Prédica: Efésios 2.4-10
Leituras: Números 21.4-9 e João 3.14-21
Autora: Sisi Blind
Data Litúrgica: 4º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 30/03/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema: Quaresma
1. Introdução
Para o quarto domingo da quaresma, nada melhor do que um texto que fala da graça de Deus. Neste tempo, em que ainda transpiramos a influência de uma teologia de sacrifícios que exalta alguns em detrimento de outros, a palavra da Carta aos Efésios é uma bênção. A quaresma é tempo de preparação sim, mas não podemos esquecer que também é tempo de missão. E tempo de tornar melhor a vida para todas as pessoas. E tempo de mostrar para todas que Deus nos fez feitura para sermos reflexos de boas ações, neste mundo que é todo feitura sua.
2. O texto
Efésios 2.4-10 faz parte do bloco doutrinário da carta, que está dividida em duas partes. A parte doutrinária (cap. 1-3) e a parte da exortação parenética (cap. 4-6). Não são duas partes desconexas, mas a segunda é uma reflexão decorrente da primeira. Da doutrina nasce o comportamento do novo povo de Deus.
O texto nasce da necessidade de manifestar aos novos cristãos os novos parâmetros, pelos quais devem conduzir as suas vidas. Há uma grande discussão a respeito dos destinatários desta mensagem. Pelo menos no material de consulta não se chega a uma conclusão a respeito. Uma das hipóteses é de que se trata de uma carta circular para todas as comunidades da Ásia Menor, incluindo, portanto, também a comunidade de Éfeso. Poderia ser cogitado, de maneira ousada, que a carta fora enviada a diferentes comunidades e endereçada à maior delas, que é Éfeso. A intenção poderia ser a de provocar a discussão ou até a consciência de que mesmo a menor das comunidades é tão importante quanto a maior delas.
O que desejo ressaltar em relação aos destinatários não reside no falo deles habitarem numa cidade ou noutra, mas no fato deles serem pessoas de diferentes origens étnicas e também no fato de residirem em cidades maiores e menores. São judeus e gregos que se congregam numa única igreja. São pessoas cidadãs de vilarejos e de metrópoles, para as quais é necessário enviar orientações para a vida de fé e, conseqüentemente, de conduta eclesial e pessoal.
O conjunto de princípios do nosso texto é a base para a vivência comunitária dos diferentes destinatários desta mesma igreja. O muro de separação entre os judeus e os gentios, entre os povos das metrópoles e das vilas é eliminado por causa do amor de Deus, e agora ambos pertencem ao mesmo povo. Nessa igreja una, todos se assentam nos lugares celestiais, em Cristo (2.6). Não há lugar privilegiado para quem vem do centro. A perspectiva da nova proposta é horizontal. Não se constrói uma nova comunidade seguindo os velhos preceitos da verticalidade. Pela fé, que é dom de Deus, a construção deve ser inclusiva e não de exclusão.
A ênfase do texto recai sobre a questão da justificação/salvação. A salvação não pertence a uma comunidade ou a uma pessoa em especial. Ela pertence àquelas que voltam seus olhos para o Cristo, que é a possibilidade da vida eterna (Jo 3.14), assim como a serpente abrasadora (Nm 21.8) era a possibilidade de escapar da morte na caminhada rumo à terra prometida.
3. O texto fala
V. 4: A riqueza do texto consiste no grande presente que Deus trouxe para nós em Cristo Jesus. A misericórdia de Deus é tamanha que ele deixa a eternidade e, por amor, vem a nós para dar-nos a vida. Ele mesmo (E o verbo se fez carne e habitou entre nós…, Jo 1.14) fez-se humano através do trabalho de parto. A criança saiu do aconchego do útero materno para nascer no mundo frio e injusto, sem lugar.
V. 5: Deus entrou na miséria humana estando nós mortos em nossos delitos… e assumiu essa humanidade para dar perspectiva de nova vida/salvação, através da morte na cruz.. Deus assume a nossa exclusão, somente por graça. A nova vida que nasce neste mundo é perspectiva de vida para todos nós. Diante da natureza humana falha e corrupta, a justiça dá-se em Cristo, pela graça. A justificação por graça e fé significa a ação de Deus em Jesus, que inclui suas ações por nós, o perdão dos delitos, o renascimento, a vida nova, a criação da fé.
V. 6: Cristo conquista para nós a ressurreição. Esta é uma dádiva do seu amor, um amor tão amplo e profundo que se torna quase impossível entendê-lo. É Deus na cruz. É o Cristo crucificado que nos resgata de nossa fragilidade e nos torna vivos para a nova vida. Mortos estávamos. Pela morte na cruz seguida da ressurreição já não há lugar para esta condição anterior. Cristo leva-nos com ele. Ele fez com que nos assentássemos nos lugares celestiais. É nova vida aqui e agora. É vida dignificada para este tempo. Nosso lugar nos é dado em Cristo. É ele quem nos fez assentar no lugar de dignidade, perdão, salvação.
Ele nos fez. Que maravilha saber dessa feitura. Não dependemos das feituras do cotidiano. Já somos feitos. Temos lugar, somos gente e lemos vida. Nosso lugar não depende das funções que exercemos e nem do lugar em que vivemos e nem dos amigos que temos. Somos feitura de Deus em Cristo para viver o celeste desde agora. O céu não é um local geográfico, mas o lugar em que Cristo se encontra e a sua palavra é pregada e vivenciada. Essa ascensão para os lugares celestiais em Cristo Jesus não é uma retirada do mundo, mas o fortalecimento para a inserção na busca da solução dos problemas e das dificuldades do dia-a-dia. A convicção da presença de Jesus bem próxima de nós é de grande valor para essa construção/feitura pessoal, social e comunitária. Essa feitura não me pertence como propriedade negociável, mas é construção para mim, assim como é para todas as demais pessoas.
V. 7: para mostrar nos séculos vindouros…: eis a tarefa. Mostrar ao mundo a riqueza e a beleza do amor de Deus. Somos portadores da vida. Enquanto existirem manifestações de morte pelos nossos delitos, somos desafiados a mostrar a riqueza e a bondade do amor de Deus. Em Deus não há morte, assim somos seus instrumentos para a promoção de vida em nosso meio. Cabe-nos a tarefa de construir/reconstruir o lugar onde a vida habita. Não como uma missão para melhorar para mim, mas para tornar o espaço possível e viável para quem habita comigo.
V. 8: pela graça, mediante a fé. Isto é dom de Deus e não vem de nós. O ato salvífico vem de Deus. Não é nossa propriedade. Diante de Deus nunca seremos santos, mas somos diariamente aperfeiçoados e santificados pelo seu amor. A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. A certeza de que Deus me ama não vem de mim, é graça. Deus me ama não por causa do meu sentimento, da minha posição social ou da cidade/comunidade a que pertenço, mas por causa de sua misericórdia. A fé é o critério. Porém, a fé não é elaboração nossa; ela é dom de Deus. Creio que, por minha própria razão ou força, não posso crer em Jesus Cristo, nem vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, iluminando-me com seus dons e me conservando e santificando na verdadeira e única fé (Martim Lutero).
V. 9: não de obras, para que ninguém se glorie. Eis aí uma questão milenarmente difícil. A autojustificação é tão natural. Na verdade, a toda hora estamos construindo nossos caminhos e querendo que sejamos reconhecidos pela nossa construção. Sempre estamos querendo ser reconhecidos pelo que fazemos. A humanidade nos leva a isso. A sociedade, que é reflexo dessa humanidade, é assim. O espelho que denuncia essa realidade é o espelho político e este se faz presente em Iodos os âmbitos. O reflexo do espelho é tão forte que, por vezes, esquecemos a verdadeira luz. A verdadeira luz vem de Deus, mas andamos orientados pelos reflexos desejosos de nossas glórias particulares, seja na sociedade, seja na comunidade, seja na família ou em qualquer lugar por onde andamos. Por isso mesmo é necessário ouvir constantemente a orientação amorosa de Deus. Nesta reflexão não cabe a frase É pelos frutos que se conhece a árvore; pois nós pertencemos à Árvore pelo dom da fé. Este pertencer à árvore é que define que os frutos são bons e não a fruta que define a árvore.
V. 10: somos feituras de Deus, criados em Cristo para as boas obras. Não somos apenas um reflexo, uma imagem. Somos feitura de Deus. Para as ações, somos os seus instrumentos. Quanta dignidade ele nos concede. Coloca-nos ao seu lado, resgata-nos, dignifica-nos e nos capacita para agir nas ações que ele nos concedeu. Não precisamos sair à caça do tesouro da vida. Esse tesouro vem a nós de graça. Deus veio caminhar conosco e mostrar a horizontalidade de seu amor. Não nos afundamos e não precisamos escalar para encontrar com o amor revelado. Ele nos fez assentar ao seu lado. Cabe-nos olhar com mais clareza e precisão para a nossa volta.
4. Os desafios do texto
Graça!
Que coisa é essa, a gratuidade?
Que estranheza é essa forma de amar!
Que forma louca de manifestar aceitação?
Estranho para os habitantes antigos,
Extraterrestre em nossos tempos.
Como entender o que não é compreensível?
Como aceitar o que logicamente é anormal?
Sim, é anormal que a misericórdia de Deus seja horizontal.
Para nós que costumamos ver tudo pela ótica vertical.
Até olhamos verticalmente para o Senhor da graça,
Enquanto ele tão horizontalmente não acha lugar.
Sem espaço, mas com um inexplicável amor contínuo.
Como falar de graça num tempo em que nada é de graça?
Como ver o Deus horizontalmente,
Se é na vertical que se dá a relação?
É assim com os pais,
É assim na escola,
É assim com as mulheres,
E assim entre casais,
É assim nas relações trabalhistas
É assim nas relações sociais,
É assim nas igrejas,
É assim… É assim…
Tão vertical.
Deus, rico em misericórdia, como entender?
Ele vem pelo avesso. Ele se mostra na horizontal.
Ele se põe ao nosso lado. Um lado sem escadas e nem degraus.
Sem tabelas ou escalas. Sem muros ou vantagens.
Acolhe, de graça, sem obras constrangedoras ou influências.
Pela misericórdia, mediante a fé.
A fé no amor que nos fez feitura.
Não para obras obrigadas,
Mas para ações não ensaiadas.
Que de antemão dramatizou, vindo morar conosco,
Vivendo a forma diferenciada.
Por causa de sua misericórdia,
Por causa de seu amor!
5. O que falamos a partir do texto
a) Trata-se do amor que vem ao nosso encontro. Não vem de cima para baixo, mas vem caminhar com a gente. Tão igual que se faz gente. Vem pequeno para crescer junto conosco. Sofre a amargura da falta de compreensão e amor. É preso, julgado e condenado porque não vem como rei. Ele não vem da cidade mais importante, mas de Belém, pequena demais para figurar entre as principais de Jerusalém. É amor que vem horizontalmente com o propósito de nos fazer iguais. É resgate, guincho gratuito. Nosso motor de amor é pequeno e impotente, mas recebe a força do motor amoroso de Deus, que faz o resgate e nos leva junto com ele.
b) É esse amor que nos faz. Dele somos feitura e dele temos a potência. A dignidade que Deus nos concede é revolucionária. É diferente daquilo que vivenciamos em nossa composição social. Num meio em que olhamos as pessoas pelo que elas produzem, é extremamente construtivo olhar com esses olhos de Deus. Os olhos de Deus fazem com que vejamos as pessoas e as potencialidades da vida. Olhos de Deus não são espelhos. Os olhos de Deus são os faróis de luz que vêm ao nosso encontro para fazer com que enxerguemos a realidade que nos cerca. Nesta quaresma, nossa tarefa é olhar para as pessoas com os olhos construtivos de Deus. É aceitar o desafio de olhar para o outro, para a outra e ver neles a beleza da feitura de Deus.
c) Assim, nosso motor, potencializado pelo guincho de Deus, torna-se transformador. É também força de renovação e resgate. Com esta potencializarão que Deus nos concede, estamos preparados para viver o amor integralmente, considerando a integralidade da criação.
6. Subsídios litúrgicos
a) Receber as pessoas na entrada da igreja com um pequeno pacote com sementes de flores ou verduras da época. (Não falar do símbolo)
b) O culto deve ser festivo, com músicas alegres; paixão é oferta de Deus, assim como é o advento.
c) A liturgia deve conduzir a que as pessoas se sintam bem acolhidas e valorizem o presente. O presente é o amor de Deus oferecido para a vida.
d) Antes da confissão de pecados, incluir um momento com esta pergunta: o que senti quando recebi um pacote com sementes?
e) Trabalhar a confissão de pecados, considerando que recebemos todos os dias de Deus boas sementes, que representam uma nova possibilidade para cada novo dia. Precisamos confessar que não temos plantado estas sementes e também não passamos adiante para que alguém outro plante.
f) Na pregação lembrar que, assim como recebemos as sementes, devemos plantá-las e/ou desafiar outras pessoas a plantá-las. Quem não tiver lugar (terra) para plantar as sementes é convidado a procurar outra pessoa e juntas encontrar um espaço para plantá-las.
g) Com essa dinâmica podemos refletir sobre o que recebemos e onde aplicamos o que recebemos. O amor de Deus é gratuito. Que é que nós ainda fazemos gratuitamente? Que fazemos com a gratuidade que recebemos? Ficamos para nós ou compartilhamos?
Bibliografia
CULMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1970.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
LIEVEN, Guilherme. Efésios 2.4-10. In: Proclamar Libertação XVI. São Leopoldo: Sinodal, 1990.
WENDLAND, H. D. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1977.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia