PrĂ©dica: IsaĂas 61.10-62.3
Leituras: Efésios 1.3-6,15-18 e João 1.1-18
Autor: Louraini Christmann
Data LitĂşrgica: 2Âş Domingo apĂłs Natal
Data da Pregação: 02/01/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Natal
1. De abandonada e arrasada para minha querida
O profeta IsaĂas Ă© sinal de esperança em meio Ă crise. A nossa necessidade de fazer hoje uma releitura do seu sonho Ă© urgente. É tempo de virada de ano, de sĂ©culo e de milĂŞnio. E tempo propĂcio, tempo fecundo. Assim como a terra faz crescer as árvores e no jardim o chĂŁo faz brotar o que foi semeado, assim tambĂ©m Deus fará que brote a sua salvação (Is 61.11), especialmente em tempo de virada, de guinada, de nova empreitada.
Na virada do ano, do sĂ©culo e do milĂŞnio nada muda? SĂł o calendário? Bem, isto depende da gente. E Ă© porque a gente está mais dispersa do que o povo judeu voltando do exĂlio, que predomina entre nĂłs a ideia de que nada muda. O que nos distingue daquele povo habitante da cidade arrasada e abandonada Ă© que nĂŁo temos a esperança de transformá-la em minha querida (Is 62.4). Será mesmo?
Sugiro que o altar esteja em total desordem, bem no inĂcio do culto, com placas dizendo arrasada e abandonada. Ao iniciar o culto, a confissĂŁo de pecados poderia confessar a destruição que a gente faz na nossa cidade, comunidade, roça, pomar, lar… É preciso confessar tambĂ©m o pecado de pouco fazermos como Igreja em relação Ă destruição bancada pelas elites do Terceiro Mundo (que eu acho que nĂŁo Ă© terceiro, coisa nenhuma).
Outra coisa que Ă© preciso confessar como comunidade tradicional Ă© o medo que a gente tem de tocar nesses assuntos na hora das celebrações. NĂŁo queremos que falem de nosso estado de abandono e desolação. É sĂł ver a educação, a saĂşde e a agricultura familiar do paĂs, sem falar de tantos outros setores. TambĂ©m nĂŁo queremos falar de nossas desolações bem particulares.
Parece que esse silĂŞncio tambĂ©m acontecia na Ă©poca em que escreveu Trito-IsaĂas. Quase nada sabemos da histĂłria de entĂŁo. Nas entrelinhas lemos sobre o estado do abandono e desolação da cidade (Is 62.4). Se nunca mais a chamarĂŁo do abandonada e arrasada'', Ă© porque ela assim está.
Mas o que fazem muito Ă© buscar no passado inspiração para sonhar o futuro. NĂŁo Ă© sĂł nostalgia a que nossas comunidades se prendem. Uma coisa Ă© dizer: Antigamente tudo era mais bonito!, e ponto final. Outra coisa Ă© dizer: Antigamente tudo era mais bonito e no futuro tambĂ©m tudo será mais bonito. É isso que faz Trito-IsaĂas: relĂŞ o profeta IsaĂas (Is 1-40) Ă luz daquela nova situação depois do cativeiro.
O profeta IsaĂas precisa ser relido hoje. Ele Ă© atualĂssimo. E a sua releitura Ă© urgentĂssima tambĂ©m nesta virada de ano, de sĂ©culo e de milĂ©nio.
A justiça clama pelos becos arrasados e abandonados da nossa cidade chamada civilização. A salvação é graça e quer ser graça para cada beco arrasado, para cada ser abandonado.
No momento do Kyrie, ora-se pelas cidades arrasadas por guerras, pelos bairros arrasados por gangues e por policiais, pela natureza arrasada por agrotĂłxicos e pela poluição em geral, pelo povo brasileiro arrasado por este projeto neoliberal que Ă© a liberdade plena do capital…
A graça da salvação precisa ser anunciada. Neste culto, depois da confissĂŁo, sugiro ler Ef 1.3-6, que Ă© uma das leituras do domingo, e depois cantar GlĂłria a Deus, como o prĂłximo texto pede. Durante o GlĂłria, pode haver um mutirĂŁo de arrumação do altar. As placas que dizem ' 'arrasada e ' 'abandonada'' poderĂŁo ser substituĂdas por minha querida. Outra ideia: nĂŁo fazer isto no altar, mas em local especial, no chĂŁo, ou sobre algumas mesas. O mutirĂŁo Ă© interrompido na oração do dia.
Durante as leituras previstas para este domingo, sugiro o seguinte:
Durante a leitura de Ef 1.15-18 (os w. 3-6 já foram lidos antes do Gloria) coloca-se, no altar ou em outro local previsto, uma placa dizendo esperança.
Durante a leitura do Evangelho de Jo 1.1-18 é acesa uma vela ou uma tocha. Penso que uma tocha chamaria mais a atenção, na intenção de exagerar nesta luz, lembrando o quanto ela brilha na escuridão (Jo 1.5). Se a celebração for à noite, as luzes até poderiam ser apagadas antes de a tocha ser acesa.
Durante a leitura de Is 61.10-62.3, o texto da pregação, continua o mutirão de arrumação do altar ou de outro lugar definido, conforme detalhes que o texto vai trazendo ricamente:
Vestes da salvação —panos brancos? Manto da justiça —panos beges ou neutros? Noivo de turbante e noiva com jĂłias — ou bonecos enfeitados de acordo ou lenços e correntes espalhados? Que tal correntes feitas pelas crianças do culto infantil com sementes furadas? Ou entĂŁo uma grinalda antiga que alguma vovĂł ainda tenha guardado? Ou vĂ©us? (A Ordem Auxiliadora de Senhoras EvangĂ©licas [OASE] pode entrar nisso.) Terra com renovos — galho verde, ramos — o que brotou no jardim — flores, sol — tambĂ©m pode ser pintado pelas crianças ou pelo pessoal do ensino confirmatĂłrio. Que tal encher a toalha do altar de sĂłis, prendendo-os com alfinetes atĂ© o chĂŁo? Tocha acesa —parece que esta Ă© mesmo imprescindĂvel. Coroa, diadema — criatividade em prática…
2. Justiça e salvação — é tempo de sonhá-las e concretizá-las neste novo milênio
Trito-IsaĂas fala de justiça e salvação, e nĂŁo de vitĂłria e salvação, como quer a BĂblia na linguagem de hoje. Nosso texto Ă© uma amostra de como a tradução pode mudar radicalmente a mensagem. É diferente dizer que o Senhor me vestiu com a capa da vitĂłria ou com a capa da justiça (61.10). É diferente dizer: JerusalĂ©m, todas as nações verĂŁo a sua vitĂłria (62.2). Há muita cidade tendo vitĂłria sem justiça. Dito isso, sugiro que, na hora da leitura do texto, leia-se a tradução de Almeida, mesmo sendo um pouco mais difĂcil.
Justiça e salvação, vestes da salvação, capa da justiça — isto é promessa de Deus, através da profecia. A profecia tem o poder de Deus para arrancar e derrubar, para destruir e arruinar, para edificar e plantar (Jr l .10). A ordem que Deus dá através da profecia não volta sem se cumprir (Is 55.10-11).
A esperança, portanto, é muito grande. É a esperança que faz a força profética. E esperança a gente alimenta, a gente constrói.
Para o inĂcio da pregação, sugiro usar o verde com o qual enfeitaram a cidade, afirmando que a terra produzirá seus renovos e que nos jardins brotará o que a gente semeou e ainda vai semear. Pode-se convidar a comunidade a cantar o refrĂŁo:
Amadurece a cada instante uma esperança
De um mundo novo povoado de irmĂŁos
Se vocĂŞ pode acreditar, comece agora
E não tenha medo de ser livre até o fim.
Por falta de esperança, muita iniciativa nem chega a ser uma iniciativa. Já morre antes. A esperança profĂ©tica pode ser desafiada no inĂcio da pregação, lembrando que o prĂłprio Jesus se alimenta dela ao ler Is 61.1 -2, conforme Lc 4.17-21, concluindo com o bonito: Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir. E Is 61.1-2 fala de evangelizar pobres, proclamar libertação a cativos, restaurar vista de cegos, pĂ´r em liberdade oprimidos e atĂ© do ano sabático. Toda essa proposta tem a ver com restauração da cidade, com restauração do povo, com restauração da vida.
3. Saudade do passado — ansiedade pelo futuro. E o presente?
O presente era abandono e desolação. E dessa Ă©poca muito pouco se sabe. A Ă©poca de Trito-IsaĂas, bem como de Ageu, Malaquias, Joel e do inĂcio do livro de Zacarias, Ă© uma das Ă©pocas menos conhecidas da histĂłria do povo de Israel, mas Ă© a Ă©poca que fez a cabeça do povo no tempo de Jesus.
A profecia silencia depois desses relatos. E tem mais: o que escrevem nessa época não nos dá detalhes sobre aquele tempo. Olhavam o presente com os olhos do passado, pensando no futuro.
A terra está destruĂda. Parte do povo volta do exĂlio. Outra parte, que ficou exilada em sua prĂłpria terra, tambĂ©m está abandonada e arrasada. Tudo está abandonado e arrasado. Parece que nĂŁo queriam falar sobre isso. Mas queriam falar do passado para sonhar o futuro. Como escreve o querido Carlos Mesters:
O presente era visto como um retrocesso com relação ao passado. NĂŁo valia a pena registrá-lo. NĂŁo valia a pena cortar o galho da profecia c enxertá-lo neste presente tĂŁo provisĂłrio. Um dia, ainda esperavam, o passado voltará a impor-se de maneira totalmente nova (…). O passado renovado. Assim imaginavam o futuro. (p. 38.)
Nesse silêncio em relação ao presente, mas com vastas lembranças do passado, brota a saudade, e com ela o sonho da restauração daqueles tempos, dos tempos de Davi. Não é por acaso que aquele que deveria vir ao mundo é descendente de Davi, justo e pobre.
Para falar sobre isso na pregação, sugiro contar a histĂłria de uma vovĂł que, para nĂŁo falar das coisas erradas de hoje, falava das coisas certas de antigamente. NĂŁo chegava a dizer: o que está errado hoje Ă© isto, isso e mais aquilo. Mas falava com detalhes do que estava lindo quando ela era menina. Para falar do caos da saĂşde de hoje, para contrastar, falava da saĂşde e das pessoas que a propagavam no seu tempo. Para falar da violĂŞncia de hoje, falava da segurança do seu tempo. Para falar da misĂ©ria de hoje, falava da fartura do seu tempo…
Mas apĂłs o exĂlio Ă© Ă©poca de reconstrução das muralhas e do templo. Trito-IsaĂas sonha com essa reconstrução, mas nĂŁo quer o esplendor do templo. O Senhor diz: O cĂ©u Ă© o meu trono e a terra Ă© o estrado onde descanso os meus pĂ©s. Que tipo de casa vocĂŞs poderiam construir para mim? (Is 66.1-2.) TambĂ©m nĂŁo aguenta o luxo das cidades. IsaĂas 55.1-2 Ă© um cântico contra o supĂ©rfluo. IsaĂas 55.12-13 Ă© um cântico a favor da natureza. IsaĂas 56.10 Ă© uma declaração contra os opressores persas que oprimem mais sutilmente. Os persas, diferentemente dos babilĂ´nios, deixam o povo reconstruir tudo, inclusive sua religiosidade. Mas a opressĂŁo Ă© tĂŁo grande quanto a anterior. É uma opressĂŁo ideolĂłgica mais sutil. Já Ă© daqueles tempos, pois, a polĂtica de dominação de hoje.
A idolatria está sendo denunciada pelo profeta e parece ser um resultado da dominação estrangeira (cap. 57). No cap. 58 aparecem a hipocrisia religiosa e a divisão entre o povo. O famoso dito de Is 58.6-7 nos traz o verdadeiro sentido do jejuar: Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto e recolhas em casa os pobres desabrigados, e se vires o nu, o cubras, r não te escondas do teu semelhante?
Hoje também é época de reconstrução, época de virada, de novo milénio. Também estamos sob o jugo estrangeiro, nesta globalização que só engloba quem tem capital. O resto é resto.
Penso que a pregação deveria apontar a realidade decorrente dessa dominação estrangeira. Hoje, aqui, agora. E deixar bem claro que nĂŁo quer tambĂ©m calar sobre a realidade, como a vovĂł da histĂłria, bem como a profecia dos anos 500 a.C. Apontando para a cidade minha querida, construĂda durante a liturgia, Ă© preciso deixar bem claro que a construiremos tambĂ©m entre nĂłs, caso tivermos plena consciĂŞncia do arraso e abandono de nossas cidades, roças, escolas, hospitais, comunidades, lares…
O Senhor Deus, atravĂ©s de Trito-IsaĂas, garante que se o seu povo atentar para tudo isso, o sol brilhará.
Talvez a tocha acesa tivesse que ser aumentada, ou se tivesse que aumentar o número de velas. Haverá cura. Haverá justiça! Haverá glória de Deus! (Is 58.8-14.)
E Jesus, que se diz luz do mundo (Jo 8.12) e que nos diz luz do mundo (Mt 5.14), precisa ser lembrado e louvado neste ponto da pregação.
Ideia: plantar uma cruz bem no centro do lugar simbĂłlico, enquanto sĂŁo lidos Jo 8.12 e Mt 5.14.
4. Se todo o povo assumisse essa profecia, a cidade assim seria — profecia coletiva
Falta falar da necessidade do coletivo articulado e organizado, o que a profecia anuncia como única maneira de viabilizar o sonho da reconstrução ontem, hoje e amanhã. E de coletivo já entendia o profeta Moisés.
Na nossa dinâmica celebrativa, que estou encaminhando desde o inĂcio deste auxĂlio, Ă© preciso destacar o mutirĂŁo feito para criar aquele espaço simbĂłlico, que sĂł assim foi possĂvel.
É assim com a profecia do nosso texto. Isaias 61. 10-62.3 sĂł se com concretizará hoje na base do mutirĂŁo, e mutirĂŁo polĂtico. Como reconstruir cidade, se nĂŁo for politicamente?! E se nĂŁo apostarmos em um grande projeto polĂtico de reconstrução da cidadania, um grande mutirĂŁo envolvendo entidades, outras comunidades, autoridades e povo em geral, a profecia da cidade reconstruĂda, da cidade minha querida ficará sĂł nesse mutirĂŁo simbĂłlico, que nĂŁo levará a nada. Profecia que fica sĂł na profecia deixa de ser profecia.
Em relação ao coletivo da profecia, poderĂamos fechar a mensagem com chave de ouro trazendo alguns profetas que falam dessa necessidade. Que tal vestĂ-los a rigor para que falem Ă nossa comunidade?
MoisĂ©s: Eu nĂŁo aguentava mais ser profeta sozinho. AĂ Deus tirou uma parte do EspĂrito que havia dado a mim e deu a 70 lĂderes. Todos transformaram-se em profetas. Mas eu gostaria que Deus desse o EspĂrito a todo o povo e fizesse com que todos fossem profetas. (Nm 23.25-29.)
Isaias: Chega de luxo e ostentação. Deus não quer (Is 3.16-24). Ele vai humilhar os orgulhosos e vaidosos (Is 2.12). Deus escolherá meninos para governar o seu povo. O poder ficará nas mãos de crianças (Is 3.4).
DĂŞutero-IsaĂas: Eu estava lendo o que o profeta Isaias escreveu em torno do ano de 720, e penso que assim será tambĂ©m hoje. Deus diz tambĂ©m ao povo de hoje: VocĂŞ Ă© o meu servo, o povo que eu escolhi. NĂŁo fiquem com medo, pois eu os ajudo. Deus diz tambĂ©m ao seu povo hoje: VocĂŞ Ă© pequeno e fraquinho, mas nĂŁo tenha medo, pois eu, o santo Deus de Israel, sou o seu salvador e o protegerei (Is 41.8-14).
Trito-IsaĂas: Eu tambĂ©m estava ouvindo o profeta Isaias. TambĂ©m penso que ele Ă© mais atual do que nunca. Aquele luxo e ostentação que Isaias denunciava (Is 3.16-24), eu quero anunciar que serĂŁo de toda a cidade (Is 61.10-62-3). É como eu escrevi por volta do ano de 600 a.C. (talvez aqui ler o texto outra vez).
Joel: Isto vai dar certo porque Deus vai derramar o seu EspĂrito sobre seus filhos e suas filhas, sobre escravos e escravas, e os velhos sonharĂŁo, os jovens terĂŁo visões. Todas as pessoas que pedirem ajuda serĂŁo salvas (Jl 2.28-32).
Jesus: (Jesus entra, pega a BĂblia, a abre e diz:) Vou ler o que este profeta (apontando para Trito-IsaĂas), Trito-IsaĂas, escreveu. Está escrito em Is 61.1-2… (LĂŞ o texto. Depois fecha a BĂblia e diz:) Hoje se cumpriu a passagem das Escrituras Sagradas que vocĂŞs acabaram de ouvir. (Lc 4.16-21.)
Bibliografia
CENTRO de Estudos BĂblicos (CEBI). Profecia cm Israel: resistĂŞncia contra os poderes de morte: defesa da vida do povo. (apostila).
MESTERS, Carlos. A profecia durante e depois do cativeiro, (fotocĂłpia). PROFETAS: ontem e hoje. Estudos BĂblicos, PetrĂłpolis: Vozes, n. 4, 1986.
Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia