Prédica: Marcos 1.14-20
Leituras: Jonas 3.1-5,10 e I Coríntios 7.29-31
Autor: Guilherme Lieven
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 26/01/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema:Epifania
Ó Igreja pequenina, tens o jeito de menino ou menina
Tens coragem de brincar com os brinquedos
do amor, da justiça e da paz.
1.Textos bíblicos do domingo
Nos domingos de Epifania somos convidados e convidadas a ver (e anunciar) a presença de Cristo entre nós. Jesus veio ao mundo como salvador. Viveu e anunciou o reino de Deus. Vários seguidores e seguidoras participaram da sua missão histórica. Ele foi crucificado, morto e sepultado. Ressuscitou e vive. Ele está presente em nosso meio e continua chamando pessoas e comunidades para viverem em seu reino. Os textos bíblicos deste domingo, especialmente Marcos 1.14-20, facilitam esta abençoada tarefa de revelar Deus em nosso meio.
O texto de Jonas lembra que Deus, já antes de enviar Jesus, chamou inúmeros mensageiros para revelar a sua vontade, a sua salvação. Deus mostrou-se e interferiu na vida e história do seu povo, chamando pessoas para agirem e atuarem em seu nome.
O texto de Marcos 1.14-20 registra o início da atuação de Jesus, do Deus encarnado, na Galiléia. Este início é marcado pela boa notícia, a proclamação do reino de Deus, e pelo chamamento de seguidores. Jesus não inicia sozinho a sua missão.
O reino de Deus está aqui. O tempo chegou. Somos chamados para participar e revelar este novo tempo de salvação. O chamado de Jesus exige uma ruptura, uma opção. O texto de l Coríntios 7.29-31 pode ser associado a este contexto.
2. O texto da pregação
V 14: Jesus seguiu para a região da Galiléia e anunciava o evangelho. Jesus inicia a proclamação salvífica na região que conhecia bem, às margens do lago Genesaré. O início da sua atuação e revelação é geográfica e historicamente definido (depois que João foi preso). Nos relatos de Marcos, a Galiléia é símbolo da revelação do evangelho, um lugar privilegiado; pois, após a ressurreição, foi na Galiléia que os discípulos receberam a revelação do Senhor ressurreto (Mc 16.7). Também hoje, Jesus revela-se na história e nos espaços concretos, especialmente onde vivem pessoas em situação econômica, cultural e social equivalente ao povo da Galiléia do tempo de Jesus.
V 15: Chegou o tempo! O reino de Deus está aí! Arrependam-se! Creiam! Jesus chama para uma ruptura com o que está acontecendo. Inaugura um tempo novo a partir do qual o reino de Deus se manifesta. Esta é a boa notícia da salvação. Ela promove mudança e comprometimento.
V 16-18: As redes… O lago de Genesaré, piscoso, com água doce e limpa, sustentava muita gente. Simão Pedro e André lançavam as re¬des. Jesus, passando por ali, chamou os pescadores. Eles deixaram a rede. Aceitaram o desafio de Jesus de lançar outra rede que salva vidas (Eu ensinarei vocês a pescar gente). Reis de Israel foram dominados com rede e impedidos de dominarem o povo (Ez.19.1-9). Conforme o profeta Oséias, Deus usava uma rede de caça para pegar as pessoas e levá-las ao castigo. O tempo agora é outro; Jesus propõe usar uma rede para salvar vidas.
V 19-20: Tiago e João pararam o trabalho, deixaram o barco, o pai, os que trabalhavam com eles e seguiram Jesus. Tanto Simão Pedro e André, como Tiago e João deixaram tudo o que tinham para trás. Renunciaram a um modo de vida e comprometeram-se com a missão de Jesus, o Deus Filho encarnado no mundo (Mc 1.11), optaram pela comunhão com o Jesus histórico, pelo trabalho com outra rede.
Após o batismo e o tempo no deserto (Mc 1.9-12), às margens do lago da Galiléia, Jesus se mostra como Deus encarnado, dizendo para que veio, vocacionando pessoas para auxiliá-lo em sua missão. Já no início, Jesus não está sozinho, o reino de Deus é vivido e proclamado em comunhão com mais pessoas. O Filho do homem, que assumiu a carne humana, precisa de uma comunidade de seguidores (…) (Bonhoeffer, p. 148).
3. Escolhas para a prédica
No Proclamar Libertação 22, a contribuição sobre o mesmo texto, de autoria de Walter R. Marschner, propõe uma pregação pautada pelas relações entre fé e obediência, entre chamado e seguimento. Faço escolhas muito próximas. A partir dos destaques acima apresentados
e da minha atual experiência, faço as seguintes sugestões para a pregação:
a) Desafios e características do discipulado hoje
O discipulado é um caminho da fé que revela a presença de Cristo entre nós. É uma experiência ativa com o reino de Deus. Assim como aconteceu com os quatro discípulos do nosso texto, também hoje o convite de Jesus exige um rompimento com o mundo, com o seu projeto de vida, a sua mensagem, as suas promessas, as suas liturgias, os seus deuses e compromissos. O discipulado acontece no mundo e está em confronto com o mundo.
Os primeiros discípulos deixaram a rede, o pai, os companheiros de trabalho, a casa, os amigos, para acompanharem Jesus. Experimentaram a comunhão física com o Filho encarnado e amado de Deus. Optaram pelo discipulado que exigiu um deslocamento, um movimento visível, que incluiu gestos, ações, ensinamentos e práticas em comunhão com Jesus. Assim o reino de Deus foi inaugurado na história e no mundo.
Hoje o discipulado acontece também através da comunhão estreita com Jesus Cristo. Não mais uma comunhão física, direta, mas experimentada pela fé e pela participação no corpo de Cristo. Uma comunhão que, assim como ocorria anteriormente à morte e ressurreição de Jesus, inclui gestos, práticas, ações, ensinamentos que se articulam através da vivência da Palavra, da prática da diaconia, do testemunho público e de cidadania, da vivência comunitária, da formação e da graça vivida nos sacramentos. O corpo de Cristo é o lugar visível onde o chamado de Jesus ecoa e o discipulado expressa-se e toma forma de rede que salva vidas.
Assim como no tempo de Jesus, o discipulado hoje exige um rompimento com o mundo. Um movimento que acontece a partir do sacramento do batismo. A pessoa batizada recebe o Espírito Santo e o chamado para uma nova vida. O próprio Cristo vem morar e ter comunhão com ele ou ela. No batismo, acontece o chamado de Jesus e, a partir dele, a comunhão com o corpo de Cristo.
Esta comunhão faz a diferença. O discípulo ou a discípula não está sozinho/a. Em comunhão com o Senhor ressurreto, participa do reino de Deus. Esta dinâmica criada entre os batizados e batizadas com Jesus Cristo torna visíveis o próprio Cristo e os sinais do reino. A presença e a ação salvadora do Cristo ressurreto no mundo transcendem essa dinâmica, são anteriores a ela e vão infinitamente além dela. Porém, é nela que concretamente somos inseridos e inseridas a partir do batismo.
b) Onde e como o reino de Deus está presente entre nós?
O reino de Deus é proclamado e vivido, tal como no tempo de Jesus, no contexto e na realidade do mundo. Na Grande São Paulo, por exemplo, a proclamação do reino de Deus e o discipulado constituem a prática de um povo plural, marcado por raízes, histórias, costumes, culturas e cultos diferentes. A própria experiência cristã, o discipulado e a vivência em comunhão com o corpo de Cristo, é diversa e dispersa. Está fragmentada, diluída e ofuscada pelos diferentes rituais, liturgias, teologias, modelos, projetos e instituições. Entre tantos modelos e experiências, estão incluídas práticas religiosas maquiadas por discursos baseados na Palavra de Deus, que negam o discipulado instituído por Jesus e transformam a boa notícia de Deus em mercadoria associada ao lazer, prazer, espetáculo e artifício teórico espiritual que legitima a prosperidade econômica.
Na realidade histórica e em meio a esta complexa manifestação religiosa, o próprio Cristo manifesta-se com o seu chamado, que inclui o rompimento com o mundo e a participação no seu reino presente. Frustra-nos, no entanto, a total incapacidade de entender, articular e controlar as manifestações do reino com suas formas, linguagens e ações libertadoras tão decisivas.
O nosso texto, Marcos 1.14-20, marcado pela proclamação do reino e do chamado de Jesus, que inclui o rompimento com o mundo, aponta para a comunhão dos discípulos e discípulas com Jesus, que se dá através do corpo de Cristo e transcende as fronteiras tradicionalmente estabelecidas. O exercício do discipulado, mesmo partindo das diferentes formas estabelecidas de culto e das inúmeras organizações eclesiásticas, vai além destas.
Hoje, os discípulos e discípulas são chamados a proclamar o reino, a jogar a rede e salvar vidas, no contexto em que se encontram: no trabalho, na rua, na casa, no lazer, no exercício da cidadania, junto à família, nas relações comunitárias, sociais e políticas. Cristo está lá em comunhão com eles e elas. Jesus chama e propõe o confronto com os mecanismos da morte no mundo, convida para participar do reino de Deus, para jogar a rede do evangelho que salva.
Em nosso contexto metropolitano, há muitas iniciativas direcionadas para salvar vidas. O chamado de Cristo compromete-nos com estas ou com outras que nós mesmos criamos para viabilizar o nosso discipulado. O tempo é agora. Chegou a hora (Mc 1.15).
4. Propostas para a prédica
O texto de Marcos 1.14-20 é desafiador. Colocado como central na celebração do terceiro domingo após Epifania indica o compromisso de facilitar para que a comunidade possa ver nos sinais do reino a presença de Jesus. Nosso estudo ensinou que a Epifania acontece quando o convite de Cristo é aceito e o discipulado é estabelecido.
Minhas propostas para a prédica estão limitadas pelas possibilidades que vislumbro no contexto pastoral em que me encontro. Espero, mesmo assim, que sejam sugestivas para outras situações.
a) Lançar a rede que salva vidas (Ensinarei vocês a pescar gente): a frase mais conhecida deste texto é o propósito do convite de Jesus feito aos discípulos. Creio que esta é a porta de entrada. Neste sentido, o artefato rede auxilia-nos como elemento lúdico e simbólico. Proponho instalar no ambiente de culto uma rede de pesca (ou uma rede de vôlei) e nela fixar várias palavras ou gravuras que comuni¬quem ações da comunidade como corpo de Cristo. A comunidade pode ser envolvida nesta dinâmica.
b) O discipulado: relacionar as ações da comunidade com o chamado de Jesus e a ação dos discípulos e discípulas hoje, que rompem com o mundo e lançam a rede como voluntários, voluntárias em serviços e movimentos que resistem à morte com os valores do evangelho.
c) Rompimento com o mundo: facilitar o entendimento de que este rompimento manifesta-se em pequenos gestos, ações, atitudes, cultivo de valores, opções que são praticadas e desenvolvidas no quotidiano através de um movimento quase invisível. Ele está relacionado ao chamado de Jesus, ao batismo, ao consequente discipulado e ao corpo de Cristo. Por causa da paciência e da ação do Espírito Santo, este movimento e rompimento traduz-se em solidariedade, em partilha, em resistência contra a violência e a injustiça, em socorro aos desvalidos, em oração, em construção da esperança.
d) Comunhão com o corpo de Cristo: é fundamental, nesta reflexão, a associação do chamado de Jesus com o sacramento da santa ceia. O nosso texto assim nos ensinou. O chamado cria comunhão com Cristo. Porém, não é necessário que isto aconteça na prédica. Proponho preparar o conteúdo da liturgia da santa ceia, permitindo a influência do texto que destaca a comunhão com Jesus Cristo como parte do discipulado.
5. Subsídios litúrgicos
Após a saudação apostólica ou trinitária, incluir o texto a seguir, compilado a partir da oração de Jonas (Jn 2.1-9):
Ó Deus Eterno, na minha aflição clamei por socorro, e tu me respondeste, ouviste a minha voz. Tu me tiraste do abismo. Pensei que estava longe de ti, afastado da comunhão contigo. Quando senti que estava morrendo, eu me lembrei de ti e me salvaste da morte, ó Eterno, meu Deus!
No Kyrie Eleison (lamento pelas dores no mundo), nomear as prin¬cipais situações que tocam diretamente a comunidade. Por exemplo, aqui em São Paulo: pessoas desempregadas, sem-teto, idosas, violentadas, famintas, acidentadas, doentes, abandonadas, crianças, jovens, perseguidas.
Na Oração do Dia, valorizar a participação das pessoas e clamar ao Deus Espírito Santo por sua ação em benefício da proclamação da palavra e da reflexão sobre ela.
Entre outros elementos da Oração de Intercessão, orar pelas discípulas e pelos discípulos que jogam a rede da vida, pelas pessoas envolvidas em ações e gestos que revelam a presença de Cristo no mundo.
Finalmente, proponho hinos para a celebração do hinário Hinos do Povo de Deus, v. I e II: 177, 199, 338, 377, 434, 435.
Bibliografia
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo: Sinodal, 1980.
MARSCHNER, Walter R. Auxílio Homilético sobre Marcos 1.14-20. In: SCHNEIDER, Nélio; DEIFELT, Wanda (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p. 56-59.
SEGUNDO, Juan Luís. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulinas, 1985. v. II/l, p. 107-262.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia