Prédica: Ezequiel 33.7-9
Leituras: Mateus 18.15-20 e Romanos 13.1-10
Autor: Cláudio Molz
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 08/09/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema:
1. Tradução
7 E a ti, filho de ser humano, coloco como sentinela para a casa de Israel. Ao ouvires da minha boca um assunto, os advertirás da minha parte.
8 Quando eu disser em relação ao malvado: “Malvado! Certamente vais morrer!”, mas tu não falares para advertir o malvado quanto à conduta dele, de modo que ele, o malvado, morrer por seu pecado, então será da tua mão que pedirei contas do seu sangue.
9 Se tu, porém, advertires o malvado da sua conduta, a fim de que mude de rumo, então, mesmo se ele não mudar a sua conduta e morrer no seu pecado, tu salvas a tua vida.
2. Semelhanças entre Ezequiel 33.7-9 e Ezequiel 3.16b-21
O nosso texto foi trabalhado já para o ano de 1977 por Nelson Kirst, em PL 2, 1ª edição, p. 96 – 103. O autor analisa o texto Ez 2.3-8a; 3.17-19. A segunda parte, 3.17-19, é muito semelhante ao nosso texto, Ez 33.7-9. Poderia ser considerada uma repetição, eventualmente. O mesmo se pode dizer de Ez 33.1–5. Também ali se explicita a função de sentinela, com as suas responsabilidades e a limitação dessa responsabilidade. Essa limitação dá-se justamente pela liberdade individual de cada ouvinte da mensagem da sentinela. A função profética acaba com a advertência falada. A sua palavra, uma vez dita com clareza, serve ao profeta como álibi e defesa contra eventuais posteriores acusações de omissão. A omissão lhe seria fatal, especialmente porque também será fatal para o cidadão que não tem o prazo de preparação para defender-se contra os ataques que vão chegando contra a sua vida. O profeta paga pela morte de quem não foi advertido por ele, mas é isento de culpa de quem não lhe dá atenção, não segue, apesar de ter ouvido. O profeta não é responsabilizado pelas decisões individuais do cidadão. Há, portanto, a pressuposição de que cada um dê a sua participação ativa e responsável, com plena liberdade de decisão e a respectiva atuação. Mas não poderá o cidadão depois encostar-se no profeta e alegar ignorância. A palavra do profeta sempre deverá ter acontecido preventivamente.
3. Idéias encontradas no Novo Testamento
Um dos principais pensamentos que o nosso texto expõe também aparece no Novo Testamento, como em Mc 13.11. Trata-se da questão de que a palavra do profeta não é criação dele. O profeta é um comunicador de idéias de Deus. Não precisa nem deve criar as suas próprias idéias em substituição às de Deus, por mais inteligentes que sejam. O profeta confiante pode despreocupar-se quanto ao conteúdo da sua comunicação. Os falsos profetas são acusados justamente de inventar promessas que Deus não fez nem mandou anunciar. Falam de assuntos que se orientam não pela vontade de Deus, mas pelo prazer, pela demanda, pretensa vantagem, preferência dos ouvintes. Os falsos profetas orientam-se pelo mercado, pelo consumidor, diríamos hoje.
“Quando, pois, vos levarem e vos entregarem, não vos preocupeis com o que haveis de dizer, mas o que vos for concedido naquela hora, isso falai; porque não sois vós que falais, mas o Espírito Santo.” (Mc 13.11). O mesmo teor também encontramos em Mt 10.19-20 e Lc 12.11, como também parcialmente em Lc 21.14-15. É o próprio Deus que fala ou se utiliza do ser humano para falar. Cabe ao profeta permitir que seja usado dessa forma o seu corpo. Confia que nada de mal lhe poderá acontecer (Mt 10.28).
Nos discursos apocalípticos, o Novo Testamento apresenta a função de vigilante como tarefa de todos os cristãos, mas relaciona essa vigilância menos com aspectos sociopolíticos e mais com a segunda vinda de Jesus, como em Mt 24.42-44; Lc 12.35-40(46-48); 21.34-36; e Mc 13.32-37.
O cristão é alertado para levar a sua vida em vigilância constante, em acesa atenção para os sinais que precedem e fornecem indícios dos fatos que vão acontecer. Essa vigilância exige uma preparação que, por sua vez, tem como conseqüência uma vida orientada pela constante presença de Deus na sua vida, através da oração, da preparação física e alimentar, do estudo e da meditação na sua palavra e do exercício da comunhão.
4.Atualização da leitura bíblica
Quem interpreta corretamente?
Ezequiel apresenta momentos de espírito muito crítico às tradições do povo. Num momento, até chega a fazer uma releitura da Bíblia. Considera, p. ex., que o sacrifício dos primogênitos (Êx 13.12) é uma lei que não promove a vida (Ez 20.25-26; 33.15). Por isso, acentua que o cumprimento das leis deve levar à manutenção da vida (Ez 20.13,21). Também pressupõe que o cumprimento ou a desobediência à lei da vida é punida na própria pessoa que assim atua (Ez 18.20; 33.20), e não se deve partir para a idéia de que Deus pune as próximas gerações por causa dos pecados cometidos por gerações anteriores. É uma crítica à justificativa que o próprio mandamento contra a idolatria em Êx 20.5 contém. Semelhantemente, no livro do Deuteronômio, essa justificativa é repetida ao citar-se o mandamento em Dt 5.9, mas a ênfase se dá na misericórdia de Deus para mil gerações dos que seguem os mandamentos e na paga imediata da ação (Dt 7.10). É uma luta hermenêutica que também travou Jeremias: “Naquele tempo já não se dirá: os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados” (Jr 31.29). Era um provérbio popular, que se cita também em Ez 18.2.
Deus é justo?
Ezequiel é enfático. Considera que a retribuição é individual. Sabe que o povo exilado não deve perder-se em lamentações infindáveis sobre o passado malvado. Quem procurar a culpa do que lhe acontece apenas nos outros não encontra forças para uma atitude de construção do futuro. E é isso que interessa nesse momento. O profeta não pode restringir-se a rever os textos bíblicos para deles citar passagens. A sua reflexão é exigida para encontrar a atualidade da Palavra de Deus. É o que faz Ezequiel. Ele conhece os mandamentos escritos nos textos sagrados. Mas não se satisfaz com repeti-los. É que ele deve ter presenciado, p. ex., a incrível matança de crianças em praça pública, em cerimônias religiosas pagãs, em plena Jerusalém (Ez 20.31; Jr 7.31; 19.5; 32.35). Por isso, prega que Deus é misericordioso com os pecados cometidos, mas quer que agora a vida seja preservada. O que reequilibra o mundo que damos em herança aos que vêm depois de nós é a capacidade construtiva ou reconstrutiva, pela qual tornamos realidade o verdadeiro propósito de Deus. Deus não tem prazer no castigo, na simples e pura penalização, mas numa saída em que a vida é retomada, ainda que em condições já menos favoráveis que antes do pecado.
Nós e as autoridades
O texto da epístola, Rm 13.1-10, lembra-nos da tarefa pública da Igreja. A obediência dos cristãos às autoridades públicas não é cega. Ainda que a Bíblia parta do pressuposto de que a ordem é um dom de Deus e de que é melhor ter um governo neste mundo do que abandoná-lo à anarquia, afirma uma certa autonomia diante do Estado, p. ex., com as palavras de Pedro em At 5.29: “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens”. Cria com isso um espaço em que a afirmação individual e grupal minoritária pode subsistir. Num meio em que o estado era hostil aos cristãos, esse espaço de atuação confiante levou à coragem de enfrentar o martírio. Ao mesmo tempo, gerou uma semente que levou à mudança gradativa rumo ao reconhecimento do cristianismo por Constantino, imperador romano de 306 a 337.
Quem se manifesta em nome da Igreja?
As manifestações públicas da Igreja, desde então, puderam ser ouvidas. Certamente devemos lembrar com tristeza e lamento as atrocidades que uma Igreja poderosa cometeu ao longo da sua história. Muitas pessoas malvadas utilizaram esse poder para dominar e até trucidar partes que consideravam indesejáveis na sociedade. Hoje, essa influência da Igreja na sociedade diminuiu consideravelmente. Alguns argumentam que pessoas de outras convicções também são capazes de defender, p. ex., os direitos humanos, de modo que as manifestações seriam dispensáveis.
Por quê?
Por que ainda precisamos manifestar-nos perante a sociedade como Igreja? A Igreja não considera o fato de manifestar-se publicamente um direito seu. Ela o faz, partindo da sua necessidade de expressar a Palavra de Deus. Procura obter a atenção e o diálogo do mundo para isso. Manifesta a sua solidariedade com o sofrimento do mundo. Ela é solidária, porque segue nisso o mandamento do amor ao próximo, que se lhe tornou obrigatório em decorrência da sua relação íntima com Deus. Ela o faz consciente de que para si o Evangelho não se resume à solidariedade social, política ou caritativa, porque a sociedade perfeita e governada por um governo justo ainda não é a chegada do Reino de Deus. A esperança da Igreja ultrapassa esse tipo de expectativa.
Quem dá atenção ao que a Igreja diz?
Desde que a Igreja se manifeste com clareza e com palavras compreensíveis, haverá também quem lhe dê atenção. Até é possível que a sociedade se expresse com gratidão por uma palavra dita na hora certa. Não depende de qual autoridade eclesiástica esteja assinando o documento da manifestação. A boa qualidade do conteúdo, a objetividade e a forma dialogal deveriam caracterizar hoje as manifestações dos cristãos perante a sociedade.
A Igreja precisa falar sempre?Se ela falasse sempre, não sobraria tempo para que ela ouvisse nem mesmo o seu Deus. Mas quando a situação for de sofrimento, de supressão, de ofensa ou de ruptura dos direitos humanos, p. ex., a Igreja se manifestará. Ela não o fará porque adivinha o futuro, ainda que a análise da realidade lhe confira um certo grau de previsibilidade. Ela o faz porque não pode permitir que a sua fé seja desmentida pelos fatos, sem lutar pela verdade. Em momentos de crise ou de ameaça à liberdade, a manifestação pode ter um caráter libertador, como foi o Manifesto de Curitiba em 1970, pela IECLB. Mas é possível também encontrar situações na história em que a Igreja prefira calar-se, uma vez que qualquer manifestação significará a eliminação física dos seus membros. Certamente há gestos e ações que sempre são possíveis e falarão por si, quem sabe com maior eloqüência do que muitas palavras. Um outro fator que certamente deverá sempre ter relevância é se a manifestação da Igreja realmente representa uma ajuda que contribui para a superação de um problema. A ninguém apresentamos o serviço do amor à força, a ninguém convencemos com arrogância. Em Jesus, a verdade foi dita, mas se vestiu de humanidade, bondade e paciência. A manifestação pública do pai do filho pródigo no dia do seu retorno não foi um distanciamento dogmático das ações pecaminosas havidas, mas uma festa de graça, alegria e perdão.
Internamente podemos falar entre nós que cremos de forma parecida como se faz na epístola aos Hebreus, Hb 13.17,22: “Obedeçam aos seus professores e sigam-nos, porque eles vigiam sobre as vidas de vocês – é que eles precisam prestar contas disso –, a fim de que eles o façam com alegria e não com reclamações, pois isso prejudicaria vocês. Admoesto vocês, queridos irmãos, para que aceitem essa palavra de admoestação. É que escrevi apenas brevemente para vocês”.
5. Os pregadores da Palavra
Proclamar Libertação é um livro de auxílio para pregadores. Os profetas são uma lembrança viva de que essa tarefa encerra tremendos riscos. Entre os vários exemplos, cito apenas a frase de Oséias: “A sentinela de Efraim está com o meu Deus – é o profeta –; preparam-lhe armadilhas em todos os caminhos, agridem-no até na casa do seu Deus” (Os 9.8s). Lembro ainda Urias, contemporâneo de Jeremias e Ezequiel (Jr 26.23). Sofreu o martírio, não porque disse heresias teológicas, mas por dizer as mesmas coisas que dizia Jeremias. Quem será o nosso Aicão que nos protege da morte? (cf. Ez 33.9 – salvar a sua vida). Ser sentinela do que vem por aí é uma tarefa perigosa, porque também implica erros de avaliação e de expressão, erros de forma e de conteúdo, erros de postura e de decisão, erros de embromação, postergação, tergiversação e omissão. Mas, quem sai na chuva se molhará. Deus nos constitui em seus mensageiros, e ai de nós se não falarmos: “Pois para mim anunciar o Evangelho não é motivo de orgulho, é uma necessidade que se me impõe; ai de mim se não anunciar o Evangelho!” (1 Co 9.16).
Que é que o Espírito Santo nos está assoprando no ouvido hoje?
Para isso, cito uma palavra de Jung Mo Sung: “Afirmar a existência dos excluídos, a dignidade fundamental de todos eles e ouvir o seu clamor e testemunhar – com a presença visível da Igreja no meio dos pobres e lutas concretas em favor deles – que Deus está no seu meio é a melhor forma de negar a absolutização do mercado, de desvelar concreta e praticamente os seus limites (…) O que precisamos é a adequação do mercado ao objetivo de vida digna e prazerosa para todos os seres humanos. E, para isso, a opção pelos pobres (…) continua sendo um caminho privilegiado da Igreja e dos cristãos na sua missão de testemunhar a sua fé em Deus, que quer que ‘todos tenham vida, e a tenham em abundância’ (Jo 10.10)” (p. 133). Quer dizer que não precisamos falar apenas contra algo. A menção do fato de que há os pobres é suficiente para desmascarar a mentira dos que defendem o sistema de exclusão. A Igreja não pode defender o sistema de exclusão. Apesar disso, ela o pratica, conforme lembra muito ativamente o evangelho do dia, Mt 18.15-20. Mas a oração e todo o trabalho da Igreja devem ir na direção contrária. Diz-se que Mt 18.15-20 amaina uma radicalidade existente na comunidade de Qumrã, onde a exclusão era muito mais rápida e freqüente (TEB, p. 1894, nota g). Insere justamente a demora na execução da exclusão para favorecer a reintegração ou manutenção da unidade da comunidade. Certamente nos dias atuais, a unidade da Igreja é ameaçada constantemente, e os líderes da Igreja se vêem às voltas com muitos problemas. Nem sempre, porém, a postergação será a melhor solução. Também aqui a tarefa do atalaia não pode falhar. Se a pessoa não quiser ouvir, deveremos conceder-lhe essa opção, ainda que dolorida.
Bibliografia
KIRST, Nelson. Auxílio homilético para o 1º domingo após Trindade, Ezequiel 2,3-8a; 3,17-19. In: KAICK, Baldur van (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1977. v. 2, p. 96- 103.
SUNG, Jung Mo. Desejo, mercado e religião. 3. ed. Petrópolis : Vozes, 1998.
TEB. Bíblia Tradução Ecumênica. São Paulo : Loyola, 1994.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia