Prédica: João 19.16-20
Leituras: Isaías 52.13-52.12 e Hebreus 4.14-16,5.7-9
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 21/04/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Sexta-Feira da Paixão
1. Introdução
Ensinam a arte e a música sacra que o mesmo tema pode ser representado e apresentado de formas distintas, sem por isso deixar de falar da essência do assunto. Parece-me que isso ocorre com os evangelhos quando eles retratam a paixão e morte de Jesus. Se os paralelismos entre os sinóticos são um tanto quanto evidentes, o evangelista João destoa. Parece que ele lê os acontecimentos de trás para a frente e não consegue se livrar — por um momento sequer! — do evento da ressurreição, cuja luminosidade invade, por exemplo, o relato do momento mais dramático na vida de Jesus, que culminaria na cruz. Justamente a narração desta parte tem um jeito bem objetivo e quase sereno: Jesus, carregando ele mesmo a sua cruz, caminha com soberania até o lugar de sua execução; por diversas vezes o leitor é remetido ao Antigo Testamento para mostrar que Jesus estava seguindo o caminho que Deus lhe havia proposto; mesmo da cruz, ele ainda ordena um relacionamento pessoal, para finalmente dizer que tudo está consumado.
Ao que tudo indica, João queria ajudar os gnósticos a entenderem o mistério do Cristo, pois, como se sabe, estes tinham o Cristo como um ente celestial que, pela própria natureza, não poderia passar por sofrimento e cruz. João parece que não quer obscurecer esse brilho do Filho de Deus, mas Ia/ este mesmo Filho de Deus trilhar o caminho do sofrimento em direção à morte e ter acima de sua cabeça uma tabuleta que lembra ser ele de Nazaré, localidade da qual não se pode esperar coisa boa (Jo l .46). Em outras palavras, João não nega a glória de Jesus, mas mostra que ela está fincada no chão concreto do mundo. Afinal, do começo ao fim, este evangelho está falando do Verbo que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1.14). Como fios em um tapete, o Verbo e a carne, o humano e o divino, o sofrimento e a glória vão sendo entrelaçados para trazer à luz a história da redenção. Uma mostra da dificuldade que temos em expressar com nossas palavras esta realidade que supera o nosso entendimento (Fp 4.7) pode ser encontrada na formulação do Credo Niceno-Constantinopolitano.
2. O texto
Vv. 16-18: Pilatos encaminha a execução que fora decidida, e Jesus carrega — ele mesmo! — a cruz na qual será executado. Ele é levado para fora da cidade (a condenação inclui a expulsão do condenado do seu meio social), ao Gólgota, elevação que se parece com uma caveira. Ali crucificaram a ele e mais dois, sobre os quais nada mais se diz (ao contrário dos sinóticos, que os identificam — são ladrões e/ou malfeitores — e registram palavras deles e dirigidas a eles). Numa cena de silêncio, Jesus, ironicamente, ocupa o lugar de honra.
Vv. 19-22: Era costume identificar de alguma forma o executado e o motivo de sua execução. Muitas vezes se lhe pendurava uma placa no pescoço (o que pode ter acontecido até com os três). No caso de Jesus — uma figura altamente polêmica —, a cruz era encimada por uma placa com a inscrição: Jesus Nazareno, Rei dos Judeus, em três línguas. O protesto dos judeus não demorou a vir, mas Pilatos responde lapidarmente: O que escrevi, escrevi. Com a inscrição Pilatos dá o troco aos judeus que praticamente lhe impuseram a decretação da sentença de morte, sugerindo que eles, mais uma vez, puseram a perder o enviado de Deus que, quisessem ou não, vinha de Nazaré. Este Jesus era o Rei esperado! E Pilatos não fica nisso: os dizeres em três línguas apontam para a ecumenicidade daquele acontecimento. Assim, Pilatos, sem querer, se torna intérprete e testemunha da dimensão salvífica e universal deste ' 'Deus na forca''.
Vv. 23-24: Arrancar as roupas do condenado era mais um ato brutal, que no caso de Jesus ainda é superlativizado na medida em que tudo é repartido em quatro partes (o número 4 não deixa de ser simbólico: os pontos cardeais, os rios do paraíso, os quatro evangelistas [cf. de Lazzer, p. 116]), dando — de novo — a ideia de universalidade. A túnica, porém, uma peça sem costura, deveria ser sorteada e não dividida. A túnica dos sumos sacerdotes era uma peça inteiriça, sem costura. Será que João queria apontar para o papel sumo-sacerdotal de Jesus descrito em Hebreus? Mais tarde até se julgou poder concluir que esse manto, essa túnica, significava a unidade da Igreja! Na verdade não há indicativos nem para um nem para outro, o que não impede que nós leiamos, paralelamente a este evangelho, o trecho de Hebreus que destaca Jesus como nosso sumo sacerdote derradeiro. Ao que se sabe, não era novidade repartir os despojos do executado.
Vv. 25-27: Divergindo dos sinóticos, a cena descrita por João mostra quatro mulheres e não três. Além disso, os nomes também divergem. Talvez seja uma ajuda lembrar que, em geral, há diferenças no tocante a nomes de pessoas presentes em determinadas cenas. Além das mulheres, encontra-se no lugar o discípulo amado. Há intérpretes que enxergam em Maria a representante dos judeus e no discípulo amado o representante dos outros povos, dos gentios. Dentro desta visão, as palavras de Jesus à mãe e ao discípulo estariam expressando a integração de judeus e gentios na Igreja, uma questão que sabidamente foi muito complicada. Mas nem todos concordam com esta lógica, contrapondo a leitura de que o discípulo amado seria a testemunha ocular (o próprio João?) que iria garantir a fidelidade da mensagem, sendo Maria o elo de ligação entre ele e Jesus, e representante dos que buscam salvação. É melhor permanecer nesta aporia? Será que não estaremos emprestando respeito suficiente ao evangelista se fizermos uma leitura mais ingênua, dizendo que nesta cena, nos últimos minutos de sua vida, Jesus relativiza os conceitos e as relações humanas, na medida em que os renova e aprofunda, talvez na linha de Paulo quando este escreve que não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos (somos) um em Cristo Jesus (Gl 3.23)?
Vv. 28-30: Jesus que pende da cruz não como sofredor, mas como 'rei' oculto, sabe que 'agora' tudo chegou ao seu fim — à sua realização'' (Bultmann, p. 521 s.). Até a exclamação de Jesus por causa da sede está relacionada à Escritura, e não só e simplesmente ao fato de que a sede impõe um sofrimento sem par, o que o evangelista sem dúvida também quer dizer. Dando-lhe vinagre em resposta, os soldados continuam a sua zombaria. E a cena culmina com a morte de Jesus e as palavras está consumado, evidenciando-se passo a passo até o final que aqui não se está diante de um destino cruel ou apenas enfrentando a brutalidade dos seres humanos: por trás de tudo e nas entrelinhas, está a vontade salvífica de Deus que se revelaria e concretizaria em Jesus de Nazaré.
3. A caminho da pregação
Wilhelm Löhe disse, numa Sexta-Feira Santa, que gostaria mesmo é de ficar calado, em contemplação, pois onde está a palavra, onde a meditação que poderia ser considerada adequada e digna da hora da morte de Jesus? (apud Koch, p. 177). Hans Walter Wolff parece acentuar outra dimensão do mesmo dia e acontecimento, terminando uma prédica (segundo tradição oral que conheço!) com as palavras: Deus está morto. Aleluia!
Em diversos grupos de estudo na comunidade (IECLB), especialmente nestes meses em que estamos introduzindo a pequena alteração no Credo Apos¬tólico (substituindo desceu aos infernos por desceu ao mundo dos mortos), é interessante perceber como é difícil para as pessoas aceitar o sofrimento radi¬cal de Jesus. Mesmo sem dar explicação, parece que Jesus e seu papel não podem rimar com sofrimento. Muitas meditações e prédicas de Sexta-Feira Santa também saem pela tangente, lembrando logo que a Páscoa está à porta. Num diálogo sobre o assunto com um padre e um espírita, este último afirmou que as palavras de Jesus na cruz (Mt 27.46) teriam sido ditas por um dos ladrões c atribuídas a Jesus por engano.
Parece-me que João consegue manter as duas dimensões, por mais objetivo e frio que seu relato pareça. Com Löhe se pode calar diante da violência da cena, e com Wolff afirmar que ali ninguém menos do que o próprio Deus é morto. Mesmo que João não o diga de maneira explícita aqui, mesmo porque este evangelho o repete incessantemente, a alusão à Escritura é o indicador de que tudo isso acontece pro nobis (por nós).
Assim como no Natal e na Páscoa, também na Sexta-Feira Santa corremos o risco de ser repetitivos. Na verdade nem é possível fugir disso. O que se pode fazer é buscar ajuda, por exemplo, na arte e na música, acentuando aspectos diferentes. Assim, talvez seja possível destacar:
1) Esse Jesus de Nazaré, mesmo tão semelhante a pessoas do seu tempo, é a encarnação do próprio Deus (cf. Jo 1.14). Ele é mais do que os profetas, mais do que Elias, mais do que João Batista! Não basta ver em Jesus apenas uma conduta exemplar digna de ser imitada. Quanta gente hoje quer a divindade no céu, longe, distante, e Jesus apenas como o bom homem que introduziu uma ética que merece respeito e viveu em coerência com ela?
2) Não obstante, ele é levado às profundezas do sofrimento humano. Não bastasse a sentença de morte, claramente uma jogada política, ele carrega a cruz que será o fim de sua vida logo adiante. Ainda que até nessa caminhada se possa perceber a soberania do Filho de Deus, ela faz parte do cálice amargo de sofrimento e morte. Nada de sofrimento ou morte aparentes. O impacto deveria ser tão grande a ponto de termos que silenciar… Por que não um trecho de silêncio no culto (por favor, não o famigerado minuto de silêncio!) para se aperceber ao menos um pouco da dimensão desta cena?
3) Palavra de Jesus: Asseguro-vos que, se eles se calarem, as próprias pedras clamarão (Lc 19.40). O povo de Deus não é o arauto, o instrumento único para que o plano de Deus se torne conhecido e seja um desafio. Muito pelo contrário, a história deste povo é uma história de fracassos e rebelião contra o próprio Deus. Uma comunidade, uma Igreja que não mantém portas e janelas abertas para o mundo e o momento novo pode estar guardando apenas uma imagem fantasiosa de Deus. Pilatos não é de pedra, mas seu interesse seguramen-te era o poder político, tanto que ele foi empurrado para dentro do episódio em torno de Jesus de Nazaré. Mas, ironicamente, enquanto o povo corre atrás de um desejo, Pilatos acaba dando testemunho de Jesus e de seu papel universal. Ninguém tem um direito reservado em relação a Deus. Os outros — justamente os outros e diferentes — fazem parte do plano salvífico de Deus! E Deus costuma manifestar-se de formas diferentes do que os nossos projetos.
4) Deus está morto. Aleluia! Obediente até a morte (Fp 2.8), Jesus morre a morte dos desgraçados. Uma cena brutal, um fim brutal para quem. afinal, só queria o bem. Humanamente, e visto a partir daquela cena, temos o fim de uma pessoa e o fim de um projeto. Mas também aqui, nesta cena que é escuridão pura e não pode ser embelezada, brilha um sentido: Está consumado. Não há como equivocar-se: o plano de Deus está sendo cumprido de uma vez por todas (Hb 9.28)! A morte de Deus é o fim da finitude e o suportar da finitude. Ela aponta para a plenitude na efemeridade do tempo (Hegel, apud de Lazzer, p. 116).
5) As pessoas que estão sob a cruz não são apenas figurantes marginais. Muito pelo contrário, nas poucas palavras de Jesus àquelas pessoas se mostra que o que está consumado tem a ver com as pessoas concretas, com a gente. Todo o projeto salvífico são as pessoas, é a humanidade. Ela não precisa ficar perdida no meio das incertezas e do sofrimento. Ali, naquelas pessoas, um pequeno sinal: fazem parte do plano de Deus um novo relacionamento, um carregar as cargas uns dos outros. Na perspectiva do reino de Deus e na esperança de sua realização definitiva, o amor e a obediência de Jesus podem contagiar-nos a buscar nele a esperança que não se deixa deter nem pela morte. E quem não corre atrás de um ídolo fantasioso, mas se sabe envolvido pelo amor de Deus em Cristo (deste crucificado e morto!), terá olhos, pensamentos, gestos em favor de outros, se deixará remeter aos outros como pessoa e como comunidade.
4. Sugestões para o culto
O culto de Sexta-feira Santa não precisa ser lúgubre; o texto de João o mostra. Eu iria sugerir um culto sem a nossa liturgia usual, com muito canto, oração e momentos de silêncio meditativo. Onde se celebra a Santa Ceia esta poderia seguir os passos litúrgicos que estão em O povo canta (cancioneiro da Pastoral Popular Luterana [PPL]), p. 275-277. Se a comunidade não se anima a fazer preces livres, sugiro escrever algumas e distribuí-las já antes do culto.
Bibliografia
BULTMANN, Rudolf. Das Evangelium des Johannes. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1988.
KLING-DE LAZZER, Marie-Luise. Meditação sobre João 19.16-30. In: HÄRTLING, Peter (Ed). Textspuren. Stuttgart : Radius, 1990. v. l, p. 115-117.
KOCH, Ernst. Meditação sobre João 19.16-30. Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen, v. 45, n. 2, p. 177-184, 1991.
SCHÖNHERR, Albrecht. Meditação sobre João 19.16-30. Göttinger Predigtmeditationen, Göttingen, v. 39, n. 2, p. 194-199, 1985.
VOIGT, Gottfried. Meditação sobre João 19.16-30. In: ID. Der schmale Weg. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1978. p. 210-217.
Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia