Prédica: João 2.1-11
Leituras: Isaías 62.1-5 e 1 Coríntios 12.1,4-11
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 2º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 14/01/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
1. Questionamentos
O texto em apreço, já trabalhado nesta série por Walter Altmann (PL v. IX, p. 41-49) e por Heinz Ehlert (PL v. XX, p. 44-49), confronta a prédica com algumas dificuldades:
a) A transformação de água em vinho por Jesus, num casamento em Cana, é um dos milagres mais maciços do Novo Testamento. Desafia a mentalidade científica e faz suspeitar de sua verdade.
b) O milagre não está a serviço de nenhum fim social. Não cura, não ajuda. Parece estimular, antes, a farra numa festa, fornecendo um dos perigosos ingredientes da mesma que é a bebida alcoólica.
c) Estranha é também a maneira de Jesus tratar a sua mãe. Mulher, que tenho eu contigo? (v. 4). Maria chama a atenção para a falta de vinho. Crê que seu filho seja capaz de achar uma saída do impasse. Mas para Jesus a intervenção de sua mãe parece ser antes atrevimento, muito embora logo mais fosse corresponder à expectativa.
d) Conforme João, o milagre em Cana foi o primeiro dos sinais através dos quais Jesus manifestou sua glória (v. 11), fazendo com que seus discípulos cressem nele. A fé precisa de comprovantes? Alguns capítulos adiante vamos ler a palavra de Jesus que diz: Bem-aventurados os que não viram, e creram (20.29). Como compreender?
A prédica não pode tratar dessas perguntas exaustivamente. Mas deverá tê-las em mente e oferecer resposta no mínimo implícita. O que importa é a questão central, que, por sobre o específico, não deve ser perdida de vista. Ela se articula no v. 11 e diz respeito à manifestação da glória de Jesus, em razão da qual os discípulos creram. Como acontece isto hoje? Como se descobre essa glória que conduz à fé?
2. Subsídios exegéticos
a) A presença de Jesus numa festa de casamento documenta a encarnação: o Verbo feito carne participa da vida social das pessoas. Ele habitou entre nós. Levou vida normal. Ainda assim, esta vida está repleta de sinais que revelam sua glória. A comunidade é testemunha disso. O texto 2.1-11 desdobra o versículo 1.14.
b) O episódio tem lugar em Cana da Galiléia, aldeia situada 6 km ao norte de Nazaré e idêntica à localidade chamada hoje Chirbet Kana. De lá é natural o discípulo Natanael (21.2). Nos evangelhos sinóticos, Cana não é mencionada.
c) Festa de casamento no judaísmo antigo costumava durar toda uma semana. A escassez de vinho, pois, não espanta, ainda que fosse constrangedora para o anfitrião.
d) A mãe de Jesus, ao perceber o embaraço, atua como protótipo da pessoa que crê. Mesmo sendo rejeitada num primeiro momento, insiste em obediência a Jesus: Fazei tudo o que ele vos disser (v. 5). Ela não duvida, ela confia. Maria, nesta passagem, aparece não tanto como mãe, e, sim, como discípula de seu filho. É uma dos que nele creram. Isso explica o trato que Jesus lhe dá. Ele não peca por falta de respeito. Mas ignora os laços familiares.
e) O ser humano pode dirigir-se em prece a Jesus, como o fez Maria. Entretanto, Jesus está sujeito a outra instância. A resposta, dizendo que ainda não chegou a sua hora (v. 4), indica isso. Maria não dispõe de seu filho. Não cabe ao ser humano fixar horários e prazos para a ação de Deus. Permanece na dependência de sua graça.
f) As seis talhas de pedra que os judeus usavam para as purificações (v. 6) são enormes jarros com capacidade de 80 ou 120 litros cada qual. A quantidade da água transformada em vinho sublinha a extraordinariedade do milagre, que, aliás, não é descrito e, sim, apenas constatado (v. 9).
g) Também a surpresa do mestre-sala tem essa finalidade. A qualidade do vinho supera a do consumido anteriormente. O costume alegado pelo mestre, a saber, que o vinho bom é servido antes do ruim (v. 10), não pode ser comprovado na Antiguidade. A reclamação tem sentido antes irónico. O que interessa neste texto é a excelência do produto da transformação.
h) O milagre, conforme pretende o evangelista, é sinal. Não quer ser contemplado como fenômeno em si. Quer ser visto em sua transparência para a glória do próprio Jesus (v. 11). Todos os convidados da festa podiam provar o vinho tão maravilhosamente produzido. Mas somente os que creram em Jesus viram o essencial, o realmente importante. O milagre em Cana tem profundo significado. Exige uma interpretação não fatual, e, sim, simbólica.
3. Reflexões teológicas
a) O texto celebra a epifania de Deus em Jesus Cristo. A prédica que o toma por base está bem localizada no ano eclesiástico, portanto. Epifania significa revelação. O fenómeno é comum na história das religiões. Peculiar do testemunho cristão é a concentração da epifania de Deus na pessoa de Jesus. Nele a glória de Deus veio manifestar-se. Aliás, não é o milagre que a revela. Milagres são ambíguos, suscetíveis de diversas interpretações. Não produzem a fé. A glória de Jesus está no Verbo de que é portador. A história das bodas de Cana é testemunho disso. Se ela aconteceu assim como transmitida, não interessa. A fé não depende do que as pessoas julgam ser possível. O que importa mesmo é a mensagem da qual o texto é veículo. Qual é?
b) Seria simplório enxergar o escopo do trecho na ajuda que Jesus dá em situações melindrosas da vida. Jesus socorre, é verdade, como os evangelhos sinóticos não se cansam de destacar. Mas, em Cana, o objetivo é outro. Não se trata de garantir o desenrolar perfeito de uma festa. Na mira está a glória de Jesus, não o embaraço humano.
c) Bem mais importantes são as numerosas metáforas contidas no texto. As bodas são imagem comum para a plenitude escatológica (cf. Mc 2.18,19; Mt 22. l-14; etc.), o vinho é símbolo da alegria celestial, Maria e os discípulos representam a comunidade cristã e a transformação da água em vinho tem na Santa Ceia notável correspondência. Mas a interpretação alegórica dificilmente faz jus às intenções últimas do evangelista. O simbolismo do texto não se prende aos detalhes.
d) É verdade, isto sim, que o texto está repleto do espírito escatológico. Jesus não só participa da alegria humana. Ele a potência. Da vinho, ou seja, dá prazer à vida. Em analogia a outros ditos em João, poderíamos até dizer: Jesus é o vinho da vida. Faz com que esta seja gostosa. Confere-lhe algo de festivo. É um aspecto destacado com bons motivos por muitas meditações. Festejar é necessário. A alegria é ingrediente do Reino de Deus (Rm 14.17). É força para resistir aos desgastes e aborrecimentos do dia-a-dia. João alerta para a necessidade da alegria na vida das pessoas e da Igreja. A água transformada em vinho é símbolo da alegria que Jesus, e só ele, é capaz de dar.
e) Aspecto altamente digno de menção decorre do parentesco desta história com a lenda de Dionísio, respectivamente Baco, o deus do vinho na Antiguidade. Atribuía-se também a ele o poder da transformação de água em vinho por ocasião da festa em sua homenagem, no dia 6 de janeiro. A Igreja dos primeiros tempos, ao escolher exatamente este dia do ano como dia da Epifania, afirmou Jesus Cristo como alternativa a Dionísio. O vinho da vida não procede do deus pagão, e, sim, do crucificado e ressuscitado, da pessoa histórica de Jesus de Nazaré.
4. Pistas para a prédica
É correto, evidentemente, concentrar a prédica no tema da alegria ou da festa, como sugerem outras meditações. Tomamos a liberdade, porém, de propor um outro enfoque. Inspira-se no antagonismo entre Cristo e Dionísio, como apontado acima. G. Voigt chama a atenção para um fenómeno que separa radicalmente os dois personagens e que continua tendo irrestrita relevância na atualidade: Dionísio prometia a seus fãs nova vida em forma de êxtase, embriaguez, delírio. O vinho que produzia da água no dia da sua festa tinha essa finalidade, a saber, a de proporcionar às pessoas uma experiência de euforia, de transe, de um estar fora de si (em êx-tase). Isto é diferente em Jesus. O vinho que ele dá não quer produzir embriaguez, e, sim, a fé (v. 11). Em Jesus e Dionísio se contrapõem a sobriedade da fé e o entusiasmo extático como duas categorias religiosas distintas e, de certa forma, opostas.
Isso não permite a demonização do vinho. Jesus mesmo o tomou. Pôde até ser difamado como glutão e beberrão (Mt 11.19). Jesus não condena a alegria. Mas há uma profunda diferença entre esta e o estado de embriaguez. Aplica-se esse juízo também à embriaguez religiosa, ao êxtase, a determinadas experiências ditas carismáticas. Novamente cabe prevenir: o Espírito Santo não despreza fenómenos comuns da história da religião a exemplo do transe e do falar em línguas. Mas não está nisso o elemento especificamente cristão, nem a marca própria do Espírito Santo. Seja repetido: Jesus Cristo não quer simplesmente produzir experiências religiosas nas pessoas, ele quer conduzir à fé, ao seguimento, à prática do amor. E isto não é exatamente a mesma coisa.
A prédica que, a partir deste texto, coloca em pauta a relação entre êxtase religioso e fé evangélica se propõe uma tarefa difícil. Deve evitar a condenação indiscriminada de religiosidade carismática, de um lado, sem deixar de submetê-la a avaliação crítica, de outro. Em que se distinguem uma aventura religiosa e a fé em Jesus? Não é necessário a prédica fazer referência explícita ao culto de Dionísio e suas orgias na Antiguidade – o que, aliás, fica a critério do pregador e da pregadora. No fundo, basta caracterizar os dois tipos de religiosidade que aqui se confrontam. Também a fé cristã pode e deve ser alegre. Deve celebrar e festejar. Mas não se lhe permite perder a cabeça, cair fora da realidade, fugir deste mundo.
Tal ênfase nos parece extremamente relevante na atualidade. O êxtase, em grande número de variantes, incluindo a religiosa, tem espantosa procura. Qual será a razão? Religião pode ser abusada como entorpecente. É preciso ser vigilante com respeito a isto. A fé se inspira em Jesus, pessoa extremamente sóbria, de cabeça fria e de coração quente, porta-voz da vontade de Deus e encarnação de seu amor. Não reside nisso a sua glória? Junto a Jesus, a fé cristã não teme a realidade. Este mundo precisa de gente que pensa, que sabe discernir os espíritos, que não se cansou de buscar o Reino de Deus. Ora, vale explorar a diferença entre o êxtase religioso e a fé. Seja dito de passagem que não há como comparar uma antiga bacanal (festa de Baco) e os seus excessos com a Santa Ceia da comunidade cristã. Em ambos os casos se toma vinho. Mas vejam a diferença! Ainda que as nossas celebrações pudessem ser algo mais alegres, não são a devassidão, a baderna, o estar fora de si o objetivo. A fé tem juízo. Nem toda religiosidade o tem. A prédica poderá desenvolver esse tema, fundamentando e ilustrando as afirmações mediante exemplos de antigamente e de hoje.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Senhor! São abundantes os sinais da tua presença em nossas vidas e em nosso mundo. Tu nos carregas, tu nos proteges, tu nos alertas. Mas nossos olhos, por demais vezes, estão cegos para enxergar as tuas maravilhas. A tua epifania nos fica oculta. Perdoa-nos não só a cegueira, Senhor. Perdoa também os erros que dela resultam: a falta de gratidão em nossa vida, a incompreensão para com as pessoas ao nosso lado, o desânimo em nossa caminhada. Tem piedade de nós, Senhor.
Oração de coleta: Sem a tua presença, Senhor, nossa vida sucumbe na rotina, no tédio ou em ativismo vazio. Mas a tua manifestação em Jesus Cristo, na palavra do evangelho e nos muitos sinais do teu Espírito, traz sentido à vida, dá-lhe rumo e sabor. Obrigado por teres vindo a nós e por não nos teres deixado sozinhos. Permanece conosco durante a semana que hoje inicia. Sê a estrela que nos conduz. Amém.
Intercessão: Nós rogamos, Senhor, por todos quantos ainda não te enxergaram ou te conheceram. Os motivos para tanto podem ser muitos. Pode ser que as pessoas tenham fechado seus olhos para não te ver. Pode ser que outros tenham ocultado a tua glória e impedido o acesso a ti. Pode ser que circunstâncias diversas, a exemplo de doença, fome, desespero, morte, tenham dificultado a fé. Nem sempre és visível neste nosso mundo em que imperam tanto sofrimento, tanta injustiça, tanta angústia. Por isso escuta a nossa prece: revela-te, Senhor, em nossas vidas, assim como te revelaste em Jesus Cristo. Mostra a tua glória, o teu poder, a tua justiça, para que o mundo creia, siga a tua vontade, descubra o caminho da paz. Aumenta o bem-estar entre o nosso povo. Dá sabedoria e honestidade a quem tem responsabilidade política neste país, ajuda a quem está em dificuldades. Nós esperamos em ti, Senhor. Não feches os teus ouvidos às nossas súplicas. Amém. (Segue o Pai-nosso)
Bibliografia
BULTMANN, Rudolf. Das Evangelium des Johannes. 16. ed. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1959. (Krit. Ex. Kommentar, 2. Abt.)
HAHN, Ferdinand. Meditação. In: Hören und Fragen : Bd. I, Erste Evangelienreihe. Neukirchen : Neukirchener, 1978. p, 56-63.
SCHULZ, Siegfried. Das Evangelium des Johannes. 12. ed. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1972. (NTD, 4).
VOIGT, Gottfried. Der schmale Weg : Homiletische Auslegung der Predigttexte, NF Reihe I. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1978. p. 100-107.