Prédica: Atos 1.1-11
Leituras: Salmo 110 e Efésios 1.16-23
Autor: Manfredo Wachs
Data Litúrgica: Ascensão
Data da Pregação: 24/05/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
l. Composição do texto
Pablo Richard, na sua análise literária da obra de Lucas, afirma que o Evangelho e os Atos dos Apóstolos formavam originalmente uma única obra. Conforme sua reflexão, o relato de Atos 1.6 representa a continuação de Lucas 24.49. O texto teria a seguinte sequência: Olhem, eu vou enviar para vocês a promessa do meu Pai. Quanto a vocês, permaneçam na cidade até que sejam revestidos do poder do alto (Lucas 24.49). Os que estavam reunidos, perguntaram-lhe: Senhor, é agora que vais restabelecer o Reino de Israel? (Atos 1.6).
Segundo esta perspectiva, os v. 1-5 seriam um acréscimo posterior, ocorrido pela necessidade de interligar a segunda com a primeira obra, bem como de apresentar uma síntese do evangelho, demonstrando dessa forma que o livro de Atos é decorrência e continuidade da ação e dos ensinamentos de Jesus.
Em consonância com essa hipótese, Richard desenvolve uma análise quanto ao destinatário do livro de Atos: Teófilo. Ele apresenta dois argumentos: 1° – Teófilo é uma pessoa histórica do círculo de relações de Lucas, mas também conhecido pela comunidade apostólica. A segunda dimensão é uma interpretação simbólica realizada a partir da etimologia do nome, ou seja, amigo de Deus. Richard não argumenta contra a existência histórica de Teófilo, mas, ao simbolizar o nome, afirma que o livro está destinado a todas as pessoas amigas de Deus. Ele, dessa forma, universaliza o destino da obra de Lucas, sem, contudo, descaracterizar a historicidade do personagem Teófilo.
Kümmel, por sua vez, afirma que é insustentável a hipótese da unidade original Lucas-Atos e que dever-se-ia aceitar mais a unidade Lucas e Atos. O seu principal argumento é que as evidências da pesquisa concluem que Lucas foi considerado canônico muito antes do Atos.
John Stott, por sua vez, aponta para três dimensões que dificultam a sustentação da hipótese da unidade Lucas-Atos. Na perspectiva do relato do Evangelho, a ressurreição e a ascensão acontecem no mesmo dia, pois não menciona o período de 40 dias. A segunda dimensão se refere aos detalhes diferentes que aparecem em cada texto. Lucas menciona que Cristo ergue os braços para abençoar. O livro de Atos menciona a presença de dois varões vestidos de branco e que Jesus subiu aos céus encoberto pelas nuvens. A terceira dimensão refere-se à questão do local: o livro de Atos indica o Monte das Oliveiras, distante 1,1 km de Jerusalém, como sendo o local da ascensão, enquanto Lucas menciona a vila de Betânia, ao lado leste do monte, distante 4 km de Jerusalém.
Contudo, apesar de toda essa controvérsia, o livro de Atos e o Evangelho de Lucas devem ser entendidos como um único conjunto literário.
2. Divisão do texto
O texto pode ser dividido em duas partes. A primeira abrange os v. l a 5, e a segunda parte envolve os v. 6 a 11.
2.1. Retomando o passado: v. 1-5
Estes versículos iniciais indicam o interlocutor mais direto e pessoal do autor. Aqui não é pensado numa comunidade específica e nem numa coletividade, mas num interlocutor mais pessoal. Richard procura simbolizar o personagem histórico, Teófilo, e com isso dar uma dimensão de coletividade a um destinatário individual.
Lucas resume, aqui, o conteúdo do Evangelho, o qual pode ser sintetizado nas palavras: Tudo o que Jesus começou a fazer e ensinar … até o dia em que foi elevado para o céu. Os apóstolos garantem a continuidade da obra do Jesus ressuscitado. Para tanto, foram instruídos. A menção do período de 40 dias entre a ressurreição e a ascensão indica um tempo de longo preparo ou retomada da aprendizagem ocorrida. Poderíamos afirmar que, simbolicamente, estes 40 dias representam um período pedagógico de sistematização de uma formação já ocorrida.
As palavras instruções por meio do Espírito Santo aos apóstolos que ele havia escolhido apontam para a ação do Espírito Santo. Esta pode referir-se tanto à instrução quanto à escolha dos apóstolos ou até às duas ações ao mesmo tempo. Com isso poderiam ocorrer duas interpretações: 1) a instrução dada por meio do Espírito Santo aos apóstolos escolhidos por Jesus; 2) ou a instrução dada por Jesus aos apóstolos que o Espírito Santo ajudou escolher. Em todos os casos, na linha de pensamento da análise de Richard pode-se afirmar que há uma unidade de ensinamento e ação entre Jesus e o Espírito Santo. A ascensão não seria, portanto, a interrupção da ação de Jesus para o início da ação do Espírito Santo.
Em relação aos v. 3-5, podem-se apontar dois destaques: 1) Jesus está vivo corporalmente. Essa dimensão procura reforçar o caráter da historicidade da existência de Jesus. 2) Nos 40 dias, Jesus fala aos discípulos sobre o Reino de Deus. Podem ser relacionados com os 40 anos de peregrinação no deserto. Indiferente se o número é um dado real ou possui uma dimensão simbólica, ele significa um período longo de preparação e instrução. Muito mais do que a análi¬se da historicidade ou não do número, é mais importante dar destaque ao aspecto da instrução. Estes dois destaques podem estar caracterizados por uma dimensão simbólico-mítica. Através dessa caracterização, muitas vezes, procura-se relativizar o fato e diminuir o seu caráter histórico. Entretanto, devemos compreender que os símbolos-mitos são sempre históricos, pois são sempre representações históricas.
2.2. Estratégia de Jesus: v. 6-11
O grupo de apóstolos reunidos é o descrito por Lucas 24.49: os onze e os demais. É este grupo que recebe a instrução e que, reunidos em comunhão e oração, escolhe o sucessor de Judas Iscariotes. Ocorre, aqui, uma verdadeira assembleia dos seguidores de Jesus. Conforme a análise de Pablo Richard, o texto especifica com clareza quem são as pessoas que estavam reunidas com os onze: a) Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago, e as outras mulheres que estavam com elas; b) os dois discípulos de Emaús, que tinham retornado a Jerusalém; c) Maria, mãe de Jesus, e seus irmãos. Estes recebem instrução, mas também o Espírito Santo.
O grupo dos onze e os demais reconhece Jesus, após a sua ressurreição. Há uma relação de comunhão entre Jesus e os discípulos e as discípulas. Jesus conserva sua identidade e corporalidade após a ressurreição. Jesus ressuscita em nossa história. Com a ressurreição e o período de instrução há uma continuidade da obra de Jesus. Ao mesmo tempo, há uma descontinuidade com a sua ascensão, não, contudo, uma ruptura. A ascensão não deve ser entendida como se Jesus tivesse ido embora, mas como a sua exaltação e glorificação.
3. Aspectos temáticos
Em termos de sugestões para a reflexão do culto, gostaria de apontar para quatro blocos temáticos que poderiam ser desenvolvidos.
3.1. Ascensão
A compreensão do conceito de ascensão de Cristo nos ajuda a entender o significado da Santa Ceia. Na compreensão católica e calvinista, o termo céus é um local geográfico nas alturas, para onde Cristo subiu e onde permanece sentado à direita de Deus, observando o mundo. Na compreensão de Lutero, o céu não é um local geográfico, mas o lugar onde Cristo se encontra e a sua palavra é pregada e vivenciada. Por isso, na ascensão, Jesus não subiu ao céu, mas passou a estar em todo o mundo ao mesmo tempo e, dessa maneira, ele permanece em nosso meio.
Na compreensão católica de Santa Ceia, o pão (hóstia) e o vinho são transformados em corpo e sangue de Jesus Cristo. Para que seja possível essa transformação, é necessário que Cristo desça do céu e se faça presente através de um novo sacrifício. Ao levantar a hóstia e o cálice do vinho, o sacerdote traz Cristo de volta à terra.
No conceito calvinista, no momento da Santa Ceia, os comungantes são elevados às alturas para ter comunhão com Cristo, pois, ao contrário do conceito católico, Cristo não retorna à terra. Neste pensamento, a Santa Ceia acontece somente em espírito e distante do mundo, ou, então, teríamos que chamar Cristo de volta à terra e transformar o lugar da Santa Ceia num pequeno céu, num lugar santo. Lutero afirma que, na ascensão, Cristo não se ausentou do mundo, mas está presente em todos os lugares. A sua presença é invisível, mas se concretiza na comunhão da Santa Ceia. A Santa Ceia, na concepção de Lutero, acontece no mundo e leva em conta os sofrimentos e alegrias do dia-a-dia.
Esta compreensão de ascensão tem ligação direta com o entendimento de parusia e de Reino de Deus. Considerando que, a partir da ascensão, Cristo não se ausentou do nosso meio, mas está presente entre nós de forma não corporal, a parusia não se refere a uma segunda vinda milagrosa de Cristo, surgindo no meio das nuvens ou através de algum outro fenômeno da natureza, mas à concretização do Reino de Deus através da pregação do Evangelho e do nosso testemunho. Como Cristo poderá voltar, se ele não está ausente? Portanto, entendendo aqui a parusia, nesta perspectiva da ascensão, como a concretização dos sinais do Reino de Deus, através da comunhão plena com o Cristo que está presente na Santa Ceia, através dos gestos de solidariedade, da manifestação em favor da paz e da justiça, mas principalmente na proclamação do Evangelho.
3.2. Dimensão educacional
Na dimensão educacional, gostaria de refletir sobre dois aspectos: 1) o período de preparação e 2) a promessa do Espírito Santo.
Em relação ao primeiro aspecto, Pablo Richard desenvolve uma simbolização do período de 40 dias. Richard não entra na discussão se esse período é realmente uma data cronológica ou não, pois reflete mais sobre o seu significado do que sobre o dado histórico. Ele aponta para o fato de que este período representa um longo tempo de preparação e instrução, assim como os 40 anos no deserto.
Segurando a ideia da longa preparação, podemos fazer um gancho com a dimensão educacional e resgatar o conceito de catecumenato permanente. Ou seja, o processo de aprendizagem acontece no decorrer de toda a vida, em todas as novas situações e perguntas existenciais.
Nos processos de formação educacional e profissional, percebe se, tanto na filosofia metodológica dos formadores/educadores quanto na interação da aprendizagem dos educandos, uma dificuldade de assimilar a ideia de formação contínua. A consequência disso é que se deseja que o estudante, ao terminar um curso, saiba tudo. Isto também se aplica aos processos de aprendizagem na comunidade. Por exemplo, no ensino confirmatório ele precisa aprender toda a doutrina da Igreja. Desconsidera-se o fato que no decorrer da vida surgem outras perguntas para as quais não se tinha dado anterior-mente as respostas. Também não se considera a perspectiva de que a vida é dinâmica e, portanto, a reflexão não pode ser estática.
Diante disso, me vem a pergunta: Como entendemos a nossa tarefa educacional nas comunidades? Ou quem são as pessoas envolvidas nessa tarefa? Como organizamos as diversas atividades e tarefas educacionais da e na comunidade?
No segundo aspecto, gostaria de resgatar a análise exegética de os onze e os demais e relacionar com a dimensão educacional. A promessa do Espírito Santo não foi dada somente ao grupo seleto dos onze e mais o substituto, mas a todos os ouvintes e participantes da ação e ensinamento de Jesus.
Já mencionei acima a análise sobre os onze e os demais. Pre¬tendo aqui resgatar a dimensão educacional. O ministério do ensino, da missão, é de toda a comunidade, e não somente de um grupo seleto de pessoas instruídas. A bênção não é aqui entendida como uma ordenação que confere um caráter jurídico de atividade profissional, mas a promessa do comprometimento de Deus com a pessoa que vai exercer o seu ministério, que vai vivenciar o Evangelho, que vai ser testemunha da Palavra de Deus. É uma promessa assegurada a toda a comunidade reunida em torno da Palavra de Deus.
Diante de um mundo cada vez mais solitário, onde as pessoas estão abandonadas à sua própria sorte, essa promessa tem um significado tanto psicológico quanto educacional. A presença do Cristo ausente corporalmente não é sinal de controle, de vigilância, mas de braço amigo que sustenta. Ou podemos relacionar à metáfora do corrimão que ajuda as pessoas a percorrerem um caminho difícil.
3.3. Sereis minhas testemunhas
O v. 8 afirma: e sereis minhas testemunhas. O verbo pode ser entendido tanto numa dimensão do imperativo quanto do indicativo. Ambas podem ser compreendidas como decorrência do ensino e da promessa do Espírito Santo. Contudo, gostaria de refletir sobre as implicações dessa afirmação.
Num determinado grupo se refletia sobre os caminhos da Igreja e a sua relação com a confessionalidade. Uma das teses apontava o seguinte: nos sobra formação confessional, mas nos falta convicção. Às vezes, nos confrontamos com pessoas de movimentos religiosos que demonstram com clareza a sua convicção. Às vezes, os chamamos de fanáticos, alienados… Nós, contudo, talvez tenhamos uma boa teologia e nos falta firmeza carregada de humildade.
Entretanto, como ser testemunha num mundo cada vez mais complexo, onde o paradigma da sobrevivência prevalece sobre o princípio da justiça, da ética, da paz e da solidariedade? Estamos entrando num período em que a postura ética vai prevalecer so-bre a competência do profissional na seleção de emprego. A credibilidade da pessoa será tão importante quanto a formação de qualidade do profissional, ou mais importante do que ela.
Aqui, no meu entender, deveria transparecer o nosso diferencial: O que significa ser testemunha nessa situação? Não o entendo numa dimensão de ficar usando constantemente a palavra Jesus ou citar, seguidamente, um versículo bíblico, mas encarnar o Evangelho, transpirar através do suor o testemunho. É claro que essa dimensão não é um objeto cognitivo, que se transfere de uma mão para outra, é uma vida de sabedoria e de discernimento.
3.4. Cristo presente
No contexto de vida urbana aumentam cada vez mais os sentimentos de isolamento e insegurança, provocados pela instabilidade da vida, mas principalmente pela violência urbana. As pessoas se sentem cada vez mais frágeis e, ao mesmo tempo, desconfiam umas das outras. A comunhão e a solidariedade estão cada vez mais ameaçadas. Esta situação afeta não somente as relações sociais, mas lambem a estrutura emocional e psíquica das pessoas.
Creio que a compreensão de ascensão, como a presença de Cristo em nosso meio de forma não corpórea, pode nos auxiliar na reestruturação das nossas relações. Não penso numa dimensão de alienação, onde Cristo está comigo e nenhum tiro me acerta. Entretanto penso, numa perspectiva idêntica à de Lutero, que escrevia, nas situações de medo e perigo, em sua mesa e em qualquer outro lugar: sou batizado. Esta convicção de que Cristo está comigo – sou aceito por Deus lhe deu forças para enfrentar os poderes estatais e eclesiais e permanecer fiel à sua convicção. Esta mesma convicção deveria nos auxiliar a enfrentar os perigos e ameaças à vida digna.
4. Pistas para a prédica
Resumindo: acredito que a pregação deste texto poderia trilhar quatro caminhos distintos, que, contudo, não são excludentes:
– Uma pregação de cunho mais teológico, onde se procuraria explicar o significado de Ascensão.
– Uma dimensão mais educacional, onde se procura dar destaque à importância da aprendizagem contínua dos conteúdos da fé.
– Dimensão da confessionalidade e a perspectiva de ser testemunha no contexto da atualidade.
– Ascensão significa que Cristo está comigo e me dá forças para enfrentar os perigos da vida.
Bibliografia
FRANK, Valdir. Meditação sobre Atos 1.1-11. In: STRECK, Edson, SCHNEIDER, Nélio (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1994. v. 20, p. 155-159.
KÄLLSTEN, Delcio. Meditação sobre Atos 1.1-11. In: STRECK, Edson, SCHNEIDER, Nélio (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1994. v. 20, p. 159-163.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo : Paulinas, 1982.
RICHARD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição : uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. Trad. José Afonso Beraldin. São Paulo : Paulinas, 1999.
STOTT, John R. W A mensagem de Atos : até os confins da terra. São Paulo : ABU, 1994.