Prédica: Lucas 7.1-10
Leituras: 1 Reis 8.41-43 e Gálatas 1.1-10
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 2º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação:17/06/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
1. Introdução
O índice das perícopes tratadas em Proclamar Libertação não acusa nenhuma contribuição sobre Lc 7.1-10, nem sobre o texto paralelo de Mt 8.5-13. Mas há no PL XII uma contribuição de E. E. Streck sobre o paralelo desta história em Jo 4.46-54 (p. 148-153).
Em relação ao paralelo de Mt 8.5-13, o texto de Lucas, a despeito das várias semelhanças, apresenta algumas notórias diferenças, das quais destacamos as duas principais:
1. Em Lucas há dois grupos de intermediários entre Jesus e o centurião. O primeiro é composto por alguns anciãos dos judeus (v. 3), que fazem o primeiro contato e a solicitação de cura; o segundo é formado por amigos do militar (v. 6), enviados a Jesus para dizer-lhe que não chegue até a sua casa, mas que faça uso de sua palavra poderosa para viabilizar a cura. Em Mateus, a relação entre Jesus e o militar é direta, não mediada por nenhum grupo.
2. Lucas não faz constar do diálogo as palavras de Mt 8.11-12, que ele apresenta num contexto literário diferente, a saber em Lc 13.28s.
2. Interpretação
Jesus é interpelado em Cafarnaum, cidade fronteiriça entre a tetrarquia de Herodes Antipas (Galiléia + Peréia) e seu irmão Filipe (nordeste da Galiléia). Esta região fronteiriça justifica a presença de um destacamento militar, com um centurião, pois ambas as tetrarquias recolhiam taxas alfandegárias. Herodes Antipas possuía um exército/polícia, para o qual recrutava, sobretudo, legionários estrangeiros, podendo ser o centurião um romano (menos provável), ou então cidadão gentio de qualquer dos vários povos vizinhos de Israel.
O centurião possuía um servo (Lucas cita, literalmente, um escravo; Jo 4. 46 reporta-se a um filho). Este sofria de paralisia, um termo que, no grego, podia indicar vários tipos desta doença. Segundo Mt 8.6, ele sofria horrivelmente, o que parece combinar com Lc 7.2, que o caracteriza como estando quase à morte. O centurião, lendo ouvido falar a respeito de Jesus, resolve solicitar a cura. Ele não o faz diretamente, provavelmente por ser gentio, conferindo-lhe isto certo grau de impureza. Solicita que autoridades locais judias (alguns anciãos dos judeus) intercedam por ele. Eles o fazem, apontando a Jesus os méritos do militar: teria sido amigo do povo judeu e construído a sinagoga local; logo, ele é digno de que lhe faças isto. Este tipo de ação caracteriza o militar gentio como um provável temente a Deus, ou seja, como um gentio simpatizante da religião de Israel (cf. At 10.2,22,35; 13.16,26) e participante dos cultos sinagogais, mesmo que não a ponto de se tornar um judeu plenamente convertido à religião israelita, com banho de imersão, circuncisão e observância de todas as leis de Israel. Jesus deixa sensibilizar-se pelos anciãos judeus e vai com eles em direção da casa do centurião. No caminho, contudo, uma nova delegação de intercessores entra em cena: são, agora, amigos anónimos enviados pelo militar, que repassam a Jesus uma dupla convicção: o centurião, por um lado, não se julga digno de ir ter com ele e, por outro, confia, não obstante, plenamente em sua palavra poderosa para curar o seu servo. Ele conhece a força de meras palavras através de sua própria atividade como oficial!
Jesus admira-se muito sobre a fé do oficial (…nem mesmo em Israel achei fé como esta). O que era esta fé que causava tanta admiração em Jesus? O centurião a testemunhara com as palavras: Manda com uma palavra, e o meu rapaz será curado (v. 7). Ela era expressão da confiança de que na palavra do Mestre far-se-ia ouvir e sentir o poder criador da vida, inerente à Palavra de Deus, como revelada no AT, desde os seus primeiros capítulos até passagens como Is 55.10ss ou SI 107.19s: Então, na sua angústia, clamaram ao Senhor e ele os livrou das suas tribulações. Enviou-lhes a sua palavra, e os sarou e os livrou do que lhes era mortal.
Diretamente, o texto não diz nem parece sugerir que Israel tenha negado fé a Jesus; só afirma que a do centurião era maior ou mais intensa. Tanto assim é que o próprio texto dá testemunho da fé dos judeus, através das providências tomadas pelo grupo dos anciãos (v. 3-5). Mas há também pesquisadores que querem ver na contraposição do v. 9 entre o militar gentio e Israel uma velada crítica, para o que se reportam a experiências frustrantes de Jesus com o seu povo, a exemplo de Mc 3.22ss; 6.1-6; Mt 11.20-24; 12.38ss, entre outras. Entendemos, porém, que esta última tendência interpretativa deve-se muito mais à influência do texto de Mateus (cf. Mt 8.11 s) do que propriamente à narrativa lucana em Lc 7.1-10.
A constatação da fé do centurião bastou para Jesus curar o servo paralítico. Trata-se de uma cura à distância. Este tipo de cura não é usual, mas é discutido e confirmado pela parapsicologia e testemunhado pela experiência de outras pessoas atingidas pela mesma graça.
3. Meditação
3.1. Uma fé muito forte, inesperada
A fé do centurião gentio é uma surpresa para Jesus. É uma fé muito profunda, forte, grande. Por quê? O mais provável é que seja por causa das dificuldades que ela necessitava transpor. A primeira delas era a auto-estima do militar. Ele julgava-se indigno de ir ter com Jesus, apesar de os anciãos haverem-no declarado como digno da ajuda do Mestre (v. 7 com o v. 4). Por que ele se considerava indigno? Talvez por ser gentio e saber que Jesus destinava suas proclamações e ações primeiramente às ovelhas desgarradas do seu próprio povo (Mt 10. 5-6). Mas também pode ter havido motivos de outra ordem. O centurião era militar, provavelmente em funções policiais na alfândega fronteiriça. Isto lhe dava condições de praticar abuso de poder, maus tratos aos cidadãos e enriquecimento ilícito (cf. Lc 3.12-14). Além disso, ele provavelmente sabia que o movimento de Jesus era antimilitarista (Jo 18.36-37) e de não-violência (Lc 6.27-31), o que poderia facilmente indispor o Salvador diante de um pedido de cura como o seu.
Este enaltecimento da fé do militar gentio por Jesus deixa transparecer o seguinte:
l: A fé está sujeita a processos de firmeza, amadurecimento e consistência. A Bíblia conhece estágios da fé: há fé firme como no caso do nosso texto (cf. também Mt 15.28), pequena fé (Mt 14.31; 17.20), fé vacilante (Mc 9.24); há também fracos e fortes na fé (km 14.1 com 15.1; l Co 8.9-12), assim como é possível crescer ou decrescer na fé (2 Co 10.15). Quase todos temos experiências com este fato. Quase todos lidamos com períodos de maior e menor proximidade a Deus, de maior e menor confiança em sua presença e ajuda. Isso mostra que não somos donos de nossa fé, que esta, por ser dádiva, precisa ser sempre solicitada ao Espírito;
2: Às vezes, encontramos maior espiritualidade fora do que dentro dos quadros de nossas comunidades e igrejas. O v. 9 destaca a fé do gentio numa comparação com a fé encontrada entre judeus (em Israel). Os gentios também têm espiritualidade, às vezes bem maior do que a nossa. A fé é testemunhada muitas vezes de forma surpreendente por pessoas, por igrejas ou mesmo religiões nas quais menos a esperaríamos. Há também lugares/locais onde poucos cristãos esperariam encontrar espiritualidade – e é justamente lá que a solidariedade escreve suas mais bonitas páginas de altruísmo e consideração pelo próximo. A fé é, por vezes, testemunhada bem melhor pelos que vivem fora do que dentro das comunidades e igrejas.
3: Às vezes, o pressuposto para a fé em Deus é a constatação de que pouco somos ou valemos diante dele. O homem considerava-se indigno da presença de Jesus. E é justamente nesta hora, quando ele se conscientiza de que nada vale, que pode jogar-se inteiramente nas mãos daquele de quem tudo espera e confia.
3.2. Os grupos de apoio entre Jesus e o militar gentio
Nem sempre conseguimos chegar a Jesus sozinhos, com recursos próprios de auto-estima, de determinação e de compromisso. Às vezes, precisamos de gente como os anciãos dos judeus ou os amigos do militar que nos levem até Jesus ou que tragam Jesus até nós, ou que intercedam por nós junto a Jesus. O militar gentio está cercado de tais amigos. Nós próprios também podemos fazer esse papel de mediação, de ponte entre Jesus e as pessoas. Um gesto amigo, uma palavra amiga, uma ajuda concreta e desinteresseira, tudo isso pode fazer com que pessoas – por nossa causa – sejam levadas a interessar-se e engajar-se nas comunidades e igreja.
3.3. O poder transformador da palavra de Cristo
O texto dá testemunho de uma pessoa que confia profundamente no poder transformador da palavra de Jesus. Ao contrário dos fariseus, que pediam por sinais extraordinários (Mt 12.38ss), o gentio se apega inteiramente ao poder vivificador da palavra. A confiança é grande: ela dispensa presença e o contato com as mãos. A palavra de Cristo é tudo. Ela basta.
Essa atitude contrasta com falta de fé ou fé tímida e temerosa. A palavra de Cristo é mais do que uma lembrança do que alguém falou num passado longínquo. Ela é criadora de vida sadia, em todos os seus sentidos. É por isso que insistimos nela, que a pregamos com perseverança: é que ela pode nos transformar e renovar.
4. Prédica
4.1. Pregação em forma de teatro
A pregação do texto poderia tematizar um ou mais aspectos arrolados na meditação. E. E. Streck (PL XII, p. 148ss) sugere que o texto se presta muito bem para ser encenado em forma de teatro. A pregação também poderia ser assim: através da mensagem que pode ser transmitida pelos recursos do teatro. Uma terceira opção seria realizar a apresentação de um teatro e, logo em seguida, destacar brevemente alguns aspectos do texto, cuja relevância melhor se encaixe na situação da comunidade.
Na Escola Superior de Teologia, onde trabalho, optamos por realizar a pregação unicamente em fornia de teatro, apresentado em culto no dia 31.05.2000. Os papéis reservados aos personagens procuraram destacar aqueles aspectos da história que havíamos achado relevantes para a nossa situação. É claro que se um/a pregador/a optar também pelo teatro, ele/a deveria modificar o script de tal forma que se adequasse ao que é relevante em sua situação específica. Nossa sugestão concreta é a seguinte:
a) que o pregador/a prepare antecipadamente um script com um grupo de jovens ou adultos dispostos a apresentá-lo em forma de teatro, refletindo o texto e os destaques mais adequados para a situação específica da comunidade;
b) que o pregador/a acompanhe os ensaios de teatro para a apresentação em culto;
c) que o grupo apresente o texto em forma de teatro no espaço reservado à pregação.
4.2. Sugestão de script
(Script apresentado no culto da Escola Superior de Teologia em 31.05.2000 e elaborado pelo grupo de teatro da EST)
[TEXTO BÍBLICO de LUCAS 7.1-10]
CENA l
Uma pessoa, o doente deitado, tossindo bastante e gemendo. Ao lado, o militar gentio e dois líderes judeus (anciãos dos judeus).
MILITAR GENTIO : Meu Deus! O que mais posso fazer por este meu empregado? Ele é bondoso e nos entendemos muito bem; tenho muita consideração por ele. Mas veja, que posso eu fazer com este corpo quase morto e doente ?
UM DOS LÍDERES : Hei! Você não ouviu falar que Jesus, aquele nazareno que o povo diz que realiza muitas curas, está na cidade?
MILITAR GENTIO : Você fala sério? Jesus está na cidade? Tenho ouvido falar muito a respeito deste homem. Porém, não irei falar com ele. Jesus prega a paz e é contrário à violência. Não lembra que ele afirma que serão considerados filhos de Deus os que trabalham pela paz? Eu sou um oficial romano, e os oficiais são responsáveis por uma série de agitações e violências. Matamos em nome do imperador. Além disso, Jesus também falou diferente do que diz a lei sobre como devemos tratar as pessoas. Para nós, até hoje, se alguém lhe causar mal, você tem o direito de pagar na mesma moeda. Porém, este homem afirma que devemos amar até os que nos odeiam e nos fazem mal… Ele parece muito pacífico. Além disso, nem sou judeu… e se for falar com ele, posso torná-lo impuro.
OUTRO LÍDER JUDEU: Pare de falar, homem! Você nos ajudou na construção do templo, assiste os cultos nas sinagogas aos sábados e é bom, pois até com o teu empregado você está preocupado!!! Por que você se sente assim?
MILITAR GENTIO : Não, não, não posso! Mas você pode. Vocês podem. Por favor! Vão até Jesus e lhe peçam para vir até minha casa ver meu empregado.
UM LÍDER JUDEU : Tudo bem. Você já nos ajudou bastante, e, por consideração à sua bondade e ao seu empregado que não merece falecer, iremos. Agora é nossa hora de ajudar, e sempre estivemos unidos. Não será agora que iremos deixar você. Voltaremos assim que encontrarmos Jesus.
CENA 2
Saem de cena, ficando apenas o doente tossindo e gemendo. Entram em cena Jesus e mais algumas pessoas, que poderiam ser seus amigos. Estão sentados, quando entram dois líderes judeus.
LÍDER JUDEU: Senhor! Precisamos lhe falar. Precisamos que nos acompanhe até a casa de um amigo. Ele é um militar gentio, porém seu empregado está muito doente, e ele está muito preocupado. Pediu que intercedêssemos por ele, pois é muito bom e querido por nós.
OUTRO LÍDER JUDEU: Nosso amigo se preocupa com seu empregado adoecido e é um bom homem. Ajudou a construir a nossa sinagoga. Estamos em dívida com ele e não poderíamos deixar de prestar-lhe este favor.
JESUS : Muito bem! Se é como vocês estão me dizendo, vou acompanhá-los até a casa deste homem. Onde fica? Vamos ?
CENAS 3
Saem Jesus, seus amigos e os líderes judeus. Entram em cena o militar gentio e os dois ou três amigos, para avisarem que Jesus está chegando com os líderes judeus.
AMIGO : Hei! Jesus está vindo e chega logo!
MILITAR GENTIO : Meus amigos ! Não sou digno de que esse homem entre em minha casa. Muito menos de falar pessoalmente com ele! Como meus amigos, peço que o recebam por mi m. Digam a ele como penso, que acredito em tudo que ele disser. Se falar que meu empregado vai ficar bom, eu acreditarei. Eu sei que ele tem autoridade para isto. Eu que sou militar dou ordem para qualquer soldado e ele obedece. Se digo: Apontar armas!, assim eles fazem. Se digo: Alto!, assim é. Se peço reverência, sou reverenciado. Muito mais este homem. Acredito que, se ele quiser, meu empregado ficará bom.
AMIGOS: Não se preocupe, fique tranquilo! Somos amigos, e seu sentimento de tristeza diante de seu empregado também nos entristece. Estamos com você. Assim que Jesus chegar, vamos recebê-lo em seu lugar de você.
CENA 4
Militar gentio sai de cena, ficando só os amigos. Jesus e os que o acompanham entram com os líderes judeus.
AMIGO : Senhor, não se incomode! Nosso amigo militar não se sentiu digno de receber o senhor. Pediu que falássemos por ele para que o senhor interceda por seu empregado. Ele se preocupa com o empregado, mas considera-se indigno de receber o senhor. Porém, acredita que o senhor possui autoridade para isso. Ele também é uma autoridade e como tal, quando ordena a seus empregados e soldados que o reverenciem, assim eles o fazem. Se lhes pede para apontar armas, também o fazem.
JESUS : Estou muito impressionado com a atitude desse homem ! Ele poderia aproveitar-se de sua condição de militar e pouco importar-se com um soldado a mais ou a menos. Com a autoridade que lhe é atribuída, poderia ordenar que o empregado fosse substituído. Além disso, não demonstrou amargura ou frieza em seu coração, conseguindo sensibilizar-se com o estado físico de seu empregado. Como militar gentio, e não judeu, que é, admira-me tamanha fé e humildade! Digo que em todo o Israel ainda não vi coisa igual. Vamos, pois este empregado já está curado.
Ficam em cena os líderes e seus amigos. Entra o militar gentio, que observa que seu empregado está se recuperando. Toma-o nos braços e admira-se com sua cura.
MILITAR : Eu sabia! Eu sabia que este homem podia salvá-lo! Vejam como ele está: ficou curado! Olhem! Foi Jesus…
Várias pessoas chegam e expressam sua admiração pela cura: Vejam só, ele está curado! Não é possível, como você pode estar de pé e com saúde? O que foi que lhe aconteceu? Que maravilha! Jesus é grande, é poderoso. Foi ele que o curou. Só pode ter sido ele…
Todo o grupo sai de cena.
Bibliografia
BARRERA, Pablo. A fé dos inconversos no Evangelho de Mateus (Mt 8.5-13 e 15.21-28). In: CLAI (Ed.). Martírio e esperança : reflexões bíblicas sobre os 500 anos. Quito : CLAI, s.d. p. 59-69.
SCHNEIDER-QUINDEAU, Werner. 3. Sonntag nach Epiphanias. Mt 8,5-13. In: HÄRTLING, Peter. (Ed.). Textspuren : 1: Konkretes und kritisches zur Kanzelrede. Stuttgart: Radius,1990. p. 67-69.
STRECK, Edson Edílio. 3° Domingo após Epifania. João 4.46-54. In: MALSCHITZKY, Harald, WEGNER, Uwe (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1986. v. XII, p. 148-153.