Prédica: Lucas 18.9-14
Leituras: Isaías 62.6-7, 10-12 e Romanos 8.19-28
Autor: Albérico Baeske
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema: Dia da Reforma
Lembrando o lutador vitalício pela confessionalidade evangélica luterana no País, Wilhelm Fugmann (1887-1954), por mais de 40 anos pastor pioneiro em Ponta Grossa/PR e durante 5 anos vice-presidente do então Sínodo Luterano dos Estados de Santa Catarina, Paraná e outros Estados do Brasil.
l. Pregar no Dia da Reforma
A) Culto de 31 de outubro, em 2003 cai numa sexta-feira, e incomum. Há municípios nos quais a data é feriado e comunidades que fazem questão de se reunir em função deste dia, inclusive à noite, se for preciso. De qualquer jeito, tem-se uma boa oportunidade para recordar, na própria data ou no domingo subsequente, que 31 de outubro de 1517 não é, em absoluto, o aniversário da nossa Igreja [= Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil / IECLB], mas o dia da Reforma da Igreja Universal, a saber da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica (Credo Niceno[-Constantinopolitano]). A data constitui um marco ecumênico de primeira ordem, o qual se celebra coerentemente com todas as Igrejas e não apenas com a Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Justamente onde se festejou a Declaração Conjunta [Igreja Católica Romana e Federação Luterana Mundial] sobre a Doutrina da Justificação, é imperativa a celebração em comum com a Igreja Católica Romana local. Uma celebração do dia 31 de outubro no espírito do relê rido documento seria a prova de uma abertura consciente e espontânea de parte a parte.
B) De modo semelhante, torna-se imprescindível insistir em que os membros de paróquias/congregações, cujo nome leva a autodenominação de luterana, e as pessoas que costumam apresentar-se ou se deixam chamar de luteranas tenham claro quem era Martim Lutem e o que ele queria. Dito de outra maneira: como ele viu a si próprio e como é visto por homens, mulheres e crianças, que foram convencidos pelo evangelho e aprendem com Lutero a fé em Jesus Cristo e a vivência da mesma. Ora, Lutero queria ser cristão – e nada mais. Logo, os que aprendem com ele são cristãos e cristãs – evangélicos e evangélicas. Agora, já que quase em toda esquina se reúne gente que se diz evangélica, aqueles se dizem evangélicos luteranos.
a) Os evangélicos luteranos e as evangélicas luteranas não crêem em Martim Lutero, mas em Jesus Cristo. Não foram batizados e batizadas em nome de Martim Lutero, mas em nome de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Dificilmente alguém outro ressaltou isto tantas vezes e com tamanha clareza quanto o próprio Lutero:
Em primeiro lugar, peço omitir meu nome e não se chamai de luterano, mas de cristão. Que é Lutero? A doutrina não é minha. Tampouco fui crucificado em favor de alguém. Em l Co 3.4-5 Paulo não queria que os cristãos se chamassem de paulinos ou petrinos, mas de cristãos. Que pretensão seria essa de um miserável e fedorento saco de vermes como eu, se quisesse que os filhos de Cristo fossem chamados por meu desastrado nome? Que não seja assim, amigo. Vamos extirpar as siglas partidárias e nos chamar de cristãos, de quem temos a doutrina. Os papistas apropriadamente têm nome de partido. Já que querem ser papistas, que sejam do papa, que é seu mestre. De minha parte, não sou nem quero ser mestre de ninguém. Junto com a comunidade, comungo da única universal doutrina de Cristo, que é nosso Mestre exclusivo, Mt 23.8. (Martim Lutero, Obras Selecionadas [OS] v. 6. São Leopoldo: Sinodal / Porto Alegre : Concórdia, 1996. p. 481).
b) Por isso, jamais os evangélicos luteranos e as evangélicas luteranas declaram Martim Lutero infalível. Sempre medem tudo o que ele falou e praticou com a palavra-ação e a ação-palavra de Jesus Cristo, asseguradas no testemunho dos profetas, apóstolos e evangelistas. Afinal, quem é Martim Lutero? Ele mesmo se expressou assim:
Nós, porém, não inventamos uma pregação nova, e, sim, trouxemos novamente à tona a mesma antiga, comprovada doutrina dos apóstolos. Assim também não inventamos um novo Batismo, Sacramento [Ceia do Senhor], Pai-Nosso, Credo. Não queremos saber de nada de novo na Cristandade nem tolerá-lo, mas lutamos exclusivamente pelo velho (que Cristo e os apóstolos nos legaram e nos deram), e a ele nos atemos. O que fizemos foi o seguinte: visto que constatamos que tudo isso havia sido obscurecido pelo papa por meio de sua doutrina humana, sim, porque o havia velado com uma grossa camada de pó e teias de aranha e toda sorte de excrementos de bicharia, tendo-o inclusive lançado e pisado na lama, nós o trouxemos novamente à tona pela graça de Deus, o limpamos dessa imundície, podendo agora cada qual enxergar o que é o Evangelho, Batismo, Sacramento, [Ofício das] Chaves, oração, o que Cristo nos legou, e como se deve fazer uso salutar deles. (D. Martin Luthers Werke – kritische Gesamtausgabe. Weimar: Böhlau, 1883- ; [WA] 46 |1912/1967], 62.67-63.2. Tradução de I. Kayser).
c) Daí os evangélicos luteranos e as evangélicas luteranas chamam Martim Lutero de faxineiro da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. E eles são faxineiros dela junto com ele. Exatamente nisto Lutero e o povo evangélico luterano são seguidores de Jesus Cristo (cf. Mc 11.15-8 par.). Na medida em que se nota que Martim Lutero na sua pregação e prática está em conformidade com Jesus Cristo, testemunhado pela Bíblia, vale o que Lutero formulou desta maneira:
É verdade! Por amor de tudo que é sagrado, jamais digas: eu sou luterano ou papista, pois nenhum deles morreu por ti nem é teu mestre, e, sim, somente Cristo. Por isso, deves confessar-te cristão. Mas se és da opinião de que a doutrina de Lutero é evangélica e a do papa anti-evangélica, não deves rebaixar tanto o Lutero, senão também rebaixas sua doutrina, que, afinal, reconheces como doutrina de Cristo. Mas deverás dizer: quer o Lutero seja um safado ou um santo – isso não me importa. Sua doutrina, porém, não é sua, e, sim, do próprio Cristo, pois vês que os tiranos perseguem essa causa não para matar o Lutero, e, sim, querem exterminar a doutrina. É por causa da doutrina que te atacam e te perguntam se és luterano. Aqui, na verdade, não deves falar com palavras toscas, e, sim, confessar francamente a Cristo, não importando se foi Lutero, Claus ou Jorge que o pregou. Deixa a pessoa de lado, mas confessa a doutrina. Assim também escreve São Paulo a Timóteo em 2 Tm 1[.8]: 'Não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor, nem de mim, encarcerado por amor dele'. Se tivesse sido suficiente que Timóteo confessasse o Evangelho, Paulo não lhe teria ordenado que também não se envergonhasse dele, não da pessoa de Paulo, e, sim, do encarcerado por amor do Evangelho. Se agora Timóteo tivesse dito: Não sou partidário nem de Paulo nem de Pedro, mas atenho-me a Cristo, sabendo, não obstante, que Pedro e Paulo ensinam a Cristo, teria negado com isso o próprio Cristo. Pois Cristo diz em Mt 10[.40] a respeito dos que o pregam: 'Quem vos recebe a mim me recebe' e 'quem vos despreza a mim me despreza' [Lc 10.16]. Por que isso? Porque tratam desse modo seus mensageiros (que trazem sua palavra), e isso é como se tivessem sido tratadas assim suas palavras. (WA 10/11 [1907/1966], 40.5-29. Tradução de I. Kayser).
2. A comunidade
A) Como em todos os cultos, especialmente no Dia da Reforma, importa observar meticulosamente o conjunto das características que marcam a comunidade local. Em termos genéricos: ela é clube sócio religioso ou povo de Deus? O que ela considera o seu nascedouro e o que o constitui de fato? A quantas anda nela a fé em Jesus Cristo? Ela vivência tal fé? A comunidade, reunida por causa da Reforma, existe a partir da comunhão com Jesus Cristo, e ela a compartilha in loco et concreto? Qual a posição da comunidade frente às outras congregações cristãs locais, em particular, e, em geral, no mercado religioso, onipresente que a tudo absorve? Ela está ciente desta conjuntura e nela alça a identidade confessional? Ela percebe a diferença entre confessionalidade e postura sectária?
O último censo atesta que a porção evangélica da população brasileira foi a que mais cresceu: subiu de 9,05% em 1991 para 15,45% em 2000 – um aumento de 70,7%. Em números absolutos, os evangélicos são hoje cerca de 26 milhões, o dobro dos 13 milhões de fiéis de 1991 (Folha de São Paulo, SP, 09/05/02; p. A2). O dado sinaliza ampliação ou diminuição do caldeirão brasileiro de religiões que cozinha um caldo religioso que apetece a meio mundo, inclusive, na IECLB? É patente o seguinte – oxalá cada coordenador/a de cultos ou/e pregador/a mantenha-se alerta a respeito:
a) Cresce o número de pessoas convictas do extraordinário poder funcional da religião, da positividade de todas as religiões enquanto produtoras de eficácia terapêutica e de preenchimento de lacunas sentidas no dia-a-dia, da legitimidade do gasto financeiro, até grande, com a religião, e da liberdade de escolher a religião que bem entender, aliás, de costurá-la para o próprio indivíduo como quintessência da auto-realização.
b) Figuras espertas, agências religiosas e, em parte, igrejas corroboram a fetichização, mercantilização e o consumismo do religioso. As mesmas são extremamente flexíveis: têm conversão como negociável, quando não dispensável, diluem asserções dogmáticas duradouras, inerentes a cada religião séria, propagam religiosidade a-histórica e autofixada, oferecem conteúdos negociáveis e serviços lábeis, fortes sensações e a lógica do sucesso fácil, visível e palpável, investem na profissionalização de um quadro de agentes exitosos em vista da disputa ferrenha por clientela.
c) À medida que o caldo religioso aumenta, aumentam a miséria e a carência de rumo vivencial no nosso país. Assim como é a doutrina, assim também será o povo: um povo vazio, inconstante e sem fé [em Jesus Cristo], que cambaleia de um lado para o outro, bem como os gurus [que ele escolheu] o querem (Lutero).
B) A seguir, relaciono alguns traços da comunidade que tenho em mente ao me debruçar sobre o texto-base para a prédica.
Trata-se de uma comunidade pequena, longe de tudo e de todos, só não de Deus. Localiza-se à beira da mata fechada, em vasta região arenosa. Era alcançada com carro de tração depois de cinco horas, em circunstâncias favoráveis; após um dia e meio, em circunstâncias adversas. A viagem sucedia em estradas e picadas com pontilhões precários, melhorados talvez durante as épocas da política. A comunidade recebia visitas do pastor duas vezes ao ano. Quando cheguei lá, moradores do vilarejo central estavam construindo a escola. Havia posto de gasolina e armazém, que mais tarde foram fechados; não existia eletricidade, muito menos postos médico e telefônico; com a água potável cada um se virava como podia. O único meio de ligação para fora era o rádio de pilha. O que os moradores não produziam para o seu parco sustento encomendavam da cidade, distante cerca de 190 km, a proprietários de automóveis, mediante gordas gorjetas. A situação quanto a comida e acomodações, em determinadas famílias, era tal que o visitante, sempre bem-vindo e tratado a pão de ló, ficava com a sensação de que tirava algo do povo que iria fazer-lhe falta posteriormente. Quase em cada casa, uma ou mais pessoas, independentemente da idade-, eram doentes e medicadas na medida do possível. Em caso de acidente de serviço ou de enfermidade súbita perigosa, o pessoal precisava alugar uma camioneta ou caminhão para internar no hospital, gastando quase um salário mínimo mensal. Na comunidade, havia um membro que possuía caminhão. Outros donos de automóveis eram fazendeiros e madeireiros que circulavam na área.
A maioria dos moradores veio em busca de terras para si, seus muitos filhos e netos. Acabaram na mão de colonizadoras, que prometeram mundos e fundos, porém, com frequência, venderam solos fracos por férteis e deixaram de fornecer até anos após a transação os documentos de propriedade desembaraçados. Volta e meia, famílias constatavam que o seu torrão ou parte dele pertencia a outro ou outros donos, que apareciam à medida que elas começavam a tirar do chão, trabalhado de sol a sol, os seus modestos mantimentos. Aconteciam, então, cenas ruidosas e ameaças de violência, de parte a parte. Em consequência disso, uns se mudavam, outros resistiam por integrarem famílias numerosas. Faziam-se necessárias custosas viagens até a capital, com estadia demorada, para regularizar a situação das propriedades; mesmo assim, alguns colonos perderam parte das terras pelas quais pagaram. Ocorria, neste contexto, que gente invadia um pedaço de chão do vizinho, alegando que a medição da colonizadora teria sido malfeita. E este – por ser de família menos numerosa, com integrantes velhos ou debilitados e poucos recursos – se calava, para não se excluir do convívio ou ser isolado, sem poder escorar-se na vizinhança em vicissitudes ainda piores falta de braços para o desbravamento, a semeadura e a curta época da colheita, frustração de colheita, perda de gado, doença grave e morte de familiares. O lesado sabia: o poder público continua ausente e, quando solicitado, demonstrará extrema má-vontade; e quem, no fim das contas, dava as cartas era mesmo o clã com mais saúde, braços e meios.
O segmento maior dos moradores pertencia à Igreja Católica Romana, o menor, todavia considerável, à IECLB. Encontravam-se, ainda, membros da Assembléia de Deus. O padre, residindo na cidade próxima, visitava mensalmente o povo; a sua Igreja possuía capela no vilarejo central que estava à disposição para os cultos. Pessoal de todas as confissões assistia tanto às missas quanto aos cultos: cantava hinos idênticos, de contestação aos que exploram sem compaixão, aos opressores, ricos e malvados, e de animação ao povo que luta, / cansado da mentira, / cansado de sofrer, / cansado de esperar: E vós, os oprimidos, e vós, os explorados… / sabei que em breve vem um novo dia… / e a escravidão, enfim, acabará; havia participação mútua nas leituras bíblicas e nas intercessões; embora se entoasse Por um pedaço de pão em conjunto, as pessoas católicas romanas não comungavam na ceia do Senhor. Em cada comunidade viviam jovens que procuravam, dentro do possível, passar conhecimentos rudimentares de fé e vida cristãs a adolescentes. Casava-se entre integrantes das diferentes denominações; no entanto, segundo o dogma popular: homem não vira [de religião]; não interessava se este era membro comungante na sua comunidade ou não, e a mulher convicta catequista popular na dela – ela tem de virar, sempre foi assim. A presença do povo nos eventos era impressionante; para muitos, o dia do culto virava domingo, também quando era em quinta-feira: botava-se o melhor vestido e os homens até se barbeavam – quando o pastor vem, é festa.
Era distração, perfeitamente compreensível, em meio a longas temporadas de trabalho pesado e monótono isolamento nas clareiras da mata – ou era ajuda na articulação do ser cristão pessoal e em família, em comunidade e sociedade? Dificilmente, alguém, por alegre opção, lia a Bíblia e reunia pessoas de mais perto para uma atividade evangélica na sua casa. Assim, julgava-se interessante o pastor vir, às vezes, rezar conosco – na capela e animar a gente lá em casa, contar as novidades da capital e arrumar uma verba para o desenvolvimento do lugar. Por outro lado, não poucos achavam bobagem aumentar o número dos cultos e perda de tempo as crianças aprenderem algo do catecismo e os noivos, pais e padrinhos manterem conversa com o pastor antes da bênção matrimonial e do batismo de recém-nascidos; pois, a gente é cristão por si e de casa. Agora, quando o pastor, por exemplo, sugeria que pais aliviassem a carga dos filhos na roça ou concordassem com que os desejosos estudassem fora; mostrava-se curioso pela superstição reinante; perguntava se todos os moradores seriam considerados iguais, mesmo os com menos saúde, força física e recursos, e se não deveria haver maior solidariedade; questionava a opinião corrente de que os índios são bichos à toa e de que credo e presença dos padrinhos de neófitos não importava – aí, houve quem bebesse uns tragos para discutir alto com ele e ameaçasse chegar às vias de fato.
3. O texto-base para a prédica
A) Desde o seu surgimento, a perícope constitui tremendo desafio: uma olhada no aparato de uma edição crítica do texto original comprova isto. Em nossos dias, é possível que o trecho seja um dos mais notórios da Bíblia, inclusive fora do ambiente eclesial – ilustrações são desnecessárias. Este fato em nada facilita, pelo contrário, dificulta a compreensão e a comunicação do testemunho veiculado em Lc 18.9-14. Se é preciso que as pessoas que pregam peçam sempre durante a sua preparação e antes da própria prédica que Deus lhes conceda a graça e a força do Espírito que conduzirá à verdade plena (Jo 16.13), então, aqui, isto é especialmente urgente.
Já o título dado a Lc 18.9-14 na versão de Almeida confunde (compare o título conferido a 15.11-32). Trata-se, de fato, de uma parábola ou de um caso concreto que dispensa qualquer explicação/comparação, inerente àquela figura discursiva, como entende D, que omite o termo técnico parábola? E o fariseu e o publicano estão mesmo em evidência ou tudo gira em torno da primeira metade da conclusão apodítica de Jesus (ego eimi), que resume a ação justificadora de Deus (passivum divinum) na situação transcrita (v. 14a)? De resto: a segunda metade da assertiva de Jesus (v. 14b) combina realmente com a ação surpreendente-inexplicável e escandalosa-libertadora de Deus que a primeira revela e desencadeia (J. Ferreira de Almeida, revisto e atualizado no Brasil, com e não aquele, acerta o sentido excludente de par'ekeinon) ou se trata de um acréscimo com um outro ditame de Jesus, tirado de um outro contexto (cf. 14. 11; Mt 23.12)?
Sem dúvida, é despropositado afirmar que o terceiro evangelista não teria entendido o que Jesus sentenciou. Para captar a sentença de: Jesus seria necessária, pois, a nossa leitura recente: a crítica-literária (referente às partículas originais das tradições primárias, orais e/ou escritas, e o seu encaixe interpretativo nas elaborações dos qual m evangelistas), a crítico-histórica (referente àquilo que seja vox ipsissima de Jesus e o que seja testemunho da comunidade pós-pascal, transmissora e/ou produtora conduzida pelo ressurreto, dos fundamentos dos evangelhos), a crítico-socioeconômica (referente ao lugar vivencial, geral e particular, das pessoas caracterizadas nos textos, daquelas às quais a sua mensagem foi dirigida e daquelas que foram atingidas por esta) e a crítico-teológica (referente à comparação avaliadora entre as diversas teologias manifestas no Novo Testamento). A nossa leitura multifacetada descobriria, enfim, a intenção derradeira de Jesus ao contar aquele caso. Francamente, tal argumentação seria farisaica, na acepção corriqueira da palavra.
B) Conforme a quase totalidade dos exegetas, Lucas tinha razões para incluir a perícope, que só ele transmite, nesta altura da sua obra (cf. inclusão de 9.51-18.14, na disposição de Mc) e emoldurá-la com os v. 9 e 14b. Devido à falta de espaço, listo apenas dois motivos que levaram o evangelista, junto aos destinatários do seu escrito de dois volumes (cf. Lc 1.1-4 e At 1.1-3), a proceder com o conto de Jesus assim como procedeu. Lucas achou por bem, primeiro, ressaltar perante as pessoas cristãs o dever de orar sempre e nunca esmorecer (18.1), e, segundo, incutir nelas a humildade para que não confiem em si mesmas por se considerarem justas, e nem desprezem os outros (cf. v. 9 em relação com v. 14b).
Na interpretação/pregação da perícope durante os tempos subsequentes aconteceu, então, que a abordagem lucana se sobrepôs ao causo relatado por Jesus. Transferiu-se o seu escopo fundado na ação criadora de Deus, presente através de Jesus que fala, para a análise/ atualização das atitudes do fariseu e do publicano. Formulado de outra maneira: ao invés de testemunhar Deus, o justificador livre e amoroso do ser humano, inúmeros intérpretes, pregadores e curas fixaram-se nas pessoas e na sua conduta, intentando a educação daquelas e a correção desta. Eles substituíram o testemunho teo-lógico (cf. para a expressão: PL 25, p. 56s., baseado no afã do lema da Confissão de Augsburgo [CA]: SI 119.46) por animação antropológica, que visa a autoconhecimento e, por conseguinte, evolução e auto-realização do ser humano. Logo, seguiu-se – e isto é antropo-lógico! – que a ética (ou mesmo, a moral e os bons costumes) ocupou o centro. E esta absorveu a fé ou, ao menos, foi explicada como desdobramento autêntico da fé. (O auxílio homilético sobre Lc 18.9-14, o único por enquanto em PL [IV, p. 158-62], está ciente da referida problemática, contudo desiste de (irar daí consequências insofismáveis para a compreensão e a comunicação do trecho em nossos dias.)
O procedimento inaugurado por Lucas, cabível na sua época, contribuiu para que a concentração no agir de Deus fosse, sucessivamente, metamorfoseado em fixação no comportamento da pessoa e no seu constante desenvolvimento. Hoje, tal metamorfose não apenas esta sendo amplamente aplaudida e exigida, mas, sim, praticada via psicologia, psicoterapia, psiquiatria e psicanálise. Inclusive, parece que não poucos profissionais de igrejas se empenham em aperfeiçoar o trata-mento psicoterapêutico/psiquiátrico das pessoas com serviços pastorais anímico-psíquicos.
Ora, exatamente a fixação no ser humano provoca, isto sim, a com¬paração entre as pessoas e o consequente desprezo mútuo, resultando que, quem for cristão luterano e cristã luterana, exclama: Ó Deus, graças te dou porque não sou como aquele fariseu – e todos, dentro e fora da igreja, de acordo, batem palmas, pois que pessoa gosta de uma vida alternativa (é essa que os v.11s. refletem, quando lidos sem preconceitos). Ou quem afirmaria: Que bom estar ciente de que sou pecador/pecadora; eu assumo, confesso e me arrependo – e todos, dentro e fora da igreja, admiram a humildade, a seriedade e a autocrítica, e alguns já vislumbram uma auréola ao redor da cabeça do contrito e da contrita. Mas tudo fica no mesmo: o pecado e o desprezo do outro. Estes não são, em absoluto, removidos; pelo contrário, são revigorados pelo embaralhamento das posições. Quer dizer: A graça preciosa de Deus é malbaratada (D. Bonhoeffer) pelo publicano e pelo fariseu.
C) Daí decorre a centralidade do v. 14a. O dito confere ao causo que Jesus conta a sua característica teo-lógica ímpar e singular. Ele faz do causo nada mais nada menos que a explicitação, concludente e insuperável, daquilo que se costumou chamar a justificação do pecador/do inimigo de Deus por graça e fé devido a Jesus Cristo. Apenas o captam aquelas pessoas que foram alcançadas, atingidas e transformadas por esta. Torna-se evidente, pois, que a justiça [salvífica] de Deus se revela de fé em fé (Rm 1.17) e a compreende quem foi tocado pelo Espírito de Deus (cf. l Co 2.10-16; Rm 8.26-30). Visto assim, não há trecho bíblico mais preclaro a ser desdobrado no Dia da Reforma do que Lc 18.10(!)-14a(!).
A ação justificadora de Deus ocorre soberanamente, sem nenhuma cooperação humana. Ela, de maneira alguma, se dá em correspondência à gratidão a Deus pela vida alternativa concedida (sem ladroagem, injustiça e adultério – Lc.18.11) e solidária (além da contribuição financeira auto-estipulada à base de 10% de todos os seus rendimentos, o fariseu não jejuou a segunda vez na semana, acima da exigência da Tora, em substituição concreta por este publicano? – v. 12). A ação justificadora de Deus se dá menos ainda em decorrência da articulação do desespero pela derrocada da vida, da contrição e do arrependimento. Nada e ninguém atrai, prepara, possibilita, encaminha e desencadeia a ação justificadora de Deus, presente e em voga em Jesus. Eis o sola gratia – só e exclusivamente, estranho e escandalosamente pela graça!
A ação justificadora de Deus é o escândalo por excelência – e o milagre por excelência. Constitui a outra criação do nada, efetuada por Deus. A justificação que Deus realiza não acha, mas cria aquilo que lhe agrada (Lutero). Onde e quando agrada a Deus (CA V, versão latina) acontece aquele causo. A justificação gratuita por parte de Deus passa a ser realidade, aqui e hoje. Sucede entre a comunidade reunida em culto, quer dizer, entre o povo convidado a receber o serviço de Jesus Cristo que personifica e anuncia a justificação gratuita por parte de Deus, que chega para distribuí-la e aplicá-la. Ela sobrevêm na prédica e na conversação mútua entre irmãos e irmãs na fé, no batismo e na ceia do Senhor.
Já que o causo está prestes a ocorrer inopinadamente, as pessoas reunidas em culto estão sendo absorvidas pelo iminente acontecimento da justificação de Deus, patente em Jesus Cristo, que está agindo no meio dos dois e três congregados em seu nome (cf. Mt 18.20). A iminência da ação justificadora de Deus determina as pessoas – melhor: inicia a sua nova criação (cf. 2 Co 5.17-21) da seguinte maneira:
a) a atenção, a esperança e a ânsia das pessoas fitam de tal forma a ação justificadora de Deus em, por e com Jesus Cristo que não sobra tempo nem interesse nem garra para se comparar com estes outros aí (cf. Lc 18. 11e). As pessoas encontram-se na área de sucção da ação salvífica de Deus. A sua vida ganha rumo e objetivo diferentes;
b) as pessoas na esfera da ação justificadora de Deus chegam a se conhecer a si próprias como nunca antes. O trabalho retrospectivo produzido pela psicanálise é uma brincadeira em comparação com o que estas pessoas experienciam. A ação justificadora de Deus as conduz a reconhecer para todo o sempre que a sua vida está completamente perdida (cf. v. 13bc), embora dela muitas vezes ainda se orgulhem. A ação justificadora de Deus origina que elas ressaltam esta situação sem saída, jamais a recalcam, desculpam ou fundamentam. A ação justificadora de Deus as persuade de que tão-só a intervenção graciosa de Deus lhes traz vida e salvação (Lutero) no presente e, muito mais ainda, no futuro.
Nas suas repetidas interpretações de Lc 18.9-14, Lutero enfatizou que o publicano tinha ouvido falar da misericórdia de Deus, razão única pela qual chega a dizer: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! (v. 13d). Lutero ligava a fala do publicano com o Sl 51.3. Esta ligação interpretativa é absolutamente central. São três as suas consequências inalienáveis. A primeira: alguém se identifica e se confessa pecador e pecadora quando confrontado com a ação justificadora de Deus em, por e com Jesus Cristo. Fora deste confronto, falar em/de pecado é balela, no máximo festividade litúrgica. A segunda consequência: pecado não ó falta de moral, ética, solidariedade ou o que o valha, mas, sim, viver sem temor a Deus, sem confiança em Deus, e [daí ou então] com concupiscência (CA II, versão latina; note-se a sequência) A terceira consequência: admitir e confessar este pecado é graça pura de Deus. Ninguém pode exigir de ninguém que o admita e confesse. Ninguém pode outorgar admissão e confissão do pecado a pessoa nenhuma. A livre e amorosa ação justificadora de Deus em, por e com Jesus Cristo se encarrega, a seu tempo e à sua maneira, que pessoas admitam e confessem que não conseguem querer que Deus seja Deus; pelo contrário, querem que elas mesmas sejam Deus e que Deus não seja Deus (Lutero; cf. H. J. Iwand);
c) o advento da ação justificadora de Deus, sobretudo a sua experiência concreta e pessoal, aqui e hoje, impele os que foram alcançados a explodir de alegria e gratidão a Deus. Eles marcam a vida das pessoas a respeito das quais Jesus Cristo declara que saiam do culto justificadas para a sua casa. A alegria e a gratidão geram a emancipação das pessoas de si mesmas, para que possam dizer eu e se assumir com reserva escatológica (cf. l Co 7.29-31). A alegria e a gratidão originam a comunhão reconciliada entre os justificados e as justificadas em partilha recíproca e disciplina fraternal (IECLB, Nossa Fé – Nossa Vida). A alegria e a gratidão juntam e organizam os justificados e as justificadas em indicação viva para a livre e amorosa ação justificadora de Deus em, por e com Jesus Cristo. De resto, esta mesma se encarrega, conforme a sua vontade e o seu jeito, de suscitar tantas outras manifestações práticas da alegria e da gratidão referidas.
4. Sugestões para o culto
Em coerência com a reflexão apresentada, sugere-se ter presente que tanto o causo contado por Jesus quanto a sua sentença possam acontecer no culto do dia da Reforma de 2003. Por isso,
– a comunidade reunida pede que isto ocorra;
– a comunidade entoa os hinos de HPD 156 e 155 (= Hino da Libertação, O. Bayer);
– a comunidade confessa em termos bem concretos o seu publicanismo e o seu farisaísmo;
– a comunidade faz e ouve as leituras de Sl 51.3-15 e de Ef 2.4-10.A primeira deveria substituir a leitura veterotestamentária proposta acima pelo motivo teológico externado em 3.C.b. Pessoalmente, cogita ria da segunda em detrimento de Rm 8.19-28 (veja porém 3.) por Ef 2.4-10 salientar a misericórdia de Deus, bem como a origem da vida das pessoas justificadas na graça de Deus. Pois a vida dos justificados por graça e fé por causa de Jesus Cristo está sendo envolvida pelo seu entusiasmo piedoso, procurando a quem devorar (cf. l Pe 5.8);
– a comunidade ouve a prédica sobre Lc 18.10-14b:
* começa-se a leitura do trecho simplesmente com: Jesus disse dois homens…;
* parte-se do v. 14a, gira-se ao redor dele e conclui-se com ele com a propulsão da teo-logia e da prática da libertação neotestamentário-reformatórias;
* descreve-se o jeito da ação justificadora de Deus em, por e com Jesus Cristo;
* anuncia-se a iminente ação justificadora de Deus em, por e com Jesus Cristo no meio da comunidade reunida no dia da Reforma de 2003;
* insiste-se no testemunho do autodesdobramento da ação justificadora de Deus em, por e com Jesus Cristo para dentro da vivência da comunidade; quando ela atinge e transforma as pessoas, estas não precisam ser mandadas;
* visa-se, assim, ao amém espontâneo e alegre da comunidade;
– a comunidade louva a ação justificadora de Deus em, por e com Jesus Cristo e agradece por ela.
Recomendações bibliográficas
– Textos para ruminar (Lutero)
Referentes a 1. A):
LUTERO, Martinho. Catecismo Menor – qualquer edição: explicações ao primeiro, segundo e terceiro mandamentos, ao segundo e terceiro artigos do Credo Apostólico, e à primeira petição do Pai Nosso.
Referentes a 3. A):
IECLB. Hinos do Povo de Deus. São Leopoldo: Sinodal: 89.5; 116.3s.; 130.2s.; 290.3.
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Referentes a 3. C):
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Textos para consultar
Referentes a l. B):
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BAESKE, Albérico. Martim Lutero: pecador, mas evangelista de Cristo. In: DREHER, Martin Norberto (Org.). Reflexões em torno de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1984. v. II, p. 19-28.
DREHER, Martin Norberto. Aspectos humanos na vida de Lutero. In: ID. (Org.). Reflexões em torno de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1988. v. III, p. 9-28.
MEYER, Harding. A obra de Lutero. In: ISERLOH, Erwin; MEYER, Harding. Lutero e luteranismo hoje. Petrópolis: Vozes, 1969. p. 23-43.
Referentes a 2. A):
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Referentes a 3. A):
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JEREMIAS, Joachim. As parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1976. p. 142-148.
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BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1989. p. 9-55.
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Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia