Prédica: Miquéias 6.1-8
Leituras: I Coríntios 1.26-31 e Mateus 5.1-12
Autor: Wanda Deifelt
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 03/02/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema: Epifania
1. O contexto do texto
O livro de Miquéias é um dos menores do Antigo Testamento, mas, apesar de ter apenas sete capítulos, tem uma longa história. Ele começou a ser escrito na época de Miquéias, no último quarto do século VIII a.C. (por volta dos anos 725-700), mas a ele foram se incorporando as palavras de muitas outras pessoas que compartilhavam as opiniões de Miquéias. Assim, há muitas discussões entre pesquisadores bíblicos acerca da estrutura do livro e da autenticidade dos seus ditos.
Miquéias é um camponês, um ancião de Morsete-Gate, um pequeno vilarejo quase na fronteira do reino de Judá com a Filistéia. Suas palavras em muito se assemelham às de Amós, um outro profeta rural. As palavras de Miquéias têm a perspectiva de quem vivencia o campo, trazendo uma abordagem dessa realidade. Ele demonstra que a sabedoria popular, colona, não fica aquém da inteligência dos letrados das cidades.
A questão agrária é o pano de fundo que motiva a elaboração do livro. No estilo profético de denúncia e anúncio, é apresentada no livro a grave situação em que se encontra o povo simples. Para enfrentar os assírios, Ezequias iniciou um programa de reforma de Jerusalém, tornando-a cidade fortificada, reaparelhou o exército, contratou mercenários. Tudo isto implicou aumento de tributos e arregimento de jovens para os trabalhos de construção. Miquéias fala de Jerusalém como cidade construída com sangue (3.12), pois o tributo para o sustento da corte e do exército e o sustento do império colocava um jugo intolerável sobre os agricultores. Eram eles que custeavam tudo isso com a sua produção.
Quando os agricultores não pagavam suas dívidas, credores tomavam as terras dos devedores e as transformavam em latifúndios lucrativos. Nesse processo, era dos pequenos agricultores que mais se exigia. Também eram eles que mais sofriam com o recrudescimento das políticas no país. Quando Senaqueribe invadiu Judá em 701 a.C., tomou 46 cidades do interior e deportou parte de sua população, como represália à revolta de Ezequias. Foi o campesinato quem pagou pela política insensata de seu rei. Assim também com as políticas econômicas do país: os agricultores perdiam suas terras enquanto um grupo pequeno acumulava propriedades e posses.
Essa realidade é descrita com palavras fortes no próprio livro de Miquéias, ao denunciar balanças falsas e bolsas de peso enganosas. O autor também denuncia a violência: “os ricos da cidade estão cheios de violência, e os seus habitantes falam mentiras, e a língua deles é enganosa em sua boca” (Mq 6.12). Por toda a parte se vêem corrupção, mentiras e engano. Nessa luta pela sobrevivência, os mais fortes são mais rápidos e espertos, ao passo que os pequenos sofrem com as políticas que estes desenvolvem.
Manassés, sucessor de Ezequias, embora fortemente condenado pelo seu caráter idolátrico, representou um alívio econômico para o campesinato judeu, pois conseguiu recuperar o território perdido pelo seu predecessor. No entanto, Manassés continuou cobrando tributo dos agricultores, já que Judá deveria pagar tributo ao império. Aliás, é bem provável que os assírios tivessem devolvido os territórios perdidos por Ezequias justamente para garantir a arrecadação de tributos pelo novo monarca, que era fiel ao império assírio. O reinado de Manassés, com seu clima religioso, cultural e econômico, parece ser o contexto das denúncias de Mq 6.1-8.
2. O texto e seu contexto literário
Com relação à estrutura do livro, alguns o dividem em quatro partes (capítulos 1-3; 4-5; 6.1-7.7; 7.8-20). Outros o dividem em três, identificando também o contexto histórico de cada bloco:
Primeira parte: 1.2-3.12, incluindo trechos do capítulo 5. Este texto seria do agricultor-profeta Miquéias, datado do século VIII a.C.
Segunda parte: 6.1-7.7. Este texto teria sido escrito por discípulos de Miquéias ou profetas do reino de Israel, datado dos séculos VIII-VII a.C.
Terceira parte: 4.1-5,14; 7.8-20, junto com a redação final. Estes textos seriam releituras exílicas e pós-exílicas, datadas dos séculos VI-V a.C.
Sobre o texto em questão, Mq 6.1-8, há diferentes opiniões quanto à sua autoria. Alguns o defendem como autenticamente de Miquéias, outros o colocam como pertencente ao período pós-exílico, e outros o atribuem a um outro profeta, contemporâneo de Miquéias (que teria atuado no Reino do Norte, Israel). A questão da autenticidade do texto não enfraquece o seu argumento, ou seja, que pelo fato de não ser de Miquéias ele tenha menos valor. Pelo contrário, fortalece a sua argumentação porque, aparentemente, o assunto que o texto aborda é tão importante que ele aparece sempre de novo, na boca de muitas pessoas, como uma realidade recorrente.
Mq 6.1-8 apresenta a seguinte estrutura:
a) vv. 1-2 – Fala do profeta
b) vv. 3-5 – Fala de Javé
c) vv. 6-7 – Fala do povo
d) v. 8 – Fala do profeta
O texto inicia com uma conclamação e tem características de uma disputa jurídica. A conclamação repete, nos versículos 1 e 2, que montes e outeiros, ou montes e fundamentos da terra são testemunhas de uma disputa jurídica. A utilização de elementos da natureza como testemunhas de uma disputa é comum na literatura profética, pois a natureza representa, a exemplo de jurados em um tribunal contemporâneo, elementos confiáveis para apreciar a disputa que inicia.
No v. 1, Javé mesmo conclama alguém a levantar-se e defender sua causa diante das testemunhas, ao passo que no v. 2 é o profeta quem conclama as testemunhas a ouvirem a controvérsia que Javé tem com seu povo. A partir do v. 2 fica evidente contra quem Javé está em disputa: é com seu próprio povo, Israel, que Javé entrará em juízo.
A duplicação na formulação levou especialistas na área bíblica a concluírem que 6.1 é a abertura para toda a seção final do livro de Miquéias, e não somente para a perícope. Assim, compreende-se que o restante do texto também está sob essa convocação e que o v. 1 deva ser considerado sob essa ótica.
Os dois versículos iniciais situam os versículos seguintes dentro de uma linguagem litigiosa: o v. 1 propõe que o povo se levante e apresente seus argumentos, o v. 2 mostra que Javé apresentará os seus. Nesta seqüência, no entanto, os argumentos do povo não aparecem. O texto silencia acerca dos argumentos judiciais que o povo empregaria ou o que o povo tem contra Deus.
O v. 3 dá pistas nesse sentido (“que te tenho feito, com que te enfadei?”), mas não explicita o conteúdo. Em grande medida, as perguntas apresentadas parecem ser mais retóricas do que práticas. Talvez justamente o silêncio do texto acerca desse ponto (o povo não responde à pergunta porque não tem o que dizer) seja fundamental. O povo age como se tivesse razão para queixar-se de Deus, de estar aborrecido ou incomodado com ele. Mas quando é confrontado, ou seja, quando é conclamado a dizer sua palavra de protesto e arrolar as causas de seu enfado, simplesmente cala. Não há o que dizer.
As atitudes do povo que desagradam Deus são aquelas colocadas no final da perícope: o povo não pratica a justiça, não ama a misericórdia e não anda humildemente com seu Deus. Diante disso, Javé os chama à razão e os desafia a apresentar seus argumentos. Porém, seu apelo para que respondam à interpelação não é seguida por uma palavra do povo. Antes, Javé mesmo toma a iniciativa e apresenta argumentos em seu favor.
Os versículos 4 e 5 arrolam alguns dos feitos de Javé em favor de seu povo. O texto menciona o êxodo, a saída do Egito e da casa de servidão; a liderança de Moisés, Arão e Miriã, que o guiaram pelo deserto; a passagem pelo território de Moabe, quando o rei Balaque queria que Balaão amaldiçoasse o povo, mas este o abençoou (Nm 22-24); a terra prometida, na marcha de Sitim a Gilgal (Js 3.1-4.19). Esses acontecimentos são enumerados como “atos de justiça” (a exemplo de 1 Sm 12.7).
Dois verbos chamam atenção no v. 5: lembrar e conhecer. Ambos são a sustentação da memória, que permite ao povo reconhecer os feitos de Javé pelo seu povo. Sem memória, o povo se afasta de Deus, praticando a injustiça e a iniquidade. Cabe a Deus restaurar a memória de seu povo, já que, aparentemente, esse povo facilmente esquece o que Deus fez por ele. Assim, os “atos de justiça” que Deus faz pelo bem de seu povo não têm eco na prática de seus seguidores. À prática justa de Deus o povo responde com injustiças. Ainda assim, Javé não se dirige ao povo com palavras ameaçadoras. Chama, isto sim, à recuperação da memória.
A resposta do povo vem nos versículos 6 e 7. A resposta não é a explicação pelo afastamento de Deus e de seu caminho de justiça. Aliás, o tom do discurso desvia da disputa jurídica como o texto iniciou. A linguagem da disputa judicial dá lugar à da instrução sacerdotal, litúrgica. Aqui parece que já aconteceu um veredicto e que o povo mesmo se julgou culpado. No entanto, apesar dos versículos darem essa conotação de reconhecimento de culpa, o seu conteúdo aponta para ainda mais um distanciamento. Ao tentar reparar a culpa e mostrar seu arrependimento, o povo retoma a tradição cúltica, mas de modo tão exagerado que não é crível. Os versículos 6 e 7 mostram que o povo ainda não entendeu o que Javé espera dele.
A tradição cúltica prevê que é necessário apresentar-se diante de Deus com uma oferta. Quando a culpa é reconhecida pelo ofertante (de acordo com a tradição do Levítico, especialmente capítulos 4-7), é necessário apresentar-se no templo, diante de Deus, com um sacrifício. No entanto, o exagero expresso nos versículos chama atenção: começa com holocaustos, seguindo em progressão até o assassinato de crianças. Holocaustos (no plural), bezerros de um ano (no plural), milhares de carneiros, 10 mil ribeiros de azeite e o sacrifício do primogênito são desconhecidos da realidade litúrgica. Este último, o sacrifício humano, é tido como abolido há muito tempo (Gn 22).
A palavra do povo explicita, nos versículos 6 e 7, de que povo se está falando. Não é do povo sem posses, sem terra, sem propriedades, destituído de direitos e dignidade que o texto fala. Antes, revela-se que o interlocutor chamado à disputa judicial é da elite reinante. Quem teria tantas riquezas a ofertar? Somente os mais ricos entre a população, a administração estatal, o rei e seus funcionários, a corte e a elite dominante. O exagero do sacrifício parece querer remediar o erro com ofertas custosas e violentas. Este povo parece pensar que quanto mais sacrifícios trouxe a Javé, mais rapidamente sua culpa será perdoada. Esquece o que Oséias já havia afirmado anteriormente: “pois misericórdia quero, e não sacrifício; conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Os 6.6).
O versículo final retoma a memória. Agora é a vez do profeta afirmar que Deus já declarou o que é bom. O que Deus pede é que se pratique a justiça, ame a misericórdia e ande humildemente com o seu Deus. Trata-se de organizar a vida em torno dos valores da igualdade, liberdade e solidariedade para com os mais fracos. É sentir-se irmanado com aquelas pessoas que necessitam de ajuda e que têm poucos recursos. É ter humildade em reconhecer que somos criaturas de Deus, e não seus criadores. A ignorância desse povo (ou melhor, a liderança do povo) quanto às exigências de Javé, demonstrada nos versículos 6 e 7, é denunciada pelo profeta. Mas este, no versículo 8, chama o povo de volta para a prática da vontade de Deus. O povo deveria saber o que é bom, o que é exigido por Javé: justiça, misericórdia e humildade. Este é o caminho de Deus.
3. O texto na perspectiva da pregação
A pregação sobre o texto de Miquéias certamente enfatizará também os textos auxiliares. O texto de Mt 5.1-12 oferece uma referência importante para a prédica, considerando que as bem-aventuranças mencionadas por Jesus propiciam uma relação direta com temas desenvolvidos por Miquéias: justiça, misericórdia e humildade. O texto de 1 Co 1.26-31 lembra que Deus escolheu as coisas loucas, fracas, humildes e desprezadas do mundo para reduzir a nada as que são. Em comum os textos têm uma opção pelos fracos, humildes, despossuídos e desprezados. Aqueles que nada são diante dos olhos do mundo são considerados preciosos diante dos olhos de Deus.
A pregação poderia enfatizar a memória. Que memória temos da presença e atuação de Deus por nós? Deus age na sua história, desde o início da criação. Deus atuou no êxodo, ajudando um povo pobre e escravo a sair da opressão do Egito, e em Jesus, que é o Deus que se fez carne, habitou entre nós, morreu e ressuscitou. Deus continua atuando hoje. Em todos os tempos, Deus nos relembra o que já declarou: o que importa é praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com Deus. Nestas três coisas se resume o que é bom diante dos olhos de Deus.
Também nós precisamos lembrar de nossa história com Deus. Em muitos sentidos, nossa mentalidade moderna se parece com a sociedade que Miquéias contestava: cremos poder comprar aceitação, alcançar sucesso através de nossos esforços pessoais, receber reconhecimento através de nossos sacrifícios materiais, desfrutar de prestígio e poder pelo que temos e sabemos. Nisso tudo, Miquéias é tremendamente atual. Já não sacrificamos animais, azeite ou posses no templo, mas temos uma mentalidade de sacrifício.
Primeiro, vivemos em uma sociedade que sacrifica a qualidade de vida da maioria da população em favor dos interesses de um grupo bastante pequeno. Semelhante à época de Miquéias e de outros profetas, a política e a economia modernas não servem à população simples, que nem ao menos entende a linguagem sofisticada dos juros, impostos, alíquotas, mas que experimenta na carne as suas conseqüências. Eram os pequenos agricultores que financiavam a expansão do império e a opulência de seus governantes nos tempos antigos. Hoje, é a classe média que, proporcionalmente, mais paga impostos no Brasil. São os pequenos agricultores, os que produzem para o consumo, que mais sofrem com os altos juros bancários. São os pequenos e médios empresários os que menos isenções têm na arrecadação fiscal. Da parte do governo ouve-se o discurso de que o povo deve fazer sacrifícios (que incluem racionamento de energia, de água, etc.).
Segundo, introjetamos a mentalidade do auto-sacrifício. Não raro se ouve dizer que, para chegar a algum lugar, ter sucesso, beleza ou poder, é necessário fazer algum sacrifício (privando-nos, por exemplo, de algo de que gostamos). Nada poderia estar mais distante da concepção paulina, redescoberta por Martim Lutero, de que somos justificados por graça, mediante a fé. Sacrifícios não são o caminho para a aceitação nem de Deus tampouco do próximo. Mesmo que nossa cultura e sociedade assim o apregoem, as nossas obras não nos garantem méritos. Isto Miquéias reafirma ao final da perícope, muitos séculos antes de Paulo tê-lo feito. Miquéias não abole os sacrifícios cúlticos, mas os coloca dentro de uma dimensão ética, vivencial. O que importa é praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com nosso Deus.
Terceiro, vivemos em um tempo de sacrifício de outras pessoas para conquistar nossos próprios objetivos. Nunca vivemos tempos tão individualistas como os atuais: o interesse do indivíduo sacrifica o bem-estar da coletividade. A ênfase cada vez maior no prazer solitário (virtual), apesar da massificação da cultura, leva a um desinteresse cada vez maior também pela Igreja, pela comunidade de fé. Esta falta de percepção comunitária e familiar é criticada por Miquéias ao revelar que os poderosos não hesitariam em sacrificar seus próprios filhos (“darei o meu primogênito pela minha transgressão?”). É uma crítica à mentalidade de sacrifício moderna, quando o tempo de convívio em família, com amigos e amigas, na comunidade é deixado de lado em favor de interesses individualistas.
Andar no caminho de Javé é ter sensibilidade para as necessidades das pessoas que nos cercam, reafirmar a nossa humanidade e dependência de Deus, comprometer-nos com a justiça e a igualdade de direitos e oportunidades para toda a gente. O que é bom aos olhos de Deus são a misericórdia, a solidariedade, o comover-se com a história de outros homens e mulheres e externar a nossa compaixão de modo concreto, palpável. O que Deus espera de nós é a humildade de reconhecer que não somos deuses e deusas, que decidimos sobre a vida ou da morte de nossos semelhantes. Somos, isto sim, seres criativos e partilhamos do dom criador de Deus para colocar esses dons e talentos a serviço do testemunho de um Reino de justiça, amor, paz.
Bibliografia:
DREHER, Carlos A. Miquéias 6.1-8. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1998. v. 24, p. 79-87.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia