Prédica: João 1.1-5,9-14
Leituras: Isaías 52.7-10 e Hebreus 1.1-9
Autor: Wilfrid Buchweitz
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação:
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Natal
1. Introdução
O texto bíblico mais vezes usado nas igrejas no dia do Natal certamente é Lucas 2.1-20. Ele descreve histórica e geograficamente o nascimento de Jesus, com muitos detalhes e com muita clareza. Até crianças podem ler aquele trecho e entendê-lo sem muita dificuldade. O Salvador do mundo nasce numa estrebaria c é colocado no coxo de animais. A mensagem é lida e ouvida todos os anos em todos os lugares onde existe Igreja cristã. E o texto clássico do Natal.
João 1.1-5,9-14 tem muito pouco da história e nada de geografia. E não é, por excelência, um texto de Natal, apesar de o versículo 14 também ser muito citado nessa época.
João l é um dos textos teológicos mais maciços sobre Jesus Cristo de todo o Novo Testamento. Ele interpreta Jesus Cristo. Diz coisas essenciais a respeito dele. Revela traços importantes. Por isso pode ser trabalhado o ano todo. Tem coisas vitais a dizer o tempo todo. Mas, bem por isso, também é importante no Natal. Ajuda a enfocar o Natal a partir da riqueza teológica que contém.
Poderia alguém dizer que Lucas 2 também se pode ler o ano inteiro, e não dá para contestar isso. Será que prendemos Lucas 2 demais ao dia do Natal?
2. Os três textos
Os três textos têm em comum um Deus voltado para seu mundo, especialmente para seu povo.
Em Isaías são anunciadas boas-novas, de paz, de cousas boas, de salvação, porque o teu Deus reina. Olhos vêem o retorno do Senhor a Sião. Conclamam no júbilo as ruínas de Jerusalém porque o Senhor consolou o seu povo e remiu a Jerusalém. Todos os confins da terra verão a salvação de Deus.
Hebreus diz que depois de Deus ter falado muitas vezes e de muitas maneiras pelos profetas, agora falou pelo Filho. E isso é o máximo. Ninguém, nem os anjos, tem a autoridade e a qualidade de falar em nome de Deus que o Filho tem. Deus coloca na comunicação com seu povo a maior autoridade e o maior amor possível.
E João fala que o mesmo Verbo que estava com Deus, que era Deus, desde toda a eternidade, e por intermédio de quem tudo o que existe foi feito, este Verbo se tornou mundo, tornou-se povo, tornou-se ser humano, tornou-se carne.
São três doxologias. São três superlativos em termos de Deus voltado para seu mundo e seu povo, em termos de Deus se colocando junto a seu mundo e seu povo, Deus se tornando visível, palpável, alcançável.
3. O texto de João
No início do Evangelho de João temos um trecho que é conhecido como prólogo, os versículos 1-18. Não se pode dizer que seja uma espécie de introdução ou prefácio. E muito mais uma espécie de resumo de todo o livro. Por isso também o texto é rico, compacto e carregado. Baseia-se num hino cristológico que já existia antes de João.
Nossa perícope não contempla todo o prólogo. Fica com os versículos 1-5 e 9-14. Exclui os versículos 6-8 e 15-18. Isso não só não prejudica, mas até ajuda na abordagem, exegese e exploração do texto no dia do Natal.
A verdade que João quer proclamar é o Verbo se fez carne. Para isso faz todo um arrazoado sobre o Verbo. O Verbo vem lá da eternidade, está com Deus na eternidade. O Verbo é Deus. Está com Deus e é Deus, desde o princípio. Há uma diferença entre Verbo e Deus e ao mesmo tempo há uma unidade entre eles. O mundo foi criado por intermédio do Verbo e nada do que foi criado o foi sem que fosse por intermédio do Verbo. Não foi o Verbo que criou, mas foi Deus através do Verbo.
No Verbo havia vida. Toda a vida da criação surgiu através dele, a vida biológica e também a vida eterna, vida em toda a plenitude. Essa vida era luz, era vida cheia de luz, vida envolta em luz, a vida do Verbo iluminou a humanidade.
A luz do Verbo se impôs nas trevas, venceu as trevas. As trevas eram muito densas, mas a luz não teve dificuldade de penetrar nelas e de vencê-las, e por isso a humanidade pode viver no mundo. O mundo não está mais nas trevas. Há luz no mundo, e o mundo e a humanidade podem viver alegremente nesse mundo iluminado e podem ter vidas iluminadas.
Se no início a linguagem de João poderia ser lida como uma linguagem filosófica, com o correr dos versículos ela nos conduz cada vez mais a Jesus Cristo. No versículo 10, o mais tardar, não dá mais para deixar de identificar Jesus Cristo. Ele vem da eternidade para Belém. João pinta, em poucas palavras, a trajetória de Jesus Cristo desde o princípio, via criação do mundo, até Israel. Ele veio para o que era seu, veio para o mundo e a humanidade criados por seu intermédio. Mas, e parece impossível, ele não é recebido. É rejeitado. E condenado e crucificado.
Só alguns o recebem e aceitam e crêem em seu nome. Esses são declarados filhos de Deus. Eles ganham de volta a condição da humanidade da primeira criação de Deus. Não são filhos de sangue, nem de carne, nem de decisão e planejamento humanos. Eles nasceram de Deus. Jesus Cristo é seu Senhor e Salvador.
E agora vem o versículo 14. Ele é tido como uma manifestação da comunidade que João transcreveu em seu evangelho. De repente são mais pessoas que falam. Ó entre nós e vimos indicam mais gente falando.
E a comunidade confessa e louva que o Verbo se fez carne. Numa frase resume todo o caminho que acima foi sinalizado. Verbo e carne, duas naturezas tão diferentes, dois lugares tão distantes, mas que, apesar disso, têm traços idênticos: graça, verdade e glória.
No versículo 14 está a culminância da perícope. No Verbo, em Jesus Cristo, acontece a encarnação de Deus no mundo.
4. Meditando
Este é o recado de João: o Verbo se tornou carne. O Deus de todos os tempos e de todos os mundos está entre nós no homem Jesus Cristo. É uma mensagem extremamente simples, ao mesmo tempo que é extremamente rica. Em princípio a mensagem é completa e não precisa de nenhum complemento. É uma verdade suficiente. É a verdade suficiente. Mas dificilmente alguém consegue dizer apenas a mensagem condensada, concentrada. Quem a diz se sente impulsionado a desdobrá-la. Parece um ar que alguém comprime tanto que ele explode as paredes do instrumento que o quer reter. O próprio João não consegue dizer só a palavra o Verbo se tornou carne. Ele a desdobra numa rica introdução e numa abundante ramificação de considerações nos 21 capítulos de seu evangelho.
A mesma coisa nós temos que fazer. Temos que, primeiro, enfocar o o Verbo se tornou carne ali em Israel. Como e onde ele nasceu. O que ensinou. Como revelou o poder criador e vivificador de Deus. Seu amor incondicional. Seus juízos. Sua obediência. Sua vida no meio do povo. Sua cruz e ressurreição. 'lemos que conhecer ali o Jesus Cristo que é humano, mas que ao mesmo tempo é divino. O Jesus Cristo que é Filho de Deus e filho de Maria, o Deus que em João se torna carne (1.14), que em Lucas se deita numa manjedoura (2.7), que cm Paulo se esvazia e se torna em semelhança de seres humanos (Fp 2.7), que mi Hebreus nos fala pelo Filho (1.2) e que em Isaías permite que seus atalaias vejam com seus próprios olhos distintamente o retorno do Senhor a Sião (52.8).
5. E hoje?
Agora, como esse Verbo vem ao Brasil e se encarna aqui no ano 2000?
Vem via sua Palavra e seu Batismo e sua Santa Ceia dentro de sua Igreja. O Verbo, agora o Verbo encarnado, continua fazendo sua trajetória através do mundo e dos tempos. Podemos encontrá-lo a cada vez que lemos sua Palavra na Bíblia, a cada vez que alguém nos testemunha sua Palavra, no dia em que somos batizados e a cada vez que tomamos parte na Santa Ceia. O seu Espírito, o Espírito Santo, está presente na Palavra e no Batismo e na Ceia, dentro de sua Igreja, e abre nossos olhos, mentes e corações e nossas igrejas para encontrarem o Verbo encarnado em nossos dias. O Espírito também estava com Deus desde o princípio e o Espírito também era Deus. O Espírito também faz o caminho através dos tempos. Deus Pai, Filho e Espírito Santo estão juntos sempre, desde o princípio. Onde está o Pai, estão o Filho e o Espírito Santo, onde está o Filho, estão o Pai e o Espírito Santo e onde está o Espírito Santo, estão o Pai e o Filho. Não dá para cortar Deus em pedaços, apesar de pessoas, grupos e igrejas terem tentado fazer isso em todos os tempos. Deus é uma comunhão indesmanchável de Pai, Filho e Espírito Santo. Ou é mais adequado dizer que Deus é uma unidade indesmanchável de Pai, Filho e Espírito Santo? Ou as duas coisas? Quando não enxergamos isso, então é sinal de nossa miopia e de nossa pequenez em ver, apesar de sua revelação, esta dimensão do mistério de Deus.
Palavra e sacramentos, então, não trouxeram até nós apenas um texto, a frase o Verbo se tornou carne, um dogma, uma pretensa verdade. Trouxeram até nós o próprio Cristo. Ele continua a se encarnar em nós e continua a se encarnar na humanidade e no mundo através daqueles que crêem. Pelos dois motivos nós podemos ser aquilo que Lutero chama de pequenos cristos.
Como Verbo encarnado Jesus Cristo continua sendo portador de vida e luz. Eu sou a vida, diz ele explicitamente em João (14.6). Em outro lugar diz: Eu sou a luz (8.12). Vida em meio a muita morte. Luz em meio a muitas trevas. Como vida ele vence a morte sempre que prega sua Palavra e sempre que realiza um milagre e, especialmente, na ressurreição. Como luz ele ilumina a toda pessoa e vence as trevas.
Mesmo assim, muitos não o recebem. O Verbo não se impõe à força. Ele se encarna, mas não tira a liberdade e a responsabilidade de ninguém. O poder da morte e das trevas foi quebrado, mas sua realidade não deixa de existir. E muitos preferem a morte e as trevas.
Aqueles que recebem o Verbo são feitos filhos de Deus. Com eles Deus restabelece a velha relação do Éden. Eles podem e vão experimentar o gosto e provas do novo Éden, e através deles Deus vai, pela história afora, apresentar o novo Éden, o seu reino, ao mundo todo.
6. Nossos cultos
Como dizer na comunidade, de novo, que o Verbo, que era no princípio, se tornou carne? A boa nova do Natal se repete tantas vezes que corre o perigo de se tomar uma boa velha, ou uma velha que não é nem boa. Sabemos que também em nossa época o Verbo vem para o que é seu e que os seus não o recebem. Mas esse julgamento não cabe a nós. Que bom que muitas das nossas igrejas estão cheias de gente no Natal! Vamos nos sentir desafiados a empregar a melhor comunicação possível.
Sugiro que o tema, não só da pregação, mas de todo o culto, hinos, orações, pregação, gire em torno do eixo o Verbo se fez carne. Como fazer isso? Vamos pensar em algumas possibilidades:
1. Colocar um presépio no meio da comunidade. Ou colocar o altar no meio da comunidade e sobre ele um presépio. Onde houver cadeiras na igreja colocá-las em círculo, ou, onde for possível, colocar os bancos de tal forma que fiquem em semicírculo ou num quadrado, e no meio fica o presépio ou o altar com o presépio.
2. Com a mesma disposição de cadeiras e bancos, colocar no centro uma mesa ou o altar e em cima uma Bíblia aberta, a pia batismal, um prato de pão e o cálice como os meios que Deus usa para trazer até nós o Verbo encarnado.
3. Ainda com a mesma disposição de cadeiras e bancos, colocar no meio um presépio e dentro dele o prato e o cálice da Santa Ceia para comunicar o Cristo presente.
4. Celebrar a Santa Ceia no culto de Natal e assim celebrar a presença de Cristo na comunidade e no nosso mundo.
5. Fazer uma encenação simples onde ou a Bíblia é trazida para o meio da comunidade, ou a Bíblia, pia batismal, prato e cálice, ou só o prato e o cálice, e grande parte da comunidade se levanta e vai embora, e só alguns permanecem.
6. Relatar no culto uma ou mais situações onde o Verbo encarnado está ensaiando vida nova, num casamento que venceu conflitos, numa família, num trabalho com crianças, com idosos, numa denúncia de injustiça.
7. Decidir na comunidade natalina visitar durante todo o ano, até o próximo Natal, todos os idosos da comunidade, ou crianças, ou pessoas portadoras de deficiência, ou outro grupo, para simbolizar que o Natal pode e deve ser levado ano afora.
8. Decidir no culto de Natal visitar no próximo ano 10 ou 20 ou mais pessoas ou famílias, não membros da comunidade que não participam de nenhuma Igreja e oferecer-lhes nossa Igreja para experimentarem a comunhão dos que receberam o Verbo encarnado.
9. O Verbo encarnado tem olhos e atenção especialmente para os pobres, pequenos e fracos. Decidir no culto de Natal algum tipo de atuação concreta da comunidade nessa direção.
10. Algumas comunidades têm o costume de montar um presépio vivo. E se colocassem no presépio uma criança negra, ou índia, ou de favela?
11. Outros recursos didáticos que a criatividade de cada pastor/a e/ou comunidade conseguir descobrir.
Algumas das ideias acima são praticáveis também ali onde um/a pastor/a tiver que coordenar vários cultos em várias comunidades dentro de uma paróquia geograficamente extensa. Em poucos minutos é possível reorganizar a disposição de altar, cadeiras e bancos na igreja. Em comunidades maiores, onde houver só uma igreja, é possível programar o culto com dinâmicas que requerem mais tempo de preparação.
7. Nossa resposta?
Os seus não o receberam: será que isso vale somente para o tempo do nascimento de Jesus? Ou será que isso vale para nosso tempo também? Nos textos e nas imagens veiculados em cartões, jornais, rádio, TV e até nas igrejas nos é mostrado um Jesus doce, romântico, idílico, simpático, de quem ninguém quer sentir falta, para quem todos querem ter espaço na vida.
Mas no dia-a-dia das pessoas, em suas famílias, em seu trabalho, na sociedade e até nas igrejas, muitas vezes não há muitos sinais de Jesus Cristo encarnado. Neste nosso Brasil a quase totalidade das pessoas foram e continuam sendo balizadas em nome de Jesus Cristo. Os políticos, os economistas, os líderes empresariais, os líderes eclesiásticos, os pais de família, todos foram batizados em nome de Jesus Cristo. E no entanto, a injustiça, exploração, violência grassam por aí sem restrições e limites. O que significa isso?
Significa que as palavras de Deus chegando até nós para nos proteger, para nos abençoar, para dar um toque religioso a nossas vidas são boas, simpáticas, confortadoras, acalmantes. Mas viver esse Jesus Cristo encarnado, sermos instrumentos seus, nas pessoas e no mundo à nossa volta, para isso só alguns se dispõem. De fato não mudou tanto desde o primeiro Natal. Os seus continuam não recebendo o Verbo. Recebem de boca, mas não de vida. Querem as bênçãos, mas não estão dispostos a ser bênção para outros e o mundo. Ouvem as palavras que lhes prometem benefícios, mas não ouvem aquelas palavras que os enviam ao mundo para serem sal e luz para outras pessoas. Pedem riquezas para si, mas não estão dispostas a contribuir para o bem-estar de outros. Não estão dispostas a serem portadores de vida e instrumentos de luz a serviço de Jesus Cristo. Isso significa não levar Jesus Cristo a sério. E é atitude interesseira e não comprometida.
Assim como em Jesus Cristo Deus se coloca no nosso nível, ele quer e espera que nós nos coloquemos no nível de nosso próximo. Assim como ele da sua vida por nos, quer que nós compartilhemos nossa vida com nosso próximo, especialmente o mais frágil e necessitado. Ele quer que, em seu nome, nós nos tornemos carne para o próximo e o mundo à nossa volta, nós pessoas e igrejas.
Sugestão para a prédica:
1) Introdução.
2) Com Jesus Cristo Deus se encarna no mundo.
3) Através de nós e nossas igrejas Deus continua sua encarnação no mundo de hoje.
4) Conclusão.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. Meditação sobre João 1.1-5,9-14. In: STRECK, Edson Edílio, KILPP, Nelson (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1993. vol. XIX, p. 35-41.
ENGELBRECHT, Margarete E. Meditação sobre João 1.1-18. In: SCHNEIDER, Nélio, WITT, Osmar L. (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1997. vol. 23, p. 30-34.
STRATHMANN, Hermann. Das Evangelium nach Johannes. Göttingen : Vandenhocck & Ruprecht, 1968. (Das Neue Testament Deutsch, 4).
Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia