Prédica: João 17.1-11
Leituras: Salmo 47.1-8 e I Pedro 4.13-19
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 7º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 12/05/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema: Páscoa
1. Observações exegéticas
O texto em pauta é parte da afamada “oração sacerdotal” de Jesus, que compreende todo o capítulo 17 do Evangelho de João. Antes de enfrentar a paixão e a crucificação, Jesus levanta seus olhos ao céu e se dirige em prece a seu Pai (v. 1). A oração encerra os assim chamados discursos de despedida (13.31-16.33), um bloco específico do Evangelho de João. Jesus prepara seus discípulos para o tempo de sua ausência física. Sua atuação neste mundo chega a termo. Ele volta para o Pai. Mas os discípulos não permanecerão órfãos (14.18). Virá o Espírito Consolador. Este manterá vivo o testemunho de Jesus e conduzirá a comunidade a toda a verdade (cf. Jo 16.13,22). Também a oração deste capítulo faz parte da herança que Jesus deixa para seus seguidores. É oração aberta, é testemunho e intercessão, extremamente significativa para a existência cristã em todos os tempos.
A delimitação do texto é nada feliz. Pois os vv. 12 a 16 fazem parte da intercessão que inicia no v. 9. Mesmo não incluindo esta parte no texto da prédica, é preciso tê-la em mente. No mais, destacam-se claramente três blocos:
a – vv. 1-5: a prece pela mútua glorificação de Pai e Filho. Assim como Jesus glorificou a Deus na terra, assim Deus o que ir glorificar agora, devolvendo-lhe a glória que ele tinha como prexistente (vv. 4 e 5). Evidentemente, também como verbo encarnado Jesus tinha glória (1.14). Tinha o poder de conferir a vida eterna (v. 2), isto é, mediar o conhecimento de Deus (v. 3). E, no entanto, a glória do Jesus terreno era oculta, não-plena, capaz de ser agredida, como a cruz vai revelar mais uma vez. Mas está chegada a hora de Jesus deixar o mundo e de regressar para onde veio.
b – vv. 6-8: breve retrospecto à atuação de Jesus como revelador de Deus. Em Jesus e por ele, Deus mostrou a sua face. Nem todos a enxergaram. Somente quem tem sido despertado pelo próprio Deus, ou seja aqueles e aquelas que Deus deu a Jesus Cristo (v. 6) perceberam a revelação. Estes/as creram e descobriram em Jesus o enviado de Deus (vv. 7 e 8).
c – vv. 9-11: o início da intercessão de Jesus pelos discípulos. Jesus pede a Deus que os “guarde no seu nome” e os mantenha unidos (v. 11). A seguir, vai rogar que Deus os santifique na verdade (vv. 17s), que mantenha sua unidade “para que o mundo creia” (vv. 20s) e que os conduza à perfeição (vv. 24s). A restrição aos vv. 1-11 exige concentração da atenção à guarda dos discípulos e à unidade, aliás, assunto suficiente para a prédica.
A teologia em evidência neste texto traz marcas tipicamente joânicas. A pessoa histórica de Jesus revela Deus neste mundo (v. 6). Indiretamente, o texto remete às palavras “eu sou” (6.35; 8.12; etc.), que especificam a revelação. Em Jesus e por ele, as pessoas têm o pão da vida, a porta, o bom pastor, a luz, a verdade, o caminho e a ressurreição. Jesus veio trazer “vida”, “vida em ambundância” (10.10), “vida eterna” (v. 2). Quem conhece Deus assim como Jesus o revelou tem a salvação. Em João, existe uma proximidade muito grande entre “conhecer” e “crer” (cf. 6.69). Quem reconheceu em Jesus o enviado de Deus é pessoa que também crê. Os discípulos crêem em Jesus porque viram nele a glória de Deus.
Isto porque a missão de Jesus consistia exatamente em glorificar Deus no mundo. Jesus, a um só tempo, dá glória a Deus e revela a glória divina. Faz Deus conhecido na terra. É esta a obra a que Jesus se refere no v. 4 e que agora concluiu. Em termos dos evangelhos sinóticos, poderíamos dizer: Jesus revelou o Reino de Deus. Ele, o Filho, manifestou a graça, o juízo e o amor do Pai, vindo em socorro de quem afundou nas trevas. Com Jesus, volta a luz ao mundo, o caminho a Deus se abre, reemerge a verdade (14.6). É dessa forma que Jesus glorificou Deus, por palavra e ação. E ele vai fazê-lo não por último por sua morte na cruz. Por sua vez, Deus vai engrandecer o nome de Jesus, mediante a ressurreição do crucificado. Mas já agora um brilho divino envolve Jesus. É cego quem não o enxerga.
É desse brilho que o mundo necessita. Pois “jaz no maligno” (1 Jo 5.19). Trevas o cobrem. Em João, “mundo” é quase sinônimo de desgraça (cf. W. G. Kümmel, p. 328s). Em coerência com isso, Jesus não roga pela preservação do mundo, e sim, pela guarda dos seus no mundo (v. 9). Ainda assim, o mundo não está sendo endiabrado. Ele é objeto do amor de Deus (Jo 3.16) e é chamado a aprender a fé (v. 21). Deus vem para o que é seu (1.11). Não abandona sua criação. Quer resgatá-la da perdição.
Em meio a este mundo, Jesus constituiu a sua comunidade (vv. 7 e 8). São os seus discípulos e suas discípulas. São testemunhas da revelação de Deus que houve em Jesus. Mas devem agora viver sozinhos, sem o seu mestre. Na verdade, ele continua presente através do Espírito Santo. Mas eles continuam vivendo no mundo e, por isso, sofrem ameaças. Jesus intercede por eles. Pede a seu Pai que guarde a comunidade e mantenha sua unidade. Está em mira a comunidade posterior depois da Sexta-feira Santa e da Páscoa. A oração de Jesus a acompanha.
2. Pensamentos meditativos
Chama a atenção, neste texto, que vida eterna é concebida como “conhecimento de Deus”. Logo, perdição consiste em seu contrário, a saber, em desconhecer Deus e em desconhecer Jesus Cristo, seu enviado (v. 3). Não é falado em “pecado”, embora o pecado seja exatamente este: não saber quem é Deus, respectivamente não querer sabê-lo. A identificação do mal deste mundo pode lançar mão de muitos termos. Mortal ignorância vitimou a humanidade. Perdeu a noção de Deus, tornou-se cega e surda para ele, desconsidera Jesus. O mundo se tornou-se “ateu”. Se esta falta de conhecimento de Deus é voluntária ou não, em última instância não importa. Pode ser proposital (cf. Rm 1.21), pode ser circunstancial (cf. At 17.23). Sempre será fatal. Pois sem Deus não dá para viver. Quem perde Deus perde a vida. Vida autêntica, ou seja “vida eterna”, se condiciona-se ao conhecimento de Deus. É o que João afirma. Será verdade isto?
A afirmação significa verdadeira provocação nos dias atuais. Pois para muitos não há palavra mais problemática do que esta: “Deus”. Vivemos na era da informática, da informação total. Mas sobre Deus não há informação segura. Tudo é hipótese. Os conceitos são muitos, e as religiões também. Cada qual fala de Deus a seu modo. Vivemos em época de “confusão teológica”, de caos religioso, de um novo “politeísmo”. Vejamos isto mais de perto:
a – Para não poucas pessoas, Deus sumiu por completo. O escritor judeu Martin Buber tem falado num “eclipse de Deus” em nossos tempos. Os motivos podem ser vários. Podem ser de ordem “científica”, dizendo que Deus é hipótese não-demonstrável. Ou podem ser de ordem “ideológica”, dizendo que Deus bloqueia a libertação do ser humano. Na Alemanha Oriental, a propaganda atéia tem sido tão eficiente que a fé religiosa sobrevive apenas em diminutas proporções. Também no Brasil, a negação de Deus não é raridade. Será Deus um supérfluo e até um estorvo na vida da gente? Interessante é que a fé em Deus pode ser liquidada. Mas não o anseio por ele. O ser humano tem estrutura religiosa. Se não “glorifica” Deus, vai glorificar ídolos. Todo mundo cultua algo de sagrado. Que será? Vai produzir “vida eterna”? O “ateísmo”, em sentido radical, sempre se tem mostrado inviável. A pergunta não é se Deus existe; a pergunta é qual o Deus que estamos cultuando.
b – Outros dizem: Deus, sim! Mas não do jeito como dele falam os cristãos. Deus é uma força, uma “energia positiva”, não uma pessoa. Ora, isto significa diminuir Deus. Ele já não mais é um “tu”. Passou a ser uma “coisa”. E a uma coisa não se ora. Uma energia não ama. É algo abstrato, frio, sem alma. Naturalmente, Deus não pode ser imaginado como pessoa humana. Ele é Espírito (4.24). Mas é Espírito que age como pessoa, que se comunica, que é como Pai para seus filhos. Em Jesus, Deus apresenta-se em definitivo como pessoa a quem podemos confiantemente dirigir-nos. Em países secularizados, estatísticas apuraram que o percentual de pessoas que crêem num “anjo da guarda” é maior do que o de pessoas que crêem em Deus. Que significa isto? O ser humano necessita de um Deus “Pai” (e “Mãe”). Sem ele, de fato, somos órfãos neste mundo, “menores abandonados”.
c – Enfim, o que problematiza o conhecimento de Deus é a variedade de imagens a seu respeito existente nas religiões. Onde está o Deus “verdadeiro”? É a difícil distinção entre Deus e os ídolos. Não digamos, por favor, que somente os outros são idólatras. Por demais vezes, também os cristãos transformaram Deus em fantoche de seus interesses e descaracterizaram o Pai de Jesus Cristo. Os ídolos dividem a comunidade (v. 11). Levam ao abismo. O conhecimento de Deus precisa ser readquirido sempre de novo. Jamais é conquista definitiva. Conforme a Bíblia, Deus é amor. Quer ser conhecido, crido, adorado como Pai amoroso, bem assim como Jesus neste texto o entitula (v. 1). A relatividade dos conceitos desfaz-se quando de Deus se fala “evangelicamente”. É este o Deus revelado por Jesus: o Deus que amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito por ele (3.16). Aqui nós temos o critério por excelência para distinguir Deus e ídolos. Ídolos não amam. Eu é que amo os ídolos. O Deus de Jesus Cristo ama. Esta é a diferença.
O tema do conhecimento de Deus é por demais amplo para ser exaurido em poucas linhas. Mas é inevitável. Pois é a fé que faz as pessoas. “Diga-me em que tu crês, e eu te digo quem tu és.” Deus não permite ser considerado um assunto particular. Devemos discutir sobre o deus em que nós cremos, que glorificamos e ao qual rendemos culto. “Vida” está em jogo, vida individual e social, presente e futura, vida eterna.
3. Sugestões para a prédica
Guilherme Lieven coloca, em sua meditação sobre este texto, a palavra “glorificar” no centro da atenção. Fala no confronto entre a glorificação de Deus por Jesus e outras “glorificações” de deuses em nosso dia-a-dia. Importa resgatar o espaço de Deus no mundo. É uma boa pista para a prédica. A nossa sugestão vai no sentido de explorar o tema do “conhecimento de Deus”, conforme exposto acima. A glorificação de Deus por Jesus e a glorificação de Jesus por Deus aí estão implícitas.
A prédica poderia iniciar com a ameaça da orfandade a que os discípulos estão expostos. Jesus está se despedindo. Eles terão que enfrentar sozinhos o mundo. É esta a situação histórica do texto. A prédica deveria rapidamente descrevê-la, para imediatamente perguntar: e nós não estamos, de fato, abandonados no universo? Cosmonautas no vazio? Órfãos no espaço e na terra? Deus, onde estás?
Falar de Deus não é fácil. Nunca foi. A prédica não poderá passar ao largo das dificuldades do discurso sobre Deus, especialmente hoje. Mas não deverá perder mais tempo nisso. Mais importante é refletir sobre as consequências da “perda” de Deus. Deus faz falta – ou? Deus pode ser excomungado, mas a “religião” (mesmo em suas formas secularizadas) permanece. A fé busca substitutos. O ser humano necessita de objetos de “glorificação”. Que resta do ser humano – sem Deus?
O sumiço de Deus pode ser culposo. Mas não deveria ser motivo de raiva, e sim de compaixão. Não adianta castigar a idolatria de nossa época ou demonizar os cultos não-cristãos. A atitude de Jesus foi diferente. Compadeceu-se das multidões quando viu que eram “como ovelhas que não têm pastor” (Mc 6.34). Quando a perspectiva do Reino de Deus desaparece ou sofre perversão, não é a crítica que vai sanar a enfermidade. A terapia consiste no testemunho.
É o que vemos em Jesus. Revelou Deus e o fez conhecido. Ele desafia “ateísmo”, “niilismo”, “politeísmo”. Contesta a resignação, a usurpação da autoridade divina, o desrespeito a seu nome e sua vontade. Não proclama um “novo” Deus. Pois o Pai de Jesus Cristo é o criador de céus e terra, o Deus de Abraão e dos profetas. Mas ele traz esse Deus para perto das pessoas, abre-lhes os olhos para seu amor, sua graça, a realidade que ele representa. Não é verdade que sejamos órfãos neste mundo. Deus está presente como Espírito da Verdade, Consolador, Espírito Santo. Nós temos o seu verbo, seu amparo, sua promessa.
A pergunta não é se Deus existe ou não.A pergunta é se nós temos sensores para captar sua realidade, se temos as antenas para sintonizar a sua “emissora”, se temos ouvidos para entender a sua mensagem. Se sim, saberemos que não estamos cercados do nada nem sujeitos à ação de forças demoníacas. Somos carregados por seu amor, na vida e na morte, assim como Jesus o demonstrou por seus gestos, seu discurso, por sua morte e ressurreição. E se cremos no amor de Deus, vida é que não vai faltar. Teremos a vida eterna.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados: Senhor, perdoa-nos, se por demais vezes temos vivido como se tu não existisses. Temos ignorado a tua palavra e ficamos devendo o testemunho a respeito dela aos nossos semelhantes. O mundo está cheio de sinais de tua presença, lembrando-nos o teu amor e a tua exigência. Desculpe-nos a nossa cegueira e até mesmo nossa obstinação. Tem compaixão de nós, Senhor.
Coleta: Senhor, estamos aí, para cantar louvores a teu nome. Agradecemos-te o interesse que tens em nossa sorte. Não nos abandonas. E mesmo se nos impões sofrimento, tu estás conosco e nos amparas. Dás força para superar. Também Jesus Cristo sofreu, sofreu por amor a nós. Tu o ressuscitaste da morte. Ressuscita também a nós, já agora quando tropeçamos e caímos e, em definitivo, quando nos despedimos deste mundo. Tu tens promessa de vida para nós. Dá-nos fé nessa promessa para que espante os nossos temores, as dúvidas, as fraquezas e nos faça alegres. Amém.
Intercessão: Senhor, nós somos pessoas privilegiadas. Sabemos que não é o cego acaso que governa nossa vida nem forças demoníacas, e, sim, a tua graciosa vontade. Nós estamos em tuas mãos. Obrigado por nos amparares. Nós te rogamos: Queiras dar a mesma certeza também a outras pessoas, particularmente àquelas que passam por aflições e provações. Nem sempre a tua presença é perceptível. Revela-te, Senhor, e faze público o teu amor, tua vontade, teu poder. Rogamos pelas pessoas doentes, moribundas, desesperadas, pelas desempregadas, abandonadas, pelas pessoas em situação difícil. Há por demais conflito em nosso mundo, guerra, assassinato. Tu o sabes, Senhor. Transforma a mente das pessoas, muda-lhes a sorte, transforma tristeza em alegria. Sobretudo te pedimos por tua Igreja, para que não fique devendo seu testemunho a ninguém. Dá coragem aos membros para falar dos teus feitos e para ajudar onde ajuda é requerida. Fortalece entre nós a fé, afugentando desânimo e temor. Dá-nos força para enfrentar as lides de mais uma semana. Segura-nos na tua mão….
5. Bibliografia
BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado. São Paulo : Paulinas, 1984.
BULTMANN, Rudolf. Das Evangelium des Johannes. 16. Aufl. Göttingen : Vandenhoeck, 1959. (Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament).
FUNKE, Alex. Joh. 17,1(2-5)6-8. In: Neue Calwer Predigthilfen : Fünfter Jahrgang: Bd. A. Stuttgart : Calwer, 1982. p. 214-221.
KÜMMEL, Werner G. Síntese Teológica do Novo Testamento. São Leopoldo : Sinodal, 1974.
LIEVEN, Guilherme. João 17,1-11. Meditação. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1995. v. 21, p. 148-152.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia