Prédica: II Tessalonicenses 3.6-13
Leituras: Salmo 98 e Lucas 21.5-19
Autor: Almir dos Santos
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 14/11/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema:
O Reino está entre nós: Mas ainda não se completou!
1. Introdução
Quem não quer trabalhar também não há de comer. Assim se pode entender a exortação de São Paulo em sua carta aos Tessalonicenses. É uma exortação feita em nome de nosso Senhor Jesus Cristo: “Trabalhem na tranqüilidade, para ganhar o pão com o próprio esforço” (3.12).
Toda comunidade deve defender-se do mal, e o pior mal não é o que vem de fora, mas o que destrói a comunidade por dentro. Em Tessalônica, havia alguns que, com o pretexto da iminente vinda do Senhor, viviam às custas dos outros, alienados das realidades terrenas e em contínua agitação (v. 11). Ora, Paulo ensina, com seu exemplo, que o cristão não come gratuitamente o pão (v. 8), não vive ociosamente (v. 7); procura ser útil aos outros com o próprio trabalho (1 Ts 1.3). Em Malaquias 4.1-2a, uma das leituras para este domingo, nós lemos: “Para vós surgirá o sol da justiça”. Creio que segue um pouco a linha de ação do que São Paulo coloca aos tessalonicenses. A prosperidade dos ímpios sempre foi escândalo e tentação para os justos; não conviria ser como eles? (Hb 3.13-15). Mas o Senhor faz compreender que os justos estão escritos num livro misterioso, isto é, estão sob a proteção de Deus (Ml 3.16-18) e no dia do juízo haverá para os ímpios a condenação e para os justos se levantará o sol da justiça (v. 20); assim perceberão que eles são os verdadeiros vencedores. Creio que o Evangelho de Lucas também ressalta esse discurso escatológico; sente-se como desapareceu agora a preocupação de uma vinda imediata do Senhor (Lc 21.9) e como a destruição de Jerusalém (21.5-9.20-24) já é coisa passada. O evangelista a lembra para dizer aos cristãos que Jesus tinha razão e, para infundir-lhes confiança nas outras palavras de Jesus (v. 10-19), o Senhor não os enganou: “É pela vossa perseverança que haveis de salvar-vos”.
2. Um messias que decepciona: uma meditação decisiva
No discurso escatológico, Jesus explica o significado de sua intervenção messiânica, usando o vocabulário e os temas da literatura apocalíptica, uma linguagem difícil para nós. A intervenção histórica do Filho do homem inaugura os últimos tempos. A plenitude de vida é concedida. A obra do Messias tem o cunho do universalismo. Ele deve reunir todos os homens dos quatro pontos da terra, porque todos são chamados a ser filhos do Pai. Jerusalém é condenada porque traiu sua missão, transformando em privilégio para si o serviço a ser prestado a todos os povos; não renunciou a seu particularismo. O reino do Filho do homem não é triunfo sobre os inimigos do povo, mas seu caminho de obediência até a morte de cruz. O caminho para chegar à plenitude desejada é diferente daquilo que o povo esperava; é necessário passar pela morte para entrar na vida eterna; porque a morte, aceita por obediência, pode ser neste mundo a realidade onde se consuma e se realiza o maior amor por Deus e por todos os homens.
Intervindo na história de modo diferente da expectativa do povo, Jesus de Nazaré não traz uma plenitude totalmente pronta. Não é uma intervenção mágica que desresponsabiliza o homem. É verdade que chegou a plenitude prometida, mas espera ser completada. É um dom, mas simultaneamente uma conquista. A plenitude verdadeiramente última será também o encontro de duas fidelidades.
3. Tempo da Igreja
Depois da ressurreição de Cristo, a reunião da humanidade inteira numa comunhão de amor com Deus se faz gradualmente, e o mundo entra numa fase decisiva de seu crescimento, em vista da recapitulação universal em Jesus Cristo. No centro desse dinamismo, a Igreja tem uma parte essencial enquanto é corpo de Cristo. E, como tal, deve seguir o caminho do Mestre: a morte para a vida. E deve continuamente superar também a tentação de identificar-se com o reino definitivo e de se fechar no particularismo.
Os muros da separação, que os povos e as áreas culturais não deixam de elevar entre si, são fundamentalmente o obstáculo mais grave à comunhão universal. A missão da Igreja é superar esse obstáculo. O meio é o amor dos inimigos, que destrói as barreiras impostas pelo homem. Hoje mais do que nunca damo-nos conta da extraordinária amplitude da tarefa da Igreja.
Além disso, pode-se medir a relação que liga, em sua distinção, a missão e a obra das civilizações. Um dos problemas fundamentais do nosso tempo é o encontro das culturas. É problema político, social, econômico, mas não somente isto. Sem o amor gratuito e universal, não se poderá chegar à solução.
“Toda a Igreja é missionária, em virtude da mesma caridade com que Deus enviou seu Filho para a salvação de todos os homens. E única é a sua missão de se fazer próxima de todos os homens e todos os povos, para se tornar sinal universal e instrumento eficaz da paz de Cristo.”
4. O caminho para um mundo novo
Gostaria de aproveitar este penúltimo domingo do ano eclesiástico para trazer aos leitores de Proclamar Libertação uma ilustração que encontrei em minhas leituras e que nos coloca nesse espírito de espera, nessa expectativa de um novo ano litúrgico, quando nos preparamos para mais uma comemoração do nascimento daquele que veio para ser o Príncipe da paz, o Deus forte e salvador de todos nós. Essa ilustração nos faz refletir sobre o Advento que se aproxima, no sentido de preparar o caminho para um mundo novo.
“Eu sou a voz do que clama no deserto: endireitai o caminho do Senhor…” (Jo l. 23).
Ao ler sobre a tarefa de João Batista, as lembranças de minha infância me vêm à memória.
Lembro do tempo de criança, o alvoroço que causava a chegada de uma patrola. A gente deixava tudo de lado e ficava a observar o trabalho que ela realizava. O patroleiro era para nós um herói. Dirigia, de pé, aquela máquina tão diferente. Admirados, víamos como ele manobrava a enorme lâmina, encostava-a no barranco e levava de roldão terra, pedras e pedaços de raízes. Atrás de si a patrola deixava um cheiro gostoso de terra fresca e um chão bem liso. Tão liso que, em alguns lugares, chegava a brilhar. Felizes, corríamos pela estrada patrolada. As valetas, os buracos, as pedras soltas haviam desaparecido.
Estas boas lembranças me vêm à memória quando leio o texto bíblico que aponta João Batista como o mensageiro que havia sido anunciado por Isaías para preparar o caminho do Salvador, tão esperado pelo povo de Israel. João é a “voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas” (Mt 3.3).
A missão de João Batista é semelhante ao trabalho executado por um patroleiro. Ao anunciar que Jesus é o Filho de Deus, João indica a direção a ser seguida. Ajuda a tirar da vida aquilo que atrapalha. Para as pessoas que vivem sem esperança deixa o caminho pronto para um mundo novo. João Batista prepara o caminho para aquele que é o caminho – Jesus.
Lembro, também do tempo de criança, do início da construção de uma nova estrada. Ela começava num potreiro, perto do cemitério. E deveria cortar vários morros. Eu achava incrível que apenas um homem havia sido contratado para esse trabalho. Às vezes, eu ia observar seu trabalho. Ele dizia que não havia dinheiro para contratar mais trabalhadores. Entre um dia e outro, quase não se viam mudanças, por mais que esse homem trabalhasse. Com uma picareta, ele derrubava grandes blocos de pedras. Colocava-as num carrinho de mão e despejava-as logo adiante, numa baixada. Anos mais tarde, com mais verba e máquinas, a estrada rapidamente saiu do lugar. Mas aquele início foi importante.
Estas lembranças também me vêm à memória quando leio algo sobre João Batista. João é como a voz no deserto: isolada. Seu esforço aponta para algo aparentemente sem sucesso, sem perspectivas. Suas palavras, porém, não ficam sem eco. Perguntado pelas multidões, que com o tempo passam a segui-lo, sobre o que deveriam fazer, João lhes indica o caminho da solidariedade. Mostra a riqueza que brota da vida em comunhão. Pede que ninguém viva de forma isolada. Anima cada pessoa a repartir suas túnicas e sua comida com os mais necessitados. João Batista fala a verdade a respeito daquele que é a verdade – Jesus.
Lembro, ainda do tempo de criança, de grandes enchentes. Com a chuva, os arroios, em geral secos e pequenos, saíam de seu leito. E inundavam tudo a seu redor. As pinguelas, que ficavam a uma grande altura sobre as águas, não eram atingidas. Mas as pontes mais baixas eram arrastadas pela correnteza. A pé, até mesmo a cavalo, era muito arriscado cruzar o arroio. Sem as pontes ficávamos isolados. A única solução era esperar que a água baixasse para então construir uma nova ponte.
Estas lembranças também me vêm à memória quando ouço algo sobre João Batista. João é como uma ponte. Ajuda as pessoas a saírem de seu isolamento e coloca-as em contato com as que lhe são próximas – como uma ponte, facilita o acesso e a comunicação entre as pessoas, como uma ponte, ajuda as pessoas a saírem de uma situação difícil.
Ao pregar o arrependimento “porque está próximo o Reino dos céus”, João Batista conduz as pessoas de uma vida sem sentido para aquele que é a vida – Jesus.
Preparar o caminho para o Reino de Deus, trabalhar por uma vida em comunhão, construir e ser uma ponte entre as pessoas – é o que Jesus também espera de cada um de seus discípulos, de nós todos como cristãos.
5. Conclusão
Estamos por findar um ano eclesiástico e conseqüentemente começar um novo ano litúrgico. O ano que finda foi um ano de guerras, de violência e muitas injustiças. Falou-se da paz, pregou-se a paz, mas esta paz ficou muito fragilizada e, algumas vezes, deixou de existir. Gostaria de concluir esta homilia com um pequeno texto sobre a paz, extraído da Agenda Anglicana, que nos fala sobre como construir a paz:
Construir a paz
Felizes os misericordiosos; feliz quem conseguir sair dessa indolência que por toda a vida nos impede de inventar algo novo. Feliz quem explodir os círculos viciosos – de nossas enjoadíssimas desavenças, raivas, brigas, violências.
Criar algo novo, inventar como o nosso Pai Celeste. Sede misericordiosos – sede criadores! Deus não se deixa aprisionar pelo pecado. Fechou a cara? Eu também fecho. Quando Adão, na história bíblica, escondeu-se atrás de uma cortina de folhas, Deus não se retirou por trás da sua. Deu o primeiro passo. Deus dá sempre o primeiro passo. “Adão… onde estás? Então, vem cá, meu amigo. Não fiques assim!”
As situações que julgamos as únicas possíveis são as mais escravizantes; emprestar para quem nos vá restituir, sorrir para quem nos sorri… Sorrir para quem nos cospe na cara, ajudar quem nos dá as costas; estes são atos livres, criadores.
Felizes os artífices da paz; feliz de quem não se resigna aos estados de guerra, às desavenças sem fim.
Até que julguemos que as relações entre as pessoas devam ser baseadas na força, a história não fará progresso.
Os jornais diariamente publicarão notícias sensacionais. Mas, na realidade, nada verdadeiramente de novo acontecerá. Só haverá o fato corriqueiro, insignificante de todos os dias: pessoas que morrem. Tudo igual à primeira tarde do crime de Caim.
E o Pai continuará a perguntar-nos: Mataste ainda?
Um diretor conclui seu filme com esta profética afirmação: “O inimigo, a trezentos metros de distância, é um alvo. A três metros é um ser humano”.
Esta é a perspectiva de um cristão que sinceramente deseja perder o gosto de apertar o gatilho e que entende jogar para longe, definitivamente, o velho chicote.
Um inimigo? Não. Experimenta chegar mais perto. Faz-te próximo. Descobrirás um ser humano. E, por trás, um crucifixo.
Após esta descoberta, se ainda te restar uma gota de coragem, aperta tranqüilamente o gatilho.
Num mundo rasgado pela violência e pelo ódio, somos chamados a construir a paz, fruto da justiça e da misericórdia.
Bibliografia
MISSAL Dominical – Liturgia da Assembléia Cristã, Edições Paulinas, 1980. Vol. I.
KONINGS, Johan. Liturgia da Palavra, caminho da fé. Ano C – O Novo Povo de Deus. São Paulo: Paulinas, 1986.
AGENDA Anglicana – Ano 2002, Porto Alegre.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia