Prédica: Colossenses 1.1-6
Leituras: Deuteronômio 30.9-14 e Lucas 10.25-37
Autor: Antônio C. Ribeiro
Data Litúrgica: 8º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/07/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
1. Introdução
O mundo está cheio, cheio de Deus. Em todas as travessas, diante de tua porta encontras Cristo… Ouve, ó homem miserável:
Se queres servir a Deus, tu o tens em tua casa, em tua criadagem e em teus filhos… Consola os vizinhos aflitos e doentes; ajuda-os com teus bens, tua sabedoria, teus conhecimentos; não demitas logo de tua casa os teus empregados e tuas empregadas, se estiverem doentes; com eles pões Cristo na rua. Não ouves Cristo dizer que aquilo que fizeste a um dos pequeninos, ele quer aceitá-lo como se o fizeste a Ele… Ouve o que eu te digo: se me queres amar, se queres fazer um favor que me alegre, então ajuda os pobres com tudo quanto queres que seja feito a ti, se estiveres tão necessitado; assim realmente me amas… Eu quero ficar bem perto de ti, em cada ser humano pobre que necessita de tua ajuda e de teu ensino; eu estou bem dentro dele (Martim Lutero – prédica sobre Mt 22.34-40 – 1526).
O texto de hoje é apenas uma saudação, enviada aos membros de uma comunidade minúscula da Ásia, com quem Paulo sequer teve contato pessoal. Mas o significado do conjunto de sua carta está na reação à pregação que semeou joio em meio ao trigo. Paulo demonstrou habilidade para reafirmar os valores centrais da fé cristã, procurando evitar o confronto direto com os que estavam movidos por aquelas ideias.
A fé cristã é essencialmente prática, responde às necessidades espirituais do ser humano neste mundo. A teologia cristã é um instrumental de busca. Se ela não partir da realidade e a ela não retornar, não merece esse nome.
2. Contexto e ambiente
A Carta aos Colossenses vai ao encontro dos cristãos da cidade de Colossos, da província romana da Ásia, localizada a 16 km do vale do Lico, às margens da estrada de Éfeso para o Oriente e próxima de Laodicéia e Hierápolis (Cl 4.13). Essas comunidades devem ter sido criadas pelo trabalho de evangelização do próprio Epafras (Comblin, p. 9). A cidade foi quase inteiramente destruída num lerremoto em 61 d. C., juntamente com Laodicéia e Hierápolis, mas estas foram reconstruídas. Esse fato inclina a pensar que a epístola deve ter sido escrita antes.
O fato de ser uma região vulcânica pode explicar seu desaparecimento (Champlin, p. 72). A fertilidade dessa região, as excelentes ovelhas e as qualidades químicas dos riachos, aproveitáveis para a tinturaria, eram responsáveis pelo comércio de lã tingida e dos pigmentos, responsáveis pelo seu sucesso económico (Champlin, p. 80). Essa é a razão de Xenofonte tê-la chamado de cidade habitada, próspera e grande, ao descrever a marcha de Ciro (Lohse, p. 8). Apesar disso, essa cidade perdeu sua proeminência ao longo do tempo. Em nossos dias, essa região é a Turquia, e o local onde existiu a cidade de Colossos está desabitado.
Mesmo que Paulo nunca tenha estado pessoalmente em Colossos, dedicou-lhe especial atenção nesses escritos e não relutou em legitimar o trabalho feito por seu auxiliar Epafras e por líderes como Árquipo, Afia e o próprio Filemom.
Outra questão é sobre o tempo e o lugar de composição da carta. O texto menciona que Paulo está preso, fato sempre relacionado com 2 Co 1.8-9, em que fala da tribulação da Ásia, acima das forças, a ponto de desesperar. A alternativa de Roma é mais remota e baseia-se no silêncio do livro de Atos sobre esse fato. Por outro lado, Éfeso conta com o argumento de Onésimo ter sido mandado de volta ao antigo dono com uma carta de recomendação na mão (Filemom). É mais razoável que o escravo fugido tivesse chegado a 200 km de onde morava. Explicar sua presença em Roma suporia uma longa viagem por mar. Ademais, a Carta aos Colossenses parece ter procedido do mesmo lugar que a Carta aos Efésios.
3. Análise do texto
O texto responde a uma demanda entre Epafras e os que passaram a anunciar uma filosofia, que instabilizava a fé desses novos cristãos. A palavra filosofia é aplicada aqui em sua compreensão na antiguidade, como uma doutrina sobre o mundo que trazia uma explicação religiosa, não se sabe se baseada no mundo pagão ou no mundo judeu. Não se tem uma noção exata do que essa doutrina ensinava, mas o que é chamado de gnosticismo, por alguns comentaristas, deve corresponder a algum sistema judaico não-ortodoxo.
O fato é que a doutrina faz referência a potências, soberanias, em que alguém exerce o poder, a primazia e a plenitude. Uma espécie de divindade que exerce um papel no mundo, reconhecido por meio de um sistema religioso expresso em forma de ritos, liturgias, preceitos e observâncias religiosas. A pregação anunciava ainda que os seguidores teriam conhecimento, revelação e alguns dos atributos da divindade.
Esse fato criou a urgência que levou o apóstolo, a quem os Colossenses não conheciam diretamente, a dirigir-se a eles. O texto da nossa perícope se limita à saudação. O pré-escrito (Cl 1.1-2) tem os três elementos comuns das cartas paulinas: o autor, os destinatários e a saudação. A saudação usada habitualmente pelos judeus era 'Paz!' (shalom) ou, mais comumente, 'Misericórdia e Paz!' (cf. 2 Bar 78.2). A forma 'Graça e Paz' é caracteristicamente paulina: ambos os temas têm sua completa força cristã (Bruce, p. 39). Outro exegeta chega a enfatizar que ocasionalmente nas cartas judaicas alguém acha misericórdia ('éleos) junto a outra palavra, assim como paz (eiréne), mas nunca 'graça' (caris) (Lohse, p. 5).
Não há evidência de que sua autoridade apostólica tenha sido desafiada em Colossos, mesmo assim ele a menciona para refutar esse ensino que entrou na vida da igreja de lá. Timóteo é mencionado no texto como um irmão. Ele pode ter servido como um amanuense de Paulo, mas sua influência devia extrapolar essa função, para receber menção no pré-escrito.
Paulo afirma que dá graças a Deus quando ora incessantemente pelos colossenses (v. 3). Ele o faz porque já ouviu da sua fé em Cristo Jesus e do amor que nutrem para com outros cristãos. Há quem veja aqui o testemunho da participação dos colossenses na grande coleta em prol dos pobres da comunidade de Jerusalém. A descrição que ele recebeu indica não somente que Cristo Jesus é o objeto de sua fé, como que ele é o ambiente vivo no qual sua fé é exercitada (Bruce, p. 41).
O relato sobre a fé e o amor é motivo de ação de graças. O fato de não conhecer essa comunidade o faz confiar unicamente no relato que recebeu. A esperança expressa por essa gente, que resultou do anúncio da Palavra, será recompensada. A palavra esperança, junto com fé e amor, forma a tríade familiar aos escritos paulinos. A salvação, já experimentada pelos cristãos no presente, tem um aspecto futuro: está preservada nos céus (v. 5). Essa esperança, vivida por eles no aqui e agora, é o fundamento da fé que gera a confiança de que a palavra da verdade está produzindo fruto e crescendo.
Para Paulo, o evangelho está experimentando vitórias. Mesmo sendo apenas umas poucas comunidades, de algumas dezenas de pessoas, sequer percebidas no meio do imenso Império Romano. Apesar da sensação de indizível insignificância, Paulo é firme ao anunciar o evangelho que conquista e está ativo no mundo inteiro.
4. Meditação: fé expressa no dia-a-dia
O cristianismo nos ensina a viver a fé, introduzindo o crente numa comunidade e, através desta, ao povo de Deus. A fé não encontra chão no individualismo, nem no isolamento e nem no diletantismo descolado da realidade, mas no dia-a-dia das pessoas que a vivem em Cristo, através dela entram na vida da comunidade e em seu nome assumem compromissos.
Jesus não foi uma pessoa ensimesmada, que amava divagar sobre o além e cultivar o seu próprio mundo, a despeito do mundo real. Foi um ser corporal, com quem os circunstantes tiveram contato físico, que enfrentou problemas deste mundo e assumiu ultimamente os dilemas humanos de sua existência e das pessoas à sua volta. Não falou da comunhão com Deus como uma fuga para um mundo etéreo e incontrolável. Por isso a fé não serve como refúgio nem como fuga deste mundo, como ensinavam as religiões pagãs.
Os pagãos, que idealizavam o mundo, podiam desprezar o corpo, anunciar um mundo supostamente superior e celeste e identificar o humano como terreno e inferior, É como as pessoas que não têm problemas financeiros, que podem se dar ao luxo de distinguir o material do espiritual, o humano do divino e a realidade deste mundo da descrição utópica do céu, como lembrou Jaci Maraschin ao meditar sobre a expressão coisas visíveis e invisíveis, do Credo Niceno-Constantinopolitano.
O cristianismo fez, desde as origens, o caminho inverso. Ao invés de descrever o que não pode ser verificado, a fé cristã sempre exigiu compromissos morais diante da realidade, lutou para transformar a pessoa que vive por fé e as condições objetivas de existência. Quando Paulo fala de Cristo no correr da carta, quer lembrar que Ele é a negação do ensino que apareceu em Colossos: Ele assumiu sua humanidade, realizou seu ministério, não fugiu à cruz. Como descreveu com clareza Comblin: Cristo é corporal por dois lados: porque tem um corpo que morreu na cruz, e porque este corpo é a comunidade concreta dos colossenses, e todas as comunidades em que se realiza a Igreja, a assembleia total do povo de Deus (p. 22).
Quem não é capaz de assumir os compromissos como cristão neste mundo entra pelo caminho fácil da elucubração não-verificável, foge para o etéreo por causa do medo de defrontar-se com o mundo real, precisa do desconhecido que legitima a atitude fugaz. Ao escrever a Carta aos Colossenses, Paulo os chama de volta à razão: apresenta-se, fala de Timóteo, Árquipo, Afia e Filemom, seus auxiliares, diz que rende ação de graças e ora por eles, que ouviu sobre o seu testemunho e que tem esperança que o evangelho frutifique lá, como acontece em outras partes.
Habilidoso, Paulo não os ofende, não violenta com as palavras e nem rotula a sua prática, mas apresenta o evangelho puro. Pés no chão, ele rejeita a fé que só tem palavras. A fé cristã é histórica, ela deita raízes na vida de homens, mulheres e crianças concretos, que trabalham, sofrem e lutam para construir uma existência comunitária com sentido neste mundo.
O que distinguia o ensino de Jesus do pensamento rabínico e farisaico é que ele se tornou prático, voltado para o dia-a-dia. Do templo de Jerusalém esse ensino ganhou as estradas poeirentas da Palestina, especialmente da paupérrima Galiléia. Começou dando alegria à gente pobre das bodas de Caná e continuou se transformando em atendimento a todo tipo de exigência dos doentes, fracos, paralíticos, cegos, surdos e endemoninhados de então.
O Cristo dos evangelhos não é o Cristo da glória, mas o da cruz. O evangelho de Paulo aos Colossenses não se perde nas potestades, soberanias e ritos, mas anuncia o Cristo que nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados (Cl 1.13-14). Por esse Cristo, Paulo assume os sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a Igreja; da qual me tornei ministro (Cl 1.24-25).
5. Subsídios litúrgicos
Cânticos: Vem, Espírito de Deus (O povo canta [OPC], p. 206); Quando o Espírito de Deus soprou (OPC, p. 220); Hinos do Povo de Deus (HPD),no 76, 101.
Intróito: Neste 8o Domingo após Pentecostes comemoramos mais uma vez o aniversário da Igreja cristã. Neste Pentecostes, o Espírito enviado do Pai e que revela o Cristo nos quer animar a ser Igreja hoje. Nós o invocamos, porque não podemos fazê-lo a partir dos nossos próprios méritos. Neste culto, pedimos que Ele nos dê as forças e as condições necessárias para viver e testemunhar a fé em Cristo.
Reunimo-nos aqui em nome e na presença do triúno Deus. O Deus que é Pai e nos ama com amor de Mãe, o Deus que é Filho e em Jesus Cristo se fez pessoa humana como nós, e que é Espírito e nos guia à Verdade e dá forças para lutar pela Justiça. Amém.
Confissão de pecados: Senhor, temos pecados a confessar. Pecados concretos, que nos impediram de alcançar o teu propósito em nossa vida. Nossos medos, cujas consequências atingiram outras pessoas, degradaram tua imagem em nós e nas pessoas a quem ofendemos. Não queremos banalizar nosso erro porque não nos interessa um perdão também banal. Queremos confessá-los com a comunidade reunida, porque então é que nos sentimos parte do teu corpo e, mesmo com todas as dores, sei que ela instrumentalizará teu perdão e tua graça. Livra-nos da esquizofrenia das aparências. Ajuda-nos a redescobrir a confissão como o caminho para teu perdão. Queremos ser pecadores arrependidos e não santos blasfemadores. Pelo Cristo, pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
Palavra de absolvição: Perdão para nós hoje foi o anunciado por Pedro no discurso no templo: Arrependei-vos, pois, e convertei-vos para serem cancelados os vossos pecados, a fim de que da presença do Senhor venham tempos de refrigério, e que ele envie o Cristo, que já vos foi designado, Jesus. (At 3.19-20.) Sigamos confiantes nesta palavra. Amém.
Bibliografia
BRUCE, F. F. The Epistles to the Colossians, to Philemon and to the Ephesians. Grand Rapids : Eerdmans, 1984.
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo : Milenium, 1980. v. 5.
COMBLIN, J. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filemon. Petrópolis : Vozes / Metodista / Sinodal, 1986.
DODD, C. H. A mensagem de S. Paulo para o homem de hoje. Trad. A. Macintyre e J. R. Vidigal. São Paulo : Paulinas, 1978.
LOHSE, E. Colossians and Philemon. Trad. William R. Phoelmann e R. J. Karris. Philadelphia : Fortress, 1971.