Prédica: Apocalipse 5.11-14
Leituras: Atos 9.1-20 e João 21.1-14
Autor: Wilfrid Buchweitz
Data Litúrgica: 3º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 29/04/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
1. Introdução
A Páscoa passou. A Páscoa não passou. As duas afirmações são verdade. A Páscoa acontece na Páscoa. A Páscoa começa na Páscoa. A Páscoa continua depois da Páscoa. Cristo ressuscitou da morte. O Ressuscitado vive e viverá sempre.
Por isso a Igreja faz bem em continuar colocando diante de nós textos que enfocam cenas que levam a Páscoa para dentro da comunidade e do mundo. Às vezes, a gente comemora datas que duram um só dia e cujo conteúdo não consegue sobreviver até o amanhã. A verdade da Páscoa não é que o túmulo está vazio, mas que o Cristo que estava no túmulo vive, está aqui conosco e estará aqui sempre. Os três textos acima dão testemunho disso. O Ressuscitado vive e está aqui e está no mundo todo. Precisamos continuar a ouvir isso e a dizer isso. Porque às vezes é difícil de acreditar.
Na manhã da Páscoa, 23 de abril passado, o Jornal VS de São Leopoldo estampou na primeira capa uma foto de meia página, colorida, mostrando um índio jovem chorando, sentado no asfalto de uma estrada próximo a Porto Seguro e atrás e em volta dele botas e mais botas e a parte debaixo do fardamento de campanha de policiais militares, instrumentos de repressão. Uma foto absurda numa manhã de Páscoa.
Trabalhando a Páscoa num grupo de confirmandos, peço que façam dois desenhos, um em que impera a morte à nossa volta e outro onde acontece vida. Na cena de morte, nove de dez jovens desenham assassinato direto, onde uma pessoa mata outra com revólver ou faca. Não tinha me dado conta de que os jovens, e quem sabe não só eles, vêem a morte tão perto deles.
Uma jovem está apaixonada por um rapaz que ela mesma descreve como uma pessoa egoísta, arrogante e irresponsável. Quando pergunto se ela acha que poderá viver com o rapaz de maneira feliz e significativa por toda uma vida, ela me responde: Mas, pastor, a gente não casa mais por uma vida inteira. Hoje em dia ninguém mais se liga a uma pessoa por uma vida inteira, pastor.
Numa comunidade evangélica acontece uma cisão. Ela não aguenta a briga entre vários grupos que querem ser, cada um, dono da verdade.
De cinco milhões de índios no ano de 1500 sobram trezentos mil no ano 2000. Os outros ficaram no caminho por conta da política, da economia e da igreja, ou, ao menos, apesar da igreja. A violência campeia solta, e de muitas formas, à nossa volta. E nossas famílias são muito frágeis, e seu sentido tem conotação baixa. Nossas igrejas gastam tanto de suas forças umas contra as outras em vez de se juntar e se pôr a serviço do evangelho.
Há muita morte à nossa volta.
2. Os textos
Deus conhece este nosso mundo. Ele o experimentou em Jesus Cristo. E em Jesus Cristo venceu todos os tipos de morte. Criou a nova vida. Possibilita nova vida.
Por isso os textos colocam diante de nós o Ressuscitado que gera vida em três situações diferentes. Nós precisamos disso. Precisamos que a Palavra de Deus sempre coloque diante de nós o Cristo ressuscitado. Do contrário, o mundo com suas forças de morte nos vence. Por isso não se pode deixar passar fácil a festa da Páscoa. Não dá para passar a Páscoa e partir para outros textos e assuntos. Por isso continuam a nos ser propostos textos que trazem em si o Cristo ressuscitado.
Em João 21 nos são mostrados discípulos que ainda estão atordoados pelos acontecimentos da Sexta-Feira Santa, apesar de alguns deles terem vivido a manhã da Páscoa. Alguns discípulos até parecem ter voltado à antiga profissão de pescadores. Parecem querer fechar o parêntesis do tempo passado com Jesus e retomar a velha vida. Por isso Jesus mais uma vez precisa se manifestar para eles com sua presença, com sua Palavra e com gestos como a ordem de lançar as redes e pegar muitos peixes e de lhes alcançar pão e peixes, parecido com a Santa Ceia. Com isso o Ressurreto restaura ou renova a fé dos discípulos em meio a pavorosas experiências de morte. E a partir daí eles retomam e até assumem no lugar de Jesus o anúncio do Reino de Deus.
Em Atos 9, temos Saulo respirando ameaças e morte contra os discípulos do Senhor. E Saulo não é qualquer um. Ele tem cacife até para destruir a pequena comunidade assustada de Jerusalém e arredores. Por isso o Ressuscitado precisa derrubá-lo e faz dele um instrumento de sua causa. O Ressurreto derruba quem se põe no seu caminho, não importa o poder e o saber, e pode transformá-los em instrumentos de seu Reino, pode usá-los a favor de seu Reino. De instrumentos de morte transforma-os em instrumentos de vida.
Em Apocalipse 5, João presencia uma cena deslumbrante. Ali está o Ressurreto como Cordeiro sentado à direita de Deus Pai, Todo-Poderoso (Credo Apostólico). João fala em superlativos, e mesmo assim parece que as palavras não conseguem expressar o que ele assiste. Como que uma avalanche de personagens, de figuras, de caracterizações arrastam João na ânsia de comunicar à comunidade a sua visão.
O Ressurreto cumpriu sua missão. Ele está à direita do Pai e com ele tem o domínio pelos séculos e séculos (v. 13). Muitos anjos, os seres viventes, milhões e milhões e milhares de milhares dos anciãos e toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo que neles há, tudo, todo o universo, proclama glória ao Cordeiro ressuscitado e o adora.
Não é o imperador Domiciano (81-96 d.C.) em sua feroz perseguição aos cristãos que é senhor. Senhor é o Cordeiro, e não só do Império Romano, mas de todo o mundo. Não é Domiciano que merece adoração, mas o Cordeiro. Não é Domiciano que é o Kyrios, mas o Cordeiro. Esta é a mensagem animadora que João quer passar à comunidade da Ásia Menor, comunidade perseguida, fustigada e parte dela cansada e apavorada.
Do Cordeiro João diz que tinha sete chifres e tinha sido morto (v. 6). Com isso o Apocalipse atribui ao Cordeiro duas características, a da dignidade e do senhorio e a da humildade de Cordeiro que é sacrificado para remir o mundo do pecado (Lohse, p. 41). Humildade e poder são compatíveis. O Cordeiro é humilde a ponto de se entregar à cruz. Ao mesmo tempo, é digno e é Senhor do mundo e soberano sobre todos os poderes que existem no mundo.
Para a comunidade cristã da Ásia Menor, isso significa que o Cordeiro entende seu sofrimento porque passou por ele e que pode vencer o imperador Domiciano e todo o seu império.
3. Nossa realidade
As comunidades cristãs da Ásia Menor enfrentam uma perseguição cruel pelo imperador Domiciano, que exige adoração divina de todos os cidadãos do Império e que não admite o senhorio de Jesus Cristo. Isso traz um sofrimento indizível para as pessoas cristãs da época. Para dentro desse sofrimento João escreve e manda seu Apocalipse.
Qual é o mundo que o livro de Apocalipse e também Atos e o Evangelho de João encontram hoje?
Algumas coisas já foram ditas na introdução acima. Não temos uma perseguição declarada às comunidades cristãs. Mas temos sofrimentos, sim, que talvez causem tanta morte como a perseguição do imperador Domiciano.
Já mencionamos os povos indígenas. Mesmo os que sobrevivem têm a sua vida brutalmente diminuída. Invasão de seus territórios por garimpeiros, madeireiros, caçadores, fazendeiros, mineradoras, corrupção na FUNAI, cooptação de líderes dos próprios índios, desrespeito a suas culturas, desprezo a sua religião, provocam fome, doenças, divisão interna, insegurança, indignidade humana, morte. A data dos 500 anos da chegada dos europeus ao Brasil nos enseja a olhar de perto e de fornia sistemática.
Ao lado dos povos indígenas está a população negra do Brasil e que tem também uma história de injustiça e sofrimento dramático.
Mas também a grande maioria da população de origem europeia tem sua vida muito limitada por falta de condições de vida mínimas, com falta de emprego, saúde, habitação, educação, segurança.
Não temos um imperador Domiciano. Temos muitos imperadores domicianos, que disputam poder e fama e dinheiro. Não matam abertamente (alguns até fazem isso), mas extorquem a vida sutil-mente, apoiados ou não por leis que eles fizeram, diminuem a vida, sugam a vida da população pobre. Inclusive igrejas participam desse processo ou são coniventes com ele ou são omissas diante dele. No outro lado acontece uma tal concentração de fortunas, fama e poder, que também gera condições desumanas e que dificilmente possibilita vida saudável. Para dentro dessa realidade vamos ler e dizer os textos do Apocalipse, Atos e João.
Mas antes de fazer isso, vamos nos lembrar de que não é a primeira vez que levamos os textos para dentro de nossa realidade. Além dos anos 90 de Apocalipse e de hoje, ano 2001, muitos outros anos e muitas comunidades de outros tempos ouviram a mesma mensagem. E experimentaram a verdade de nossos textos. Creram no Ressurreto e experimentaram sua presença em suas vidas, comunidades e mundos. A Palavra de Deus através de João sustentou as comunidades da Ásia Menor. Domiciano não conseguiu destruí-las. Domiciano passou, e as comunidades ficaram. E assim continuou através dos anos e séculos. O Cristo Ressurreto edificou vidas e realidades de Reino de Deus, repartiu vida e ressurreição por toda a parte. Usou as igrejas para isso. Não é tão difícil identificar sinais de ressurreição na história. Onde Apocalipse, Atos e João são pregados, acontece ressurreição.
Isso também vale para a nossa época. Há inúmeros sinais de ressurreição e Reino de Deus e vida eterna à nossa volta. Basta abrir os olhos. O papa há poucos dias pediu perdão publicamente por pecados da Igreja. A Igreja Católica acaba de pedir perdão aos povos indígenas e à raça negra, em público, na TV A grande e, até agora, inacessível e auto-suficiente Igreja Católica pede perdão na TV Nunca tinha visto isso. Isso fortalece a esperança. Nossas igrejas evangélicas pedem perdão. As igrejas têm dificuldade de pedir perdão. Elas querem que seus membros peçam perdão. Elas mesmas não fazem muito isso.
Há experiências de ressurreição à nossa volta. Será que a gente não deveria exercitar mais nossa capacidade de identificar sinais do Reino? Não nos perdemos facilmente demais em lamúria e queixas? O Ressurreto continua fazendo milagres em nosso meio como fazia quando andava pelos caminhos de Jerusalém.
4. Algumas reflexões soltas
Algumas vezes estou tão atordoado como os discípulos com a realidade que cerca a gente, realidade que é muito forte e que de repente se torna predominante. O medo se torna mais forte que a fé, a dúvida vence a certeza, a razão quer ter a última palavra, a esperança fica frágil, a rotina sem muito conteúdo domina os afazeres, o cansaço toma conta.
Aí a gente precisa de textos como o de João e que ajudam. Melhor ainda se a gente pode compartilhar este texto fraternalmente com irmãs e irmãos na fé e na vida.
Quando leio o texto de Atos, ele me desperta para a constatação de que na igreja luterana temos dificuldade com a conversão. Alguns de nós ficam desconfortáveis quando ouvem a palavra conversão. Nossa base é o Batismo, e isso está certo. Mas também é verdade que muitos de nossos membros não são ajudados a integrar o Batismo em suas vidas e não aprendem a construir sua vida sobre o Batismo. A família não ajuda e a comunidade também não. E a vida não é determinada pela fé. A algumas pessoas o Ressurreto atinge em idade de jovens ou de adultos em cheio por um único versículo bíblico ou uma pregação em culto, e a vida de pessoas assim ganha outro sentido e transforma toda a família. Não deveríamos ganhar muito mais liberdade para com a conversão em nossas comunidades? Não deveríamos nos alegrar muito mais com elas? Claro, conversão não como obra minha, mas como obra da Palavra de Deus e do Espírito Santo. E relacioná-la com o Batismo. É verdade que também temos o outro lado. Temos pessoas que passaram por uma experiência de conversão e que a partir daí julgam todas as pessoas pelo critério de terem tido ou não uma experiência idêntica. E algumas pessoas negam a condição de cristão a quem não passou pela mesma experiência deles. A conversão de Saulo me fez perguntar se este assunto não deveria ganhar mais liberdade entre nós.
O texto de Apocalipse contém evangelho e contém lei. O evangelho é que o Cordeiro é Senhor do mundo e sustenta o Reino de Deus. E Ele nos inclui neste Reino por pura graça sua. A lei é que devemos viver este Reino e anunciá-lo ao mundo, que nós devemos ser instrumentos do Reino. Minha impressão é que quase sempre tentamos pregar as duas coisas em cada culto. Aprendemos a pregar o evangelho e a lei. Tentamos equilibrar a pregação. Não posso desligar o evangelho da lei, nem a lei do evangelho.
Mas eu gosto de administrar o equilíbrio às vezes de outra forma. Num domingo tento colocar o lado do evangelho do texto, com toda a radicalidade, e no outro domingo, a lei do texto, com toda a radicalidade. Estou escrevendo este auxílio homilético em abril de 2000, um ano antes que ele vai ser usado. Mas eu gostaria de pregar esta vez anunciando com muita força que a Páscoa não terminou, que o Cristo ressuscitado está vivo e que, assim como esteve com os discípulos e com Saulo e com João, está entre nós e que está presente em nossas vidas e em nossas comunidades e no mundo, que Ele está no meio de nós. Num outro domingo, eu pregaria sobre a dimensão da lei no texto. Temo que, se a gente sempre tenta equilibrar evangelho e lei, a gente possa diminuir a radicalidade dos dois. É claro que a comunidade precisa ser informada sobre isso ou precisa perceber isso.
5. O culto
Sugiro celebrar o culto na extensão da Páscoa. A Páscoa não terminou. A Páscoa continua. O Cristo ressuscitado está vivo. Encontrou os discípulos. Encontrou Saulo. Encontrou João e a comunidade da Ásia Menor. Encontrou Lutero. Encontra-nos. Está no meio de nós.
Proponho que nossa comunidade em culto basicamente se junte aos anjos, seres viventes, anciãos e às criaturas do mundo inteiro e com eles entoe as doxologias dos versículos 12 e 13 de Apocalipse, e que todo o culto teça variações em torno disso, que esse tema esteja presente na pregação, nas orações e nos hinos.
Sugiro que se cante muito, que a maioria dos hinos seja conhecida, que, se possível, haja um coral ou um grupo de canto ou um grupo de instrumentos ou mesmo uma ou duas pessoas guiando a comunidade nos hinos. Até podem ressaltar frases dos hinos relacionadas com o conteúdo dos textos.
Acho que as ideias para a pregação e as orações podem ser tiradas sem muita dificuldade das considerações anteriores. Hinos poderiam ser escolhidos entre os da lista que segue, todos do HPD (Hinos do Povo de Deus), com os respectivos números entre parênteses. Cada comunidade decide a ordem dos hinos a seu critério.
Com alegria e com fervor (60)
Cristo venceu a morte (67)
Glorioso dia já raiou (70)
Jesus Cristo é Rei e Senhor (95)
Deus é Castelo Forte e Bom (97)
Ó terras todas celebrai ( 238)
Alma, bendize o Senhor poderoso da glória (246)
Glorificado seja teu nome (253)
Nome sobre todo nome (264)
Mas também em outros hinários há hinos de ressurreição e absolvição.
Quanto à estrutura da liturgia, a comunidade deve decidir se usa a liturgia histórica, se usa uma das novas liturgias experimentadas na Igreja ou se elabora uma liturgia especial para este domingo.
Pensando numa liturgia especialmente elaborada, imagino que o texto poderia ser valorizado e a comunidade poderia ser ajudada no confronto com ele, na seguinte estrutura:
– Saudação e orientação sobre o culto
– Hino
– Leitura de Apocalipse 5.11-14
– Oração do dia
– Hino
– Breve relato ou testemunho de fé acerca da presença do Cristo Ressuscitado na vida de uma pessoa ou de uma família da comunidade. O relato deveria estar escrito e ser lido, breve. Nesta e nas leituras seguintes deveriam participar várias pessoas.
– Hino
– Leitura de João 21.1-14
– Hino
– Breve relato acerca da presença do Cristo Ressuscitado na comunidade, no estilo acima.
– Hino
-Leitura de Atos9.1-20
– Hino
– Breve relato acerca de sinais do Cristo Ressuscitado presente na vida e no mundo fora da comunidade, no estilo acima.
– Hino
– Espaço para manifestações da comunidade, onde ela vê sinais do Cristo Ressuscitado na vida, na igreja e no mundo, umas três pessoas.
– Hino
– Repetição da leitura do Apocalipse 5.11-14 (para voltar ao texto do início)
– Credo Apostólico
– Oração de intercessão
– Pai-nosso
– Bênção
Os relatos breves ficariam no lugar da prédica tradicional. Os relatos textos dos hinos poderiam reforçar a mensagem. Para isso se poderia motivar a comunidade a prestar atenção aos textos no início do culto ou na hora de começar os hinos.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. Meditação sobre Ap 5.1-14. In: KIRST, Nelson (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal 1981 v VII n 7-13. '
LOHSE, Eduard. Die Offenbarung des Johannes. 9. ed. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1966. (Das Neue Testament Deutsch, 11).
WEHRMANN, Günter K. F. Meditação sobre Ap 5.11-14. In: SCHNEIDER, Nélio, WITT, Osmar L. (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo • Sinodal, 1997. v. 23, p. 90-93.