Prédica: Marcos 10.35-45
Leituras: Salmo 33 e Romanos 13.1-7
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes – Dia da Independência
Data da Pregação: 07/09/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
1. Cidadania
A celebração do dia da Pátria costuma seguir o mesmo ritual: desfiles, discursos, atos cívicos. Para muitos, isso não passa de obrigação rotineira. Outros até sentem embaraço, pois o patriotismo caiu em descrédito. Ele é responsável por conflitos sangrentos na história. Mesmo assim, não é bom deixar passar esse dia em brancas nuvens. O sete de setembro é o dia de nossa cidadania. Nós somos brasileiros. Antes de sermos dessa ou daquela origem, somos filhos e filhas deste solo, unidos por um idioma comum, uma história, uma Constituição, um território – e muito mais. Sem cidade não há cidadãos e cidadãs, e o Brasil é a nossa cidade (polis), o nosso Estado. Certamente existe um nacionalismo ufanista, agressivo, arrogante. Este deve ser combatido. Mas a falta de autoconsciência nacional também é problemática. Se tenho vergonha de minha identidade brasileira, algo está errado.
Eis por que o dia da Pátria cumpre uma função importante. Ele une o povo brasileiro e o lembra de seus direitos e deveres. Para tanto, a nação necessita de símbolos, a exemplo da bandeira. Como cristãos não vamos idolatrar a pátria. Mas também não há nenhum motivo para demonizá-la. Nós somos gratos por ter esta terra, pela proteção legal que a República Federativa do Brasil confere, pela casa que esse Estado oferece. E se há fenômenos a criticar, devemos ser nós os primeiros a engajar-nos na correção. A cidadania exige responsabilidade política. A inconformidade com o mal e a construção do bem é dever não só moral, mas também cívico.
Deus quer um Estado de direito, cumprindo seu mandato e assegurando a todos o bem-estar. Nisto há unanimidade nos textos previstos para a leitura e a reflexão neste dia. Feliz a nação regida pela palavra daquele Deus que ama a justiça e o juízo (SI 33). A autoridade política é um instrumento de Deus para a proteção da criatura. Deve promover o bem e castigar o mal (Rm 13). Jesus, em Mc 10, tampouco se opõe à autoridade como tal. Castiga, isto sim, o abuso. De resto, os textos são por demais heterogêneos para serem tratados em conjunto Recomenda-se, pois, a concentração no texto em destaque que é o de Marcos. Ele é o mais contundente. Adverte e critica. Será um texto antipatriótico?
Um mal-entendido desses pode surgir somente quando se confunde o Estado com o governo. É importante insistir: eles não são a mesma coisa. Muitos governos promovem essa confusão, ganham imunidade dessa forma. Em nosso país, na época da ditadura, dizia-se Brasil – ame-o ou deixe-o. Hoje, quem critica a política dos Estados Unidos é acusado de anti-americanismo. São apenas dois exemplos Se levarmos a sério os termos do hino nacional, dizendo mas se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, patriotismo é outra coisa. O patriotismo manifesta-se na luta por justiça e pelo respeito à dignidade da pessoa. O que fere a honra da pátria não é a crítica justa, e, sim, a corrupção, a violência, a miséria, a ma distribuição da renda e os demais flagelos do povo. Para consertar este país, precisamos de muitos bons patriotas.
A reflexão sobre textos como este poderá representar uma contribuição nesta tarefa. Este texto já foi tratado nesta série por Rui Bernhard, PL X, 1984, p. 106-113 e Werner Kiefer, PL XVI, 1990, p. 277-282.
2. A sedução do poder
Tiago e João pensavam ter apostado no homem certo. Jesus de Nazaré seria a nova esperança política de Israel. Ignorando o que ele acabara de lhes dizer sobre a necessidade de seu sofrimento, sonham com o poder. Querem assegurar seu lugar de ministros no Estado Novo chefiado por Jesus e participar dos privilégios da classe dominante. Estão até mesmo dispostos a pagar o preço de beber o cálice da renúncia e de submeter-se ao batismo do sofrimento – se é que eles sabem o que isto significa. A ascensão social requer algum sacrifício.
Mas Jesus frustra essas esperanças. Prenuncia-lhes o martírio e diz ser prerrogativa de Deus a distribuição de cargos de honra. Desaprova o raciocínio deles na íntegra. O desejo de dominar é coisa humana. É isto que fazem os governantes: apoderam-se da autoridade e sujeitam as pessoas às suas ordens. Mas entre vós não será assim… O jeito divino é outro. É servir em lugar de dominar. Foi exatamente para isto que Jesus veio, a saber, para servir e dar a sua vida em favor dos outros. O reino de Deus inverte a hierarquia: quem busca a grandeza seja o servo de todos.
O poder já sempre fascinou. Promete o céu na terra. Quem tem o poder, tem acesso ao dinheiro, é aplaudido, tem a satisfação de fazer valer a sua vontade. Demonstrações de poder militar ou econômico impressionam e demonstram sucesso. O mesmo vale para promoções religiosas. Grandes massas de fiéis parecem ser prova da verdade. Por todas essas razões o poder é disputado, às vezes, com brutal violência. Ou é defendido com unhas e com dentes. É invejado por quem não o possui. Não é por acaso que o pedido dos filhos de Zebedeu provoca indignação entre os colegas. Pois o poder classifica as pessoas em os em cima e os em baixo. E ele vicia. É difícil desprender-se do poder e passá-lo adiante. Ele é sedutor, perigoso, propenso à violência.
Entre vós não será assim… Jesus não quer estabelecer regras exclusivas para os seus seguidores. A comunidade cristã como grupo à parte neste mundo, como ilha de salvação no mar da corrupção, como modelo de sociedade alternativa? Isto nunca funcionou. As pessoas cristãs devem ser exemplo de novidade, sim. Mas estão por demais atreladas a este mundo para poder isolar-se. O fracasso da experiência monástica o comprova. Jesus tampouco pretende abolir o poder. Seria ilusório. A informação privilegiada, a boa lábia, o cargo numa firma, ou então uma arma na mão – tudo pode ser instrumentalizado para a dominação. Ademais, o próprio Jesus, de forma alguma, era uma pessoa sem poder. Ele surpreendia pela autoridade com que ensinava. Não tinha poder igual ao de Pôncio Pilatos ou Herodes. E todavia, se quisesse, também ele poderia ter fundado o seu reino. Não, o que Jesus quer é redirecionar o poder, reconceituá-lo. E isto é importante, justamente no dia da pátria.
3. Política diaconal
O poder tem duas opções: dominar ou servir. Todos sabem disso e evitam provocar suspeitas. Todo mundo é servidor, é claro. Ninguém explora, ninguém domina. Nós temos uma terminologia de serviço – também e justamente na Igreja. O equivalente grego para o ministério é diaconia. Isto soa bem. Porém, será que não existem muitos Joãos e Tiagos também na Igreja? Eu admiro a honestidade dos dois. Eles não escondem os seus propósitos. E, no entanto, serão obrigados a mudar de ideia. Aprenderão a diaconia. O serviço autêntico não se reconhece pela retórica, e sim, pela prática. Vocês estão dispostos a assumir a cruz do servo e da serva? Se não estiverem, vocês não passam de mercenários miseráveis.
Não sei se a ambição pelo poder é um pecado tipicamente mascu¬lino. Vejo poucas mulheres em funções de liderança na Igreja e na sociedade. Por quê? Os homens não permitem? Mesmo assim, pergunto se o poder, talvez em outras formas, não seria também um desejo de mulher. A dominação não se justifica em nenhum caso. Aliás, é importante não confundir direção com dominação. Toda sociedade necessita de liderança. Ela deve definir as responsabilidades e as competência. A cidadania inclui deveres que podem ser distintos conforme o ministério, a profissão, a posição, as capacidades, as atribuições estatutárias, etc. Nós precisamos de gente que vai na frente, abre picadas, mostra o rumo, gente que organiza e toma iniciativas. A boa direção sempre está a serviço da coletividade. A dominação, em contrapartida, subjuga, cria dependências, oprime, escraviza. Ela está a serviço de si própria, de seus privilégios e caprichos.
O alerta de Jesus possui uma relevância extrema em nosso contexto. Antes de qualquer outra coisa, é importante dizer que damos graças a Deus por todo político honesto, engajado na causa da paz, da justiça e da preservação do meio ambiente. Nem todo político é corrupto, assim como também na IECLB existe uma legião de diáconos c diáconas fiéis. Não sejamos injustos em nossos juízos. Não obstante, o que prevalece é uma concepção egoísta de poder. Os cargos públicos são vistos como oportunidade para explorar os cofres públicos, para barganhar favores, para se autopromover. Os escândalos que sacodem a vida pública são um sintoma disso. O mutirão contra o fisiologismo, a corrupção, a violência e outras chagas no corpo da nação é urgente. O poder se prostitui, não servindo à justiça, e sim, à causa própria.
O bem da pátria exige uma correção de rota, primeiro entre os discípulos, depois na sociedade. Eu diria isto assim: o decisivo é imprimir um espírito diaconal à profissão e à política. Isto não se faz por lei. Esta deve punir o abuso e o crime. Mais do que isto ela não é capaz de fazer. A política diaconal é uma questão de mentalidade, de educação c de fé. Feliz a nação que tiver Deus como Senhor (Sl 33) e que tiver autoridades promotoras do bem e repressoras do mal (Rm 13). Paia ser grande, não basta a extensão geográfica do Brasil e suas potencialidades futuras. É preciso cultivar a justiça. Então aumentará a qualidade da cidadania brasileira. O livro dos Provérbios também recorda isto ao dizer: A justiça exalta as nações, mas o pecado é o opróbrio dos povos (14.34). O maior inspirador da diaconia, porém, continua sendo Jesus, a cujo serviço devemos nada menos do que o perdão dos pecados e a promessa de vida eterna.
A prédica, assim penso, poderá seguir os passos desta meditação. Isto significa colocar em pauta, em primeiro lugar, o tema da cidadania a partir da comemoração da independência do Brasil. Um segundo bloco trataria a problemática do poder com base no texto em destaque. A exigência de imprimir uma nova mentalidade ao exercício de autoridade em todos os níveis seria assunto da parte final.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados: Senhor, nosso Deus! Ao analisar o cenário político de nosso país, detectamos muita culpa. O bem pessoal costuma ter a prioridade frente ao bem comum. Também nós somos co-responsáveis por isto. Deveríamos demonstrar mais energicamente a nossa inconformidade com a injustiça, a violência, a desonestidade. Perdoa o nosso pecado e vem socorrer o teu povo. Tem piedade de nós, Senhor!
Oração de coleta: Senhor, nós te agradecemos pelo país em que somos cidadãos. Nele estamos em casa. Queres que esta casa esteja bem arrumada, para que ninguém sofra privação ou ameaça. Queiras conceder a este Brasil bons administradores, atentos à tua palavra e conscienciosos no cumprimento de seu dever. Amém.
Intercessão: Deus, nosso Deus, hoje trazemos diante de ti a preocupação com os rumos do nosso país. Restabelece a paz nas nossas cidades e no campo. Dá-nos coragem para encarar as verdadeiras causas dos problemas que nos afligem. Elas estão na falta de perspectivas futuras, no desrespeito à dignidade humana, nas divisões que atravessam a sociedade. O ódio está crescendo, o amor diminuindo. Senhor, nós precisamos de políticos capazes de reconhecer a tempo o que é propício à paz, que semeiam esperança e lutam em favor de valores perdidos como a honestidade, a misericórdia e a sabedoria. Nós intercedemos especialmente em favor das vítimas da violência e das distorções sociais. Cumpre a promessa de teu Filho Jesus Cristo, quando este declarou bem-aventurados os que agora choram porque voltariam a ser alegres. Protege esta nação e concede-lhe a tua bênção. Amém.
Bibliografia
GAEDE, Rodolfo Neto. A diaconia de Jesus. São Leopoldo: Sinodal/CEBI/Paulus, 2001. p. 45s.
NEUHAUS, Dietrich. Von der Faszination der Macht. In: HÄRTLING, Peter (Ed.). Textspuren. Stuttgart: Radius. v. 1. p. 106s.
SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Matthäus. 11. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia