Prédica: Atos 3.13-15,17-26
Leituras: Salmo 148 e João 20.19-31
Autor: Baldur van Kaick
Data Litúrgica: 2º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 27/04/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
1.Introdução
O texto Atos 3.13-15,17-26 contém um discurso de Pedro dirigido ao povo de Jerusalém, que havia ficado atônito com a cura de um coxo realizada diante do templo. Motivado pela perplexidade do povo, Pedro explica a cura e, aproveitando o ensejo, narra os acontecimentos da crucificação e ressurreição de Jesus Cristo. Os autores da ordem de perícopes excluíram do discurso de Pedro os v. 12 e 16 nos quais Pedro se refere à cura do coxo e criaram com isso um texto que pode ser lido com proveito também em um culto de páscoa. No ano passado, em um caso semelhante, procurei manter o contexto narrado no livro de Atos e sugeri contar, na páscoa, a história de Cornélio; posteriormente considerei esta decisão errada do ponto de vista homilético. Neste ano, decido manter o recorte proposto pela ordem de perícopes e desconsiderar na prédica o contexto que narra a cura do coxo. A proposta do recorte é a seguinte: excluídos os versículos que conectam o discurso de Pedro ao acontecimento específico da cura, este texto contém uma boa mensagem para um culto de páscoa. Concordo com a decisão dos autores da ordem de perícopes. Antes da leitura, poderemos dizer à comunidade que o texto faz parte de um discurso de Pedro e que leremos, neste 2° domingo da páscoa, apenas as partes que nos ajudam a compreender a mensagem da páscoa.
Neste auxílio homilético, pretendo destacar, na parte exegética, a atitude dos judeus, a reação de Deus à crucificação de Jesus Cristo e o chamado de Pedro ao arrependimento; na parte homilética, reflito sobre a mensagem, as resistências nos ouvintes e como superá-las, o alvo da prédica e o convite a fazer à comunidade.
2. O texto – A responsabilidade dos judeus pela morte do Autor da vida
O discurso de Pedro recorda aos ouvintes a crucificação de Jesus Cristo. Mas Pedro não apenas recapitula os acontecimentos que leva ram à crucificação; ele denuncia os seus ouvintes como os responsáveis pela morte de Jesus Cristo, declarando que eles traíram e nega ram o Santo e Justo (v. 14), afirmando que Pilatos queria soltá-lo, mas que eles deram preferência a um homicida (v. 13-14) e comentando que eles mataram o Autor da vida (v. 15). Pedro destaca, em seu dis curso, alguns motivos presentes em outros textos da Bíblia, como, por exemplo, o de que, com a crucificação de Jesus se cumpriu o que havia sido anunciado pelos profetas (v. 18) e o de pecar por ignorância e de que isto é levado em conta por Deus (v. 17). Sobre isto veja l Tm 1.12-13: Sou grato para com aquele que me fortalece, Cristo Jesus, nosso Senhor, que me considerou fiel, designando-me para o ministério, a mim, que, noutro tempo, era blasfemo, e perseguidor, e insolente. Mas obtive misericórdia, pois o fiz na ignorância, na incredulidade; Lc 23.34: Contudo Jesus dizia: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.; Rm 3.25: (…) por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos. Mas sobressai, como parte importante do discurso de Pedro, a responsabilização dos ouvintes pela crucificação de Jesus Cristo. Devemos estar atentos para o antijudaísmo presente na história da interpretação de textos como este. Neste lugar, contudo, vale a seguinte reflexão: o evangelho é para ser pregado, conforme o plano de Deus, primeiro aos judeus e depois aos gentios. Esta é a sequência prevista na história da salvação (Rm 1.16). É correto, portanto, que Pedro mostre aos judeus, como os primeiros destinatários da boa nova, sua responsabilidade na crucificação de Jesus Cristo. Na prédica, naturalmente deverá ocorrer a reflexão sobre a nossa responsabilidade.
3. A reação de Deus à crucificação de Jesus Cristo
Pedro proclama a ressurreição de Jesus Cristo. Dessarte, matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas (v. 15). Pedro esclarece que o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou a Jesus (v. 13). Os apóstolos são testemunhas disso. Schille, em seu comentário a Atos dos Apóstolos, escreve: Deus faz precisamente o contrário daquilo que os judeus fizeram a Jesus (p. 127). Deus responde à crucificação com a ressurreição. Deus desfaz o crime que praticaram. Conforme o relato de Mateus, Jesus pergunta na cruz: Eii, Eli, lema sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? (Mt 21.4G). Na manhã da páscoa, Deus mostra que não o abandonou. E Deus ressuscita Jesus para que, por meio dele, venham tempos de refrigério (v. 20) sobre todos e para que, por meio dele, sejam abençoadas todas as nações da terra (v. 25). Com citações do Antigo Testamento, Pedro reforça o anúncio da ressurreição e da salvação que vem por meio do ressuscitado.
Pedro, entretanto, anuncia mais: ele destaca que Deus ressuscitou Jesus Cristo para que este seja uma bênção também para aqueles que o assassinaram. Isto significa: na manhã da Páscoa, Deus não somente reabre o caso de Jesus, dado por encerrado com sua morte, e torna sem efeito sua morte, mas Deus ressuscita o Santo e Justo para que este, por sua vida, traga tempos de refrigério também para aqueles que, em sua ignorância, crucificaram-no. Pedro proclama que Jesus foi elevado ao céu e que ele voltará para restaurar todas as coisas (v. 21; cf.1.11), mas deixa claro também que Jesus Cristo é aquele que já agora quer ser uma bênção para todos e todas, inclusive para aqueles e aquelas que o mataram.
4. O chamado ao arrependimento
Tendo em vista este Deus que não paga o mal com o mal, Pedro chama os judeus ao arrependimento. O convite à metánoia consta no v. 19: Arrependei-vos, pois, e convertei-vos para serem cancelados os vossos pecados. O chamado ao arrependimento inclui o reconheci-mento do que, em sua ignorância, não sabiam antes, o pedido de perdão, e a decisão de apartar-se de suas perversidades (v. 26). Pedro traz aos judeus a chance de reestruturar sua vida e de sair de uma realidade de pecado e de culpa. Ele mostra-lhes o caminho para a realidade do perdão e da bênção. Pedro não silencia sobre a culpa e o pecado na vida de seus ouvintes, mas – como testemunha da ressurreição – não os deixa nesta realidade. A motivação de Pedro para o chamado ao arrependimento é a descoberta, que ele faz na páscoa, de que Deus não é um deus vingador, mas um Deus que quer oferecer vida, através de seu Filho ressuscitado, também aos que erraram. Com isso, Pedro mostra que o evangelho é a oferta de vida para todos e todas que estão emaranhados/as no pecado e na culpa.
O início do capítulo 4 assinala que muitos dos que ouviram a palavra a aceitaram, subindo o número de homens a quase cinco mil (v. 4). Outros, porém, não deram ouvidos à sua pregação.
5. Decisões homiléticas
Pensando na prédica, eu fixaria primeiramente o alvo. Só quando o alvo estiver claro para o pregador e a pregadora, a comunidade poderá compreender a mensagem. Proponho como alvo: levar a comunidade à descoberta de que fazem parte de nossa vida atitudes equivocadas. Muitas vezes erramos, às vezes por ignorância, outras vezes conscientemente. Nossas faltas tornam-nos culpados/as diante de Deus e de outras pessoas. Mas nosso Deus não é um deus vingativo. Na páscoa, ele revelou-se como um Deus essencialmente amoroso. E ele quer que Jesus Cristo, como ressuscitado, seja uma bênção também para aqueles que se perderam no pecado. A partir disso, pode-se fazer o convite ao arrependimento e a um repensar da vida.
Conto com a seguinte resistência nos ouvintes: falar do pecado não é agradável para o/a pregador/a nem para os ouvintes e as ouvintes. Para vencer esta resistência, quero argumentar que tornar-se culpado faz parte de nossa vida, assim como faz parte dela o amor. E quero falar do pecado de meus ouvintes de tal maneira que o que digo seja verdadeiro e não sem gosto. Por outro lado, pretendo desenvolver a mensagem de tal maneira que os e as ouvintes sintam, desde o começo, que não pretendo fixá-los na posição de pecadores. Quero que conheçam, desde o primeiro momento, o amor de Deus. Desejo, enfim, que meus ouvintes, neste tempo da páscoa, sintam que Jesus Cristo quer ser uma fonte de bênçãos também para eles, inclusive quando erraram. Se conseguir atingir este alvo, espero vencer as resistências dos ouvintes, conquistar a sua atenção e levá-los à descoberta de que vale a pena repensar a vida e dar-lhe um rumo novo, pois nosso Deus é um Deus excepcional.
Como conselho para comunidade, no final da prédica, quero deixar – com sentenças bem breves – o convite de dar passos no sentido de pedir perdão a Deus por erros cometidos e de dar um rumo novo à vida, onde ela não estava bem até agora. E quero convidar a dar passos na direção de descobrir cada vez mais o Deus de amor que se revelou na ressurreição de seu Filho.
Nas prédicas, muitas vezes há boas análises da realidade, mas falta uma mensagem. Por isto, quero ter clareza sobre a mensagem que pretendo transmitir. Formulo-a assim: a mensagem do texto é a de que Deus, por um lado, não abandonou o Autor da vida, que havia sido crucificado na sexta-feira santa. Ele põe-se do seu lado. Ele não o deixa na morte. Mas Deus, por outro lado, não é um deus vingativo. Ele não ressuscita a Jesus para que este se vingue daqueles que o crucificaram, mas o ressuscitado é para ser o Autor da vida também para eles.
No centro do discurso de Pedro, encontra-se a mensagem de um Deus essencialmente amoroso e de um Cristo que, pela ressurreição, quer ser uma bênção também para aqueles que estão presos na realidade do pecado e da culpa. Esta é a mensagem que, como Pedro, também eu quero anunciar no 2° domingo da páscoa.
Imagino que a prédica que parte deste texto pode ser iniciada com a afirmação de que todos cometemos erros, muitas vezes em nossa ignorância, mas que, quando nos arrependemos e pedimos perdão, Deus nos oferece a sua graça.
A partir deste início, poderemos entrar no texto e desenvolver seu conteúdo. O texto diz exatamente o mesmo que foi dito na sentença inicial da prédica.
Um terceiro passo poderá voltar ao presente e tematizar os nossos pecados, com os quais crucificamos a Jesus. Eu não mencionaria muitos pecados; contaria, antes, um exemplo de alguém que cometeu algo que lhe parecia insignificante, mas que um dia reconheceu como errado, pediu perdão e não tornou a fazer aquilo. Mostraria que há atitudes erradas que, para nós, podem parecer insignificantes, mas que de fato nos separam de Deus. A partir daí, convidaria simplesmente para fazer uma revisão de nossa vida.
Mostraria, no final, que podemos fazê-lo, porque o Deus que se revelou na páscoa não é um Deus vingativo.
Algumas reflexões finais: a prédica que convida para o arrependimento e fala da culpa não pode ser uma prédica legalista nem moralista. Isto acontecerá, contudo, se dissermos: mas você só vai encontrar o Deus do amor SE você se arrepender, SE você reconhecer seus pecados, SE você reconhecer que não é justo, etc. Este SE estraga tudo na prédica, e mistura lei e evangelho. Conforme Lutero, a palavra de Deus é lei no sentido de que nos mostra o pecado e a culpa. Assim, faz-nos perceber o pecado e desejar o perdão. E nos prepara para o perdão. E ela é evangelho no sentido de que concede o perdão de Deus ao pecador que reconheceu sua necessidade de perdão. Se, na primeira parte da prédica, falamos com realismo e sem covardia, mas também sem mau gosto, do pecado de todos, inclusive do nosso, como obreiros e obreiras, na segunda parte, temos a missão de anunciar o Deus maravilhoso, e só a ele. E nada de condições. A proclamação do Deus não-vingativo que se revelou na ressurreição de Jesus Cristo sempre tem também o objetivo de dar força aos e às ouvintes para dar o passo de reconhecer os seus pecados e pedir perdão, e de afastar-se de atitudes erradas e viver guiados pelo espírito de Deus. O SE sempre corta a comunicação do pregador e da pregadora com os e as ouvintes, e estraga o evangelho.
A leitura do evangelho, João 20.19-31, mostra que Jesus entra na vida dos discípulos como o ressuscitado, não para culpá-los, mas para trazer-lhes paz e vida abundante e enviá-los para anunciar o perdão a outros.
O texto do Antigo Testamento, Salmo 148, é um hino de louvor a Deus. No tempo da páscoa, pode ser lido como louvor a Deus pela ressurreição de Jesus Cristo e pelo perdão que ele traz.
6. Subsídios litúrgicos
Na oração inicial do culto, podemos agradecer a Deus por sua proteção e bênção na semana que passou e pedir perdão por nossos pecados com os quais prejudicamos pessoas e nos afastamos de Deus. Podemos pedir que Deus nos dê o seu perdão para que possamos celebrar o culto com alegria e com lábios puros.
No anúncio do perdão, já podemos dizer que nosso Deus não c um deus vingativo, mas essencialmente amoroso. Ele não nos quer deixar com o peso de nossas culpas, mas nos oferece seu perdão. Por isso, convidamos a comunidade para expressar sua gratidão a Deus por ser este o nosso Deus.
Na oração intermediária, antes da leitura do evangelho, podemos recordar que os discípulos, depois da crucificação, trancaram-se em uma casa, com medo dos judeus; que Jesus, no entanto, entrou na casa trancada e não precisou que lhe abrissem a porta; que nós, muitas vezes, também andamos com medo, e ele não pergunta muito, mas entra em nossa vida e nos liberta dele; que, também neste 2° domingo de páscoa, há aquelas pessoas que sentem medo como os discípulos. Podemos pedir a Jesus Cristo que ele entre em sua vida e os presenteie com a sua paz.
Na oração de intercessão, podemos agradecer pelo evangelho e pelo fato de nosso Deus ser um Deus amoroso, que não abandona ninguém na realidade da culpa. Podemos pedir que nos ajude a afastar-nos de atitudes erradas. Podemos interceder por aqueles que desviam dinheiro público, que exploram e matam, e podemos rogar para que descubram que existe a possibilidade de se afastar de tudo isso e que Deus em seu amor convida para isso. Em seguida, podemos interceder pelos doentes, aniversariantes, pelas futuras mães (as que estão grávidas), pelas crianças que estão crescendo, pela igreja, pela pregação do evangelho no mundo, pela pátria e por nossos governantes e pêlos países em que há conflitos. Terminamos glorificando o Pai e o Filho e o Espírito Santo e assumimos o compromisso de. levar a outros a mensagem da ressurreição e do Deus essencialmente amoroso que temos.
Introduzindo a bênção, podemos explicar que a mesma bênção que Deus derramou sobre nós reunidos em seu nome em culto neste domingo ele quer que esteja presente em nossa vida também quando sairmos da igreja.
Bibliografia
JOSUTTIS, Manfred. Über Feindbilder in der Predigt. In: Rhetorik und Theologie in der Predigtarbeit: homiletische Studien. München: Chr. Kaiser, 1985, p. 87-114.
SCHILLE, Gottfried. Die Apostelgeschichte des Lukas. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt., 1984.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia