Prédica: Lucas 4.14-21
Leituras: Isaías 61.1-6 e 1 Coríntios 12.12-21, 26-27
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: 3º. Domingo após Epifania
Data da Pregação:21/01/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
1. Para início de conversa
Há 25 anos circula ininterruptamente esta série que, entre as pessoas que já se acostumaram com o seu uso regular, simplesmente é chamada de PL. É a abreviação de um lema escolhido lá nos anos 70 que pudesse marcar o que esta publicação desejava ser naqueles anos difíceis. Foi em Lc 4.18 que aquele grupo de abnegados defensores da causa do Reino encontrou tal slogan: Proclamar Libertação. Pois é justamente em prol desta causa que essa série de estudos homiléticos serviu ao longo de todos esses anos. Houve mudanças no decorrer desse período. Porém PL nunca deixou de ser fiel a este seu propósito de origem.
O que dizer de novo sobre o texto que norteia todo o trabalho do PL desde a sua origem?
Ao longo desses anos, Lc 4.14-21 foi analisado quatro vezes no PL. Pela primeira vez, no vol. 6, depois no vol. 10 e, finalmente e de forma surpreendente com duas contribuições, no vol. 20. Portanto, em momentos distintos, por autores diversos e de maneiras diferenciadas (inclusive contendo uma pregação no vol. 10), este texto foi analisado em PL. Para quem tiver acesso aos exemplares vale a pena recorrer aos mesmos.
2. Algumas considerações exegéticas
Lucas 4.14-21 retrata o início da atividade de Jesus, à semelhança de Mt 4.12-17 e Mc 1.14s. No entanto, diferentemente dos outros dois sinóticos, Lucas combina (especialmente nos versículos que seguem a perícope em questão) esta atividade inicial com um episódio que Mateus e Marcos relatam mais adiante, indicando, assim, que a rejeição em Nazaré teria ocorrido num momento mais adiantado da atuação de Jesus. Ao mesmo tempo, Lucas amplia esta informação sobre os inícios e, aproveitando uma parte da liturgia do culto na sinagoga, traz a referência a Is 61. Construindo esta cena, Lucas consegue, logo no início de seu relato, colocar o programa de toda a sua obra: Jesus é o Messias escatológico; ele é o ungido. Nele se cumpre o que se espera para quando Deus instaurar seu Reino. Por isso, basta uma frase para interpretar a palavra lida: hoje se cumpriu a Escritura.
Duas vezes se faz referência ao Espírito nestes versículos: no v. 14 e no v. 18, dentro da citação vétero-testamentária. É outra marca do evangelista. O Espírito é o agente principal nestes primeiros capítulos, como o será posteriormente na segunda parte da obra (At 2). É o Espírito Santo que faz Maria tornar-se a mãe do Salvador (l .35); este mesmo Espírito desce sobre Jesus por ocasião do batismo (3.22); por isso, cheio do Espírito Santo Jesus é guiado pelo mesmo Espírito no deserto (4.1). Justamente esta centralidade da ação do Espírito Santo é que favorece esta colocação programática do autor no início de seu relato: o Espírito, que toma conta do escolhido de Javé para instaurar o tempo messiânico, conforme anuncia o profeta, este Espírito está em ação agora. O Espírito é a manifestação da presença de Deus no mundo. É sinal do novo tempo. Ao mesmo tempo, este novo tempo está marcado pela referência à unção. A unção é a capacitação com o poder divino; é a instalação como o messias escatológico; de sorte que a dotação com o Espírito e a unção destacam este mesmo aspecto: Jesus é o ungido. Por isso hoje se cumpriu a Escritura.
Hoje é outra característica de Lucas. Dez vezes ele menciona essa expressão (2.11; 4.21; 5.26; 12.28; 13.32-33; 19.5,9; 22.34; 23.43). Com isso o autor novamente destaca o caráter soteriológico de Jesus. E mesmo que ele tenha interesse em apresentar um relato histórico dos eventos fundantes (1.1-4) e, portanto, mesmo sabendo que o que ele escreve é um evento passado, o destaque no hoje aponta para o fato de que a comunidade que ouve este relato vive neste tempo salvífico que teve o seu início na atuação de Jesus. Lucas não tem interesse numa simples historiografia, mas na atualidade soteriológica desta história. Isso fica expresso também pelo tempo verbal usado: Hoje se cumpriu a Escritura. O pretérito perfeito, em hebraico, não expressa simplesmente um acontecimento do passado. Para tal existe o aoristo. O perfeito descreve um fato ocorrido no passado, cujo efeito perdura no presente. E é neste efeito duradouro que recai a ênfase. Portanto, hoje, para aquele que ouve – diante tios ouvidos de vocês – se cumpre a Escritura. Em outras palavras, ao ser proclamado o evangelho, se faz presente a libertação prometida pelo profeta e concretizada na atuação de Jesus. Pois, considerando a segunda parte da obra de Lucas, o tempo da Igreja, sob a ação do mesmo Espírito (At 2), consiste justamente nesta atualização – hoje! – do que significa a atuação de Jesus.
Essa atuação é caracterizada neste resumo introdutório e programático de Lucas com a palavra didasko – ensinar (v. 15; veja lambem At 1.1). Dentro da boa tradição judaica, não se trata de um ensino formal à semelhança da filosofia grega, mas da instrução na Escritura, interpretação da Escritura (cf. Mc 1.21; Mt 5.1). Assim, o Jesus que ensina é, ao mesmo tempo, aquele que age no poder do Espírito. Ele é o ungido do Senhor. Por isso seu ensino não é um simples ensino como o de outro mestre qualquer, mas é a manifestação de que ele é o Cristo e, ao mesmo tempo, o cumprimento da profecia. Este aspecto o evangelista sublinha ao acrescentar a cena na sinagoga de Nazaré, em que não aparece o termo didasko, mas em que esse aspecto é circunscrito com o desenrolar litúrgico da leitura do profeta Isaías.
Como ungido e cheio do Espírito, Jesus se identifica – hoje se cumpriu a Escritura! – como o enviado para anunciar a boa nova aos pobres, proclamar libertação aos cativos e aos cegos restauração da visão, pôr em liberdade os oprimidos e anunciar o ano aceitável do Senhor. Quem são esses a quem Jesus se sabe enviado? Considerando o estilo hebraico de redigir, temos aqui um paralelismo sinonímico (cf. Garlatti, p. 4). Ou seja, todos os termos – pobres, cativos, cegos, oprimidos – formam um mesmo grupo de pessoas. Em outras palavras, cativos, cegos e oprimidos são diferentes categorias de pobres. Sendo assim, não é possível espiritualizar essa pobreza. Trata-se, isso sim, de realidades bem concretas; de sorte que a nova realidade que se inaugura com a atuação de Jesus implica uma transformação deste contexto marcado pela pobreza. Ao mesmo tempo, este paralelismo sinonímico nos mostra que a pobreza não se reduz ao aspecto econômico. Ela implica toda uma gama de marginalidade em que a vida plena não é possível.
O ano aceitável do Senhor é a referência ao ano do jubileu (Lv 25). Trata-se de uma legislação de profundo sentido social, que justamente quer evitar toda forma de marginalidade e exclusão. Por isso, a libertação dos cativos, a restauração da visão para os cegos, a liberdade para os oprimidos estão dentro dessa perspectiva ampla do ano do jubileu. Mesmo que tal legislação nunca tenha sido concretizada de fato, ela não deixa de mostrar qual é a vontade última de Deus. Por isso, ao se instalar o Reino messiânico, isso não pode ser dito com maior clareza do que através disto que a expressão ano do jubileu significa. Ao mesmo tempo, considerando que o ano do jubileu nunca foi posto em prática de fato, essa transformação não poderá deixar de considerar as implicações socioeconômicas, mas ela necessariamente deverá estar fundada numa transformação interior. Ou seja, o novo tempo que se inaugura com Jesus implica a transformação integral das pessoas. Portanto, o tempo que agora se cumpre – hoje! – é tempo de liberdade, libertação e salvação (cf. Garlatti, p. 13).
3. Confrontando com a realidade
A mensagem do profeta Isaías que expressa o anseio por mudança, a experiência do povo de Israel na época de Jesus sob o domínio da aristocracia local e do Império Romano, a realidade de opressão vivida nos anos 70 na América Latina quando este lema proclamar libertação passa a nortear a pastoral através do PL – sempre a realidade está marcada por profundas contradições que reforçam o anseio por transformação e, por outro lado, apontam para o rumo onde buscar a resposta às indagações. O início de um novo século não é diferente. Também os nossos dias estão marcados por profundas contradições que clamam por transformação. A globalização, principalmente sob o ponto de vista da economia, não obstante apresentar avanços em determinados aspectos, deixa mais escancarada a miséria de outro lado. Nunca o desemprego foi tão grande em nosso país. Apesar da estabilidade na economia, o arrocho salarial é uma realidade, tanto entre o funcionalismo público quanto na iniciativa privada. A área da saúde está muito bem para quem tem condições para pagar um bom plano de saúde, mas quem depende do setor público sente-se cada vez mais abandonado. E o mesmo vale em relação à aposentadoria. Portanto, os pobres desta terra estão cada vez mais pobres.
Quem são esses pobres hoje? Sem dúvida nenhuma, aquelas pessoas que dependem da saúde pública, que precisam enfrentar longas filas para conseguir marcar uma consulta ou para serem atendidas nos hospitais. Da mesma forma, os desempregados, especialmente aqueles que não tiveram a oportunidade de receber urna formação qualificada, aos quais só resta a inserção na economia informal. O desmonte da saúde pública, associado ao descaso com a providência, torna a questão especialmente grave para os idosos.
Em termos macroeconômicos, a realidade de marginalização e dependência aumentou da mesma forma. A dívida externa de países empobrecidos aumenta cada vez mais. Assim, além do desmantelamento do Estado em sua responsabilidade social, o pagamento da dívida retira ainda mais recursos que poderiam e deveriam ser investidos nas áreas sociais.
Por isso, o fim de um século e de um milénio é data propícia para resgatar a ideia do ano aceitável do Senhor e conclamar para que o ano 2000 fosse declarado o ano do jubileu. Apesar do empenho de diversos setores, infelizmente muito pouco disso aconteceu concretamente.
Justamente por isso a mensagem do profeta Isaías, que se cumpriu na pessoa de Jesus de Nazaré, permanece tão atual nos dias de hoje. O povo de Deus e toda a criação continuam a ansiar pelo novo céu e nova terra. Portanto, a comunidade de fé, os mensageiros da boa nova não podem deixar de anunciar o novo que já se tornou realidade e que continua real por ser obra de Deus. Onde a comunidade de fé é alimentada frequentemente por esta boa nova, ali esta verdade passa a determinar a vida e a ação das pessoas, transformando realidades e criando novas situações. Por isso, uma das partes centrais do texto, conforme a fala de Jesus na sinagoga de Nazaré, deve continuar a ser uma das ênfases da pregação: Hoje se cumpriu diante dos olhos de vocês esta palavra.
Olhando especificamente para a realidade das igrejas e as diferentes tendências dentro delas e entre elas, este texto pode servir de bandeira para cada uma, tomando um aspecto como a chave hermenêutica e a síntese da verdade. Carismáticos poderão prender-se à frase: O Espírito do Senhor está sobre mim e procurar verificar como a presença do Espírito se manifesta hoje. A pessoa para quem a entrega decidida a Cristo é o resumo de toda a vida de fé poderá apegar-se à expressão evangelizar, enfatizando o convite à conversão. Já quem vê no proclamar libertação aos pobres, anunciar liberdade aos presos… o centro do texto poderá fazer da mudança das estruturas o pré-requisito para a validade da mensagem. Sem dúvida nenhuma, cada um destes enfoques contém uma verdade profunda. No entanto, na unilateralidade de cada um dos enfoques está a sua parcialidade. Ninguém é dono da verdade, e nunca a verdade se manifesta a não ser em sua parcialidade. Por isso, deixando de lado os unilateralismos e buscando ver esses três enfoques conjuntamente, se estará mais perto da verdade e se poderá dar testemunho mais convincente da verdade. Pois o Espírito certamente está também sobre aquela pessoa que se engaja na transformação de realidades injustas, que solta os cativos, que anuncia a libertação aos pobres. Da mesma forma, o proclamar libertação aos cativos será, de fato, libertação quando vier vinculado à transformação de todo o ser. Assim, estar dotado do Espírito Santo, evangelizar, proclamar libertação aos pobres nunca poderão ser aspectos desvinculados um do outro, mas deverão ser partes de um mesmo conjunto.
A virada do milénio e a chegada do ano 2000 significaram as reflexões e o engajamento de diversas igrejas na concretização do ano do jubileu com o perdão da dívida e a concretização de uma nova ordem social. Inclusive a Campanha da Fraternidade de 2000 mui pertinentemente escolheu esse tema para a reflexão e busca da concretização desta vontade de Deus: Dignidade humana e paz. Um novo milénio sem exclusões. Foi uma maneira bem concreta de as igrejas dizerem: esta realidade, assim como ela está, não corresponde à vontade do Criador. Simultaneamente 2.000 anos de presença de Cristo entre nós significam: em meio a este mundo marcado por essas contradições estão presentes os sinais do Reino – comunidades se engajam para gerar mudanças; grupos de excluídos se unem para viver uma nova realidade; pessoas dominadas por poderes e vícios se sabem libertas e livres para o serviço ao próximo; comunidades de fé e movimentos sociais não se cansam de denunciar as injustiças e contradições e se engajar por um novo modelo de viver a comunhão. Tudo isso vem demonstrar a atualidade desta mensagem a ser proclamada aos quatro ventos: Hoje se cumpriu diante dos olhos de vocês esta palavra.
4. Encaminhando a pregação
Para a pregação sugiro seguir os seguintes passos:
– As contradições da vida – o mundo marcado pela realidade do mal: referência à situação do profeta Isaías, na época de Jesus e nos dias atuais.
– A vontade do doador da vida – boa nova para os pobres, libertação dos cativos, recuperação da visão dos cegos, liberdade para os oprimidos, em suma, tempo de salvação.
– A presença dessa nova realidade em Jesus – o Espírito está sobre mim para inaugurar esse novo.
– Hoje se cumpre essa palavra – como mensageiros da boa nova, anunciar para a comunidade esta nova realidade.
– A novidade de vida – consequência do saber-se na nova realidade.
Bibliografia
BOVON, François. Das Evangelium nach Lukas (Lk 1.1-9.50). Zürich/Neukirchen-Vluyn : Benzinger/Neukirchener, 1989. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament).
GARLATTI, Guilherme. Evangelización y liberación de los pobres – Lc 4.16-21. Revista Bíblica, v. 25, p. 1-15, 1987.
PÉREZ, Augustin del Agua. El cumplimiento dei Reino de Dios en la misión de Jesus: programa del Evangelio de Lucas. Estúdios Bíblicos, v. 38, p.
269-293, 1979-80.
SCHMID, Josef. El Evangelio según San Lucas. Barcelona : Herder, 1968.