Prédica: Salmo 46.1-7 (1-11)
Leituras: Romanos 3.9-28 e João 8.31-36
Autor: Martin N. Dreher
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVI
1. Um hino mais conhecido que um texto
Em Dia da Reforma, muito provavelmente, o hino de Lutero Deus é castelo forte e bom ou Castelo forte é nosso Deus seja mais conhecido do que o original: o Salmo 46. Há, porém, aspectos semelhantes aos dois textos. Para nenhum dos dois conseguimos precisar quando terão sido compostos. Isso também faz com que os possamos ler e cantar nas mais diversas situações. Nos dois, o elemento mítico se faz presente. E, em épocas de crise, pelas quais sempre de novo passamos, o mito fundante é auxílio muito importante. Quando perdemos o mito fundante, não sabemos de onde estamos vindo nem para onde vamos. Somos infelizes. Felicidade, bem-aventurança, porém, é fundamental à fé.
O reformador Martim Lutero cresceu cercado de música. Deve ter cantado os hinos mineiros, cujas melodias ainda ressoam em seu hino Em meio à vida, estamos envoltos pela morte. Na escola de Mansfeld, Lutero cantou no coral infantil que acompanhava a missa. Também em Magdeburgo e Eisenach participou de coros. O estudo da música foi continuado na Universidade de Erfurt, pois era disciplina integrante das Artes liberales. Enquanto se recuperava de ferimento, aprendeu a tocar alaúde e a compor, sem professor. Foi autodidata. Quando monge, Lutero aprendeu o canto gregoriano. Sua ordem, a Agostiniana Eremita, levava a música muito a sério.
Quando tocava, Lutero valia-se do alaúde, mas também tocava a flauta transversa. Pelo que podemos constatar a partir de suas melodias, era tenor. Isso faz com que vozes graves, muitas vezes, tenham dificuldades para acompanhar seus hinos, como acontece com o hino natalino Eu venho a vós dos altos céus.
No final do século XVI, chegou-se a afirmar que Lutero teria composto 137 hinos. O número não é histórico, mas aponta para a tentativa que se fax na época – Lutero entrementes é mito – de compará-lo a outro mito, Davi, ao qual se atribuía a composição de quase todo o Saltério. A discussão em torno da melodia dos hinos de Lutero foi e continua sendo grande, chegando a haver aqueles que lhe negam a autoria de toda e qualquer melodia. A melodia de Deus é castelo forte e bom é parceria de Lutero e Johann Walther, rnestre-capela da corte da Saxônia. Há também outros hinos, cuja melodia é de Lutero.
A poesia está muito presente na obra de Lutero. Seu primeiro hino data de 1523, ano em que foram queimados em Bruxelas, na atual Bélgica, os primeiros mártires luteranos: Um belo hino dos mártires de Cristo, queimados em Bruxelas pelos sofistas de Lovaina. A composição deste hino parece haver levado Lutero a descobrir sua veia poética. Sempre é bom lembrar que contava, então, já com 40 anos. Seu segundo hino, Cristãos, alegres jubilai, provocou toda uma explosão hinológica.
Essa explosão hinológica também se deve à publicação, em 1524, da tradução dos Salmos, preparada por Lutero.
Os hinos de Lutero foram, inicialmente, divulgados em folhas avulsas. Posteriormente, foram reunidos em caderninhos e livros. Dessa maneira, muitos hinos puderam ser preservados. Testemunhos da época dão conta de que o povo os cantava com alegria, também fora do templo, na rua. Estava criado o Hinário, o livro de cânticos, grande difusor do evangelho.
O hino mais conhecido de Lutero, Deus é castelo forte e bom, é o que tem provocado maiores controvérsias acerca da data de sua composição. Os temas que aparecem no hino não nos possibilitam fixá-lo em um determinado tempo. Podem apontar tanto para 1521 quanto para 1530, como também para os anos entre estas datas. De fato, Lutero viu toda a sua vida como tempo de luta contra o velho e malvado inimigo. O hino foi publicado em hinário, editado em Wittenberg, em 1528. Isso significa que deve ter sido composto antes desta data. Não há como conseguir data mais exata. Toda tradução de hino significa perda em relação ao original. Isso também aconteceu com o hino Deus é castelo forte e bom. Traduções literais, porém, não podem ser cantadas. Para comparação, reproduzimos versão literal do hino:
Castelo firme é nosso Deus,
boa defesa e armamento,
Ele nos livra de toda a aflição
que agora nos atingiu.
O velho malvado inimigo
agora investe para valer,
grande poder e muita astúcia
são seu cruel armamento,
sobre a terra não existe
igual a ele.
Ainda que o mundo estivesse cheio
de demônios
e nos quisesse devorar,
não nos apavoraremos demais,
pois venceremos apesar de tudo.
O príncipe deste mundo,
por mais raivoso que ele se apresente,
nada nos fará,
isso porque já está julgado,
uma palavrinha pode derrubá-lo.
Com nossa força nada alcançare¬mos
logo estaremos perdidos.
Por nós luta o homem certo,
Que o próprio Deus escolheu.
Perguntas quem é ele?
Seu nome é Jesus Cristo,
o Senhor Zebaote
e não há outro Deus.
Ele há de vencer.
A Palavra eles têm de deixar de pé
mesmo que não o queiram.
Ele está agindo entre nós
com seu Espírito e dons.
Se [nos] tirarem o corpo,
bens, honra, filhos e esposa,
que se vá!
Isso não lhes traz nenhum proveito,
o Reino mesmo assim há de ser nosso.
(Versão: Ilson Kayser)
2. Lutero e o Salmo 46
Em 1531, Lutero fez o seguinte comentário ao Salmo 46: O Salmo 46 é salmo de gratidão, cantado na época pelo povo de Israel por causa dos feitos maravilhosos de Deus, por haver protegido e preservado a cidade de Jerusalém, na qual estava sua morada, contra o furor e o bramido de todos os reis e gentios, e ter-lhe concedido paz contra todas as guerras e armas. Segundo o costume da Escritura, ele designa a república da cidade de pequenino poço ou pequena agüinha, que não há de secar, como há de acontecer com os grandes lagos de água e mares dos gentios, isto é, com os grandes reinos, principados e potestades, que hão de secar e desaparecer.
Nós, porém, cantamos o salmo para o louvor de Deus, por estar conosco e por preservar sua palavra e a cristandade mara¬vilhosamente contra as portas do inferno, contra o furor de todos os demônios, dos entusiastas, do inundo, da carne, dos pecados, da morte, ele. Nosso pequenino poço há de permanecer também fonte viva, enquanto seus pântanos, banhados e poças apodrecerão e federão e hão de secar (WA 38,35,7-19).
3. O Salmo 46
Na tradução de Almeida são omitidas, entre os v. 3 e 4, as palavras: O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio. Sugiro incluir estas palavras, seguindo a Bíblia Hebraica. Se assim o fizermos, veremos que o Salmo 46 é formado de três estrofes, que, na numeração de Almeida, envolvem os versículos 1-3 (com o acréscimo sugerido), 4-7 e 8-11.
O Salmo é exemplo de composição e expressão da fé do povo do Antigo Testamento. Linguagem forte busca expressar, em termos dramáticos, experiência de fé. Hino, estilo e imagens proféticos, elementos do mito fundante, nos evidenciam que aqui há resumo de todas as tradições e experiências de Israel. Seu pano de fundo é a teofania, a revelação de Deus, e a exposição dramática da história da salvação. Isso coloca o Salmo no culto israelita. Temos aqui o local, onde é cantado. Em cada uma das estrofes nos é apresentada uma imagem poderosa distinta, mas cada uma das imagens explode numa mesma confissão a Deus. Assim, o estribilho – talvez responsório da comunidade reunida em culto – adquire, a cada vez que é pronunciado, nova dimensão. Há, porém, um canto firme que perpassa todas as estrofes: a confissão destemida da fé a Deus. Na primeira estrofe, esta confissão é feita diante do rugido da natureza, quando deixa surgir e desaparecer mundos. Na segunda estrofe a confissão é proferida diante da história, exemplificada no ataque dos povos aos muros de Jerusalém. Finalmente, a terceira estrofe, é confissão entusiasmada ao Deus que se ergue por sobre o campo de batalha, no qual jazem corpos e escombros, para fundar, na terra, seu reino eterno de paz.
Na temática das três estrofes – criação, história e escatologia -, cantada no culto da comunidade, está o valor perene do Salmo. Ela expressa a experiência da comunidade com Deus: sempre de novo Deus volta a nos dar integridade, salvação, em meio às experiências mais desastradas e aterrorizantes.
1. O Deus, ao qual dirigimos nosso louvor, é o mesmo que em milhares de situações angustiantes do passado foi referência para a comunidade, demonstrando-lhe seu poder e seu amor. Na história dos que foram antes de nós, podemos ver um Deus atuante que não tem deixado seu povo só. Mesmo que nosso mundo desapareça, não estamos sós, pois estamos baseados em fundamento sólido: o Deus que fez uma aliança, um pacto com seu povo. Mesmo que o mundo desapareça, nosso Deus permanece. A linguagem mítica está presente: Deus luta com os dragões que querem nos devorar (Não se assustem com a expressão mito. O mito faz parte de nossa linguagem e dele precisamos para expressar o inefável!). Sua vitória é grandiosa. Por isso, a estrofe deixada de lado tem que ecoar aqui com todo o vigor: O Senhor dos exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refugio (fortaleza, castelo)!
2. Em profunda oposição à primeira estrofe está a segunda. Se na primeira presenciamos o mar espumejante em razão da luta de Deus com o dragão, na segunda temos a imagem tranquila do rio em Jerusalém, em cujas margens mora a alegria. Às águas da destruição opõem-se as águas da bênção. Em Jerusalém, porém, não há rio. O mito do paraíso é transferido para Jerusalém. Do jardim do Éden saem os rios que irrigam a terra, o mundo todo. De Jerusalém sai o rio que faz frutificar toda a terra. Daqui sai a bênção para toda a terra. Da cidade que sempre teve que temer a falta de água, quando acossada pelos inimigos, sai a água abençoada. Ela não só experimentou bênção e proteção de Deus, como também deixou fluir tal bênção e proteção para o mundo. Sua fortaleza, porém, está na presença de Deus. Na última vigília da noite, quem realmente vela, zela e cuida é ele. Por isso, haja o que houver, mesmo em meio ao juízo de Deus (v. 6), Ele permanece fiel à sua cidade. Por isso, o refrão do v. 7 tem que voltar a falar que Deus é o castelo forte.
3. Na terceira estrofe, finalmente, a comunidade é convidada a ver com os próprios olhos o que aconteceu. Por isso, devo solicitar que o Salmo 46 seja tomado em sua íntegra como texto de pregação e não apenas os sete primeiros versículos, como sugere a série ABC. Se isso não for feito, faltará o convite à comunidade: Vejam com os próprios olhos! Deus pôs fim à guerra. Diante de nós está um monte de escombros, armas destruídas. Vejam o que acontece com quem se opõe a Deus. Mas, isso não é tudo. Depois do monte de escombros começa o caminho que Deus quer trilhar com a humanidade. A comunidade é convidada a sonhar com o Reino de Deus. Quem olha para Deus pode ver além dos montes de destroços, de escombros, dos aspectos terríveis e aterrorizantes, presentes em nosso mundo. O histórico presente é colocado na moldura do escatológico. E é ai que o hino contido no Salmo 46 chega ao ápice: o próprio Deus entra em cena e fala às nações. Sua palavra é ordem. Nela, porém, também está contida a concretização de sua palavra e a garantia desta. Abandonai a guerra e reconhecei que eu sou Deus! Este é o objetivo do Reino: Que o mundo reconheça a Deus e se submeta a ele. Aqui ecoa também o grito de Lutero: Deixai Deus ser Deus! Aceitai-o como ele é, na cruz do crucificado e ressurreto. Sejam discípulos e discípulas dele! – A fé sonha que seu Reino venha e que sua vontade seja feita. Por isso, na terceira vez em que o refrão ecoa (v. 11), ele é eco da comunidade à auto-revelação de Deus. Aqui ecoa a alegria de ter comunhão com esse Deus e de poder encontrar abrigo sob as suas asas. A comunidade tem a certeza de participar de seu Reino e de estar indo ao encontro do cumprimento de suas promessas. Essa certeza transforma o Salmo em hino de fé que enfrenta todas as dificuldades, pois sabe a respeito daquele que venceu o mundo, porque o amou.
4. Contribuições litúrgicas
Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, nestes dias lembramos a Reforma de tua Igreja. Ouvimos a pregação de teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo: O tempo é chegado e o Reino de Deus chegou. Fazei penitência e crede no Evangelho! Permite que em todas as nossas comemorações não deixemos de fazer penitência, para que reconheçamos e confessemos o que fizemos de errado e onde perdemos a oportunidade de contribuir para tua obra da unidade da Igreja. Mostra-nos caminhos e perspectivas e aceita nossa penitência, para que nos tornemos embaixadores de teu evangelho. Perdoa-nos a culpa. Amém.
Coleta: Todo-poderoso, eterno Deus, nós te pedimos: sê com teu Espírito Santo entre nós. Desperta nossos corações para que recebamos tua palavra. Desperta nossas consciências para que ouçamos tua vontade. Faze de nós pessoas que anunciem tua grandeza e levem teu nome ao mundo. Amém.
Oração da Igreja: Pai e Senhor, teu mundo tem muitas feridas e machucaduras. Tu no-lo deste intacto. Nós seres humanos não entendemos tua incumbência, e agora sentimos as consequências das guerras, dos medos e das solidões, dos descaminhos e dos desesperos. O mundo tem muitas feridas e machucaduras, e em toda' parte pessoas desejam esperança, pão e amor, aqui em nosso país e além de nossas fronteiras, em outras partes do mundo.
Permite que tua Igreja seja mensageira da diaconia: junto a crianças mutiladas, junto a vítimas da sociedade industrial, a solitários, idosos e doentes, impacientes e em risco de vida, famintos e sedentos. Permite que em nossa comunidade surjam novas forças e ideias, para que nós mesmos possamos participar, nos oferecer, encontrar caminhos de diaconia. Senhor, nós pedimos por teu Espírito Santo, por Jesus Cristo, teu Filho, ao qual queremos seguir.
Bibliografia
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas : vol. 7: Vida em comunidade: comunidade – ministério – culto – sacramentos – visitação – catecismos -hinos. São Leopoldo / Porto Alegre : Sinodal / Concórdia, 2000.
MÜLHAUPT, Erwin (Ed.). Dr. Martin Luthers Psalmen-Auslegung. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1962. vol. 2.
WEISER, Artur. Die Psalmen. 7. ed. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1966. (Das Alte Testament Deutsch, 14/15).