o Servo de Deus. Em suas deformações, levou sobre si o pecado de muitos, nações e reis. E Deus lhe dá a vitória. Dá -lhe a vida. Dá-lhe a herança. Dá-lhe a sua posteridade, que é o povo de Deus libertado.
O Servo, a raiz na terra seca, vem subindo como o novo broto (Is 53.2a). Assim, vai reconstruindo ' 'novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça'' (2 Pe 3.13). Nisso a comunidade do exílio crê. Neste Servo ela confia.
7. Hebreus 4.9-16
Este texto bíblico de Hebreus é indicado como leitura. E uma passagem muito profunda. Não me cabe aqui fazer uma exegese, mas estabelecer uma ligação com o texto de Isaías.
Entrar no repouso de Deus (vv. 9-11). Este repouso está na mesma dimensão do descanso de Deus no Sábado, após a conclusão das obras da criação (Gn 2.20). É o Dia do Senhor. É o Domingo, no sentido cristão. Ele nos leva na mesma linha da ressurreição. É uma realidade presente na ação do Servo de Deus. Afinal, o vencido confia no poder recriador do Senhor. A realidade é esta: o vencido é vencedor pela graça de Deus. Isso é possível no sentido da ressurreição.
A palavra do Senhor ocupa todos os espaços (vv. 12-13). Envolve tudo e todos, Ela vem e arrasa com as trevas. Não é possível esconder algo. Tudo fica transparente. Diante do Senhor todos devemos prestar contas daquilo que fize¬mos, cremos e não fizemos. E o tribunal do Servo de Deus diante do qual aparecem muitos, nações e reis, enfim todos, conforme Isaías.
Nossa única saída é o grande sacerdote, a saber, Jesus, o Filho de Deus. Ele se compadece de nossas fraquezas. Nele confiemos! Acheguemo-nos diante de sua graça! Dele recebemos misericórdia. Esta é nossa chance: a misericórdia de Jesus que carregou as nossas chagas nas suas próprias feridas. É o sofrimento vicário do Servo de Deus que possibilita nossa participação em sua vitória. conforme Isaías.
8. Marcos 10.35-45
Tiago e João querem ter cargos de chefia no reino de Jesus Cristo (vv. 35ss.). Na sua compreensão humana de poder, estar próximo do chefe é sinal de ser servido. Eles, também, querem ser servidos.
Jesus pergunta pelo sofrimento: Vocês podem beber o cálice que eu bebo e receber o batismo que eu recebo? (vv. 37ss.). Dores humanas e serviço ao povo são duas realidades concretas no texto de Isaías. Neste sentido, os textos caminham na mesma direção.
A outra questão é a diferença da compreensão de poder entre os governadores dos povos e o povo cristão, isto é, entre vós. A diferença é como a diferença entre trevas e luz (vv. 42ss.). Os governadores dos povos são servidos pelo povo, enquanto que entre o povo cristão o que dignifica é o serviço que é executado solidária e mutuamente. O rei cristão serve o povo.
O exemplo está no próprio Filho do homem, que não veio da parte de Deus para ser servido. Mas ele veio para servir e dar a sua vida pelo resgate de muitos. Neste sentido, o texto de Isaías e o de Marcos se complementam. O Servo Sofredor, o Servo de Deus, curou muitos, nações e reis, enfim todos pelas suas feridas. O povo é libertado pela obra do Servo.
9. Pistas para a mensagem
Há vários enfoques possíveis, a partir dos textos bíblicos indicados para hoje. Tenho como sugestão o seguinte programa de culto:
1. Fazer uma acolhida bem calorosa e carinhosa para todas as pessoas que vêm chegando ao culto. Deve-se deixar claro que todas as pessoas estão sendo bem acolhidas. Lembrar de pessoas ou grupos que estão sofrendo.
2. O culto é um serviço que Deus presta para o seu povo. Quem é este Deus que quer nos servir? O que Ele já fez por nós? O que Ele faz por nós? Qual é sua promessa em relação ao povo?
3. Quem é o povo que Deus quer servir? Quem somos nós? O que fazemos? O que deixamos de fazer? Em quem cremos e confiamos? Confessa¬mos nossas iniqüidades, nossos pecados…!
4. Ler cada um dos dois textos indicados para leitura. O breve texto explicativo referente a cada texto pode ser uma ajuda para a comunidade reunida.
5. Leitura de Is 53.10-12. Alguns pontos que considero importantes na pregação:
5.1. O sofrimento: lembrar de alguém ou algum grupo que está sofrendo. Eles são os santos que nos ajudam a entender quem são os vasos de barro em que Deus colocou a sua palavra já há mais de 2.500 anos. Por que as pessoas sofrem, hoje? Que tipo de sofrimentos há? Quais são as causas dos sofrimentos? Qual é a postura da comunidade diante das dores e dos sofrimentos?
5.2. Qual é a esperança do Servo Sofredor? A novidade que o Servo implementa na vida humana é a compreensão de que Deus tem poder de criar, de perdoar, de libertar, de restabelecer gente cansada, desanimada e machucada. Ele socorre os seus nas suas fraquezas. Que fraquezas a comunidade vive, hoje? Qual a causa? É possível superar fraquezas'? Como?
5.3. Como é exercido o poder na família, na comunidade, na sociedade? Tudo o que o Servo e Jesus fizeram foi servir. Deram a sua vida em favor de muitos, nações e reis, em nosso favor. Pelo seu serviço nós estamos sendo curados. A nossa comunidade está curando feridas? Quais são estas feridas, hoje?
5.4. A palavra de Deus descobre Iodos. Não dá para fugir. Isso é impossível. Também os maus e os incrédulos serão confrontados com a Palavra viva, poderosa e eficaz. Oportunamente, todas as pessoas serão confrontadas com esta palavra de Deus. Diante do tribunal de Jesus todos deverão prestar contas. As pessoas estão cientes disso? Como a comunidade vive esta dimensão da espiritualidade, no presente e em relação ao seu futuro?
5.5. Misericórdia pedimos a Deus. Nós ganhamos os benefícios do sofrimento do Servo de Deus. Como a comunidade pode viver esta misericórdia de Deus, hoje? Estamos sendo servidos e carregados por Deus criador e libertador. Agora temos condições de defender a vida de outros que estão em dificuldades.
6. Não esquecer dos hinos. Hoje somos chamados para cantar bastante. O Servo de Deus tem como pano de fundo a tradição dos cânticos. Orações e confissão de lê são partes importantes do culto, também.
Bibliografia
BRIGHT, John. História de Israel. 3. Ed. São Paulo: Paulinas, 1985. (Nova coleção bíblica, 7).
MESTERS, Carlos, Exílio e pós-exílio: síntese do seminário realizado pelo CEBI, na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, em São Bernardo do Campo, SP, 1988. SCHWANTES, Milton. O sofrimento e esperança no exílio : história e teologia do povo de Deus no século VI a.C. São Leopoldo : Sinodal; São Paulo : Paulinas, 1987.
Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia