Prédica: Lucas 14.1,7-14
Leituras: Salmo 112 e Hebreus 13.1-8
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 12/9/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema:
1. Introdução
É tão conhecida a preocupação do ser humano por reconhecimento, honra e mérito.
A busca por mais espaço, por posição de destaque, pelo primeiro lugar nos é familiar. É uma tentação também na vida dos cristãos. Mesmo as igrejas não estão livres dela. As comunidades cristãs não tiveram, no início de sua história, posição de destaque. Ao contrário, foram perseguidas. Mas a conversão do imperador Constantino, no início do quarto século, introduziu um momento novo para a Igreja. Ela não mais precisou temer o cárcere, nem viver na clandestinidade. Os bispos receberam títulos de nobreza e passaram a viver em palácios. O Estado dava apoio e proteção à Igreja. Até hoje, as igrejas deixam-se levar pelo fascínio do poder e pela luta por lugar de destaque na sociedade.
Qual é o nosso lugar? O colega Ulrico Sperb, em sua reflexão sobre o nosso texto, em um número anterior do PL, falou sobre “Aqui você tem lugar”. É a Igreja se confessando inclusiva. Não a luta por poder, não a disputa pelo primeiro lugar, mas a dimensão da doação e do servir é determinante.
2. Auscultando o texto de preparação
Esta introdução que acabamos de fazer já pressupõe uma definição quanto ao gênero literário a que pertence o nosso texto.
À primeira vista, parece tratar-se de regras de etiqueta. Nossa vida está cheia delas. Desde crianças somos educados a observá-las. No fundo, elas servem para evitar situações de constrangimento. Querem proteger de embaraços.
Os v. 7-11 do texto de pregação para o 15º Domingo após Pentecoste parecem indicar regras de etiqueta. Bultmann, na sua pesquisa sobre a história da tradição sinótica, concluiu tratar-se de uma “regra profana de esperteza, típica para a sabedoria, assim que é de se admirar que tal fragmento chegou a ser incluído nas palavras de Jesus”. Não vê, portanto, nessas palavras nada para a nova espiritualidade inaugurada por Jesus que ultrapasse a tradição judaica.
Vejamos o contexto. Talvez isso nos ajude na definição. Jesus se encontra numa ceia festiva na casa de um dos líderes dos fariseus. Para os judeus, por ocasião de uma ceia formal, era especialmente importante observar as regras vigentes para a tomada dos lugares à mesa. O critério era a posição social dos convidados. Jesus observou atentamente esse procedimento. Notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares. “Então contou-lhes uma parábola: Quando fores convidado para uma festa de casamento, não ocupes o primeiro lugar…” Jesus utiliza a situação como termo de comparação para trazer uma mensagem que vai muito além de uma simples regra de etiqueta. Ele fala do Reino. O Reino de Deus não admite discussão sobre quem é o maior, o mais importante, quem merece o primeiro lugar.
Enquanto se argumenta quantos lugares abaixo é conveniente assentar-se, ainda se permanece no cálculo. O rabi Simeão ben Azzai (110 a.C.) estabeleceu a seguinte regra: “Fica distante dois ou três lugares daquele que te cabe até que te digam: Sobe. Mas não subas antes, pois pode acontecer que te digam: Desça. É melhor que te digam: Vem, vem, do que: Volte atrás, volte atrás”. Também no Evangelho segundo Mateus uma regra semelhante é conhecida. Ela aparece em um antigo manuscrito denominado D. Ali lemos: “Quando chegas a um banquete ao qual te convidam, não ocupes os lugares de honra, para que não apareça alguém mais digno do que tu e o mestre do banquete venha a dizer-te: Fica ali mais embaixo e tu te cubras de vergonha. Mas se ocupares um lugar inferior e chegar uma pessoa menos digna do que tu, o mestre do banquete te dirá: Chega-te mais para cima, e isto será vantajoso para ti”.
E é nesse ponto que Lucas radicaliza. Conforme ele, Jesus ensina: “Quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar”.
Não há mais espaço para cálculos. Não importa a instrução para uma eficaz aplicação de regras gerais de comportamento.
Conforme Lucas, Jesus toma uma situação da vida cotidiana, ou seja, a preocupação dos convidados a uma ceia com a correta e criteriosa escolha dos lugares, para falar do Reino.
O assunto passa a ser não o cálculo, mas a contraposição de honra e humilhação. “Pois todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (v. 11). O Reino dos céus tem a ver com “ser pequeno” (Mt 18.4).
Estas afirmações costumam ser usadas nos evangelhos quando é discutida a questão quem é o maior no Reino dos céus. “Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos“ (Mc 10.43,44). Colocado nesse contexto, nosso trecho é realmente uma parábola que aponta para o Reino de Deus e as características do ser pequeno, ser servo. Conquistar melhor lugar, maior espaço? Com que finalidade?
Os v. 12-14 continuam na mesma linha de argumentos. Trata-se de ver quem convidar na perspectiva do Reino. Devem ser convidados “os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos… pois estes não têm com que retribuir” (v. 13 e 14).
O usual, porém, seria convidar justamente “os amigos, os irmãos, os parentes e os vizinhos ricos” (v. 12). Estes podem retribuir o convite. Eles podem convidar, por sua vez, e isto já será a recompensa.
Mas as coisas do Reino são diferentes. Ele é dos que, de acordo com as convenções sociais vigentes, estão à margem. Ele é, numa expressão de Vitor Westhelle, “o carnaval dos estropiados”. O Reino é a festa dos pobres.
3. Salmo e epístola indicam como caminho: ser compassivo e preservar no amor fraterno
O Salmo 112 e Hebreus 13.18, textos bíblicos também previstos para o 15º Domingo após Pentecoste, inserem-se bem nesse contexto do servir e dos valores do Reino. Aliás, esse salmo é uma belíssima construção literária. Cada versículo inicia com uma letra do alfabeto hebraico. Se eu fosse poeta, reescreveria essa bela obra em nossa língua, usando, na seqüência, todas as letras do alfabeto para o início das frases. Começaria com A aleluia e terminaria com Z zênite, que na sua origem significa “caminho, direção, rumo”, ou zelo. Zelo pela palavra do Senhor é a nossa alegria (cf. v. 1). Quem sabe, alguém se anima! Quanto ao servir em humildade, destaco o v. 5: “Feliz é quem é compassivo e empresta, administra seus bens com justiça”. O v. 9 retoma esse pensamento, indicando que o justo é aquele que “reparte e dá aos pobres”.
Hebreus, por sua vez, reafirma que decisiva é a “graça” e não as “regras alimentares” (ou as preocupações pelo lugar à mesa), das quais não se tira nenhum proveito (Hb 13.9). Servir, acolher os estropiados ou, como diz o trecho da epístola, não descuidar da hospitalidade é a conduta cabível. Ela é inspirada no amor libertador de Deus em Cristo. Hebreus não se cansa de exaltar o papel único, insubstituível e definitivo de Cristo. Ele nos traz salvação através da autodoação até a morte. Ele é o verdadeiro e único Sumo Sacerdote. “Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre” (v. 8). A nós cabe corresponder ao amor, assim encarnado, pela fé traduzida em conduta de amor fraterno.
Que nosso agir não seja “inspirado pelo amor ao dinheiro” (v. 5), que “compra” os primeiros lugares.
Fecha-se, assim, o ciclo de reflexão acerca dos valores do Reino.
4. “Nosso lema é servir”
No tempo de minha juventude, nos anos 1960, gostávamos de cantar uma canção que descrevia nossa missão no mundo com as palavras “nosso lema é servir”. Junto com isso íamos descobrindo, pouco a pouco, o que significa ser comunidade inclusiva. Percebemos a libertação que representa o princípio da inclusão. Deixar de estar centrado em si mesmo, deixar de cultivar um individualismo estéril, abandonar o cálculo quanto a merecimento significou sentir o sopro do Espírito libertador.
Surgiram novas possibilidades de compaixão pelos excluídos, pelos que estão à margem da sociedade. Percebemos que para o banquete do Reino devem ser chamados os que, aos olhos do mundo, não merecem convite algum.
O nosso texto fala exatamente disso. Aliás, a vida toda de Jesus representa um grande ato de inclusão. Buscava o pecador, o excluído. Ele rompeu todas as categorias de exclusão. Rasgou as listas de cálculo que fixavam com exatidão quem era digno de ser aceito.
A ressurreição confirma esse caminho de inclusão e de solidariedade que Jesus viveu até o fim, até a morte e morte de cruz. E é daqui que brota a graça que nos leva a cantar: “nosso lema é servir”.
Nos dias que vivemos, somos confrontados com muitos desafios. Guerra, violência, temores, miséria e desalento marcam o mundo nesse início do novo milênio. E para o Brasil continua valendo o que escreveu meu amigo João Dias de Araújo: “Há muitos pobres sem lar, sem pão, há muitas vidas sem salvação… Há muita gente em meu país, há tanta gente que é infeliz, há criancinhas que vão morrer, há tantos velhos a padecer. Milhões não sabem como escrever, milhões de olhos não sabem ler. Nas trevas vivem sem perceber que são escravos de outro ser”.
Mas há esperança. O povo manifestou, nas últimas eleições, o desejo de um país diferente, de um país mais justo e fraterno. Mas é necessária nossa contribuição do serviço concreto. Assim, podemos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças do nosso povo, lesado em seus direitos.
Fome e desnutrição são a dimensão mais visível da miséria. O projeto do novo governo ”Fome Zero” pode ser espaço para o nosso servir, inspirado no Evangelho.
Podemos convidar ao banquete aquelas pessoas que não têm com que retribuir: “Quando ofereceres um almoço ou jantar, não convides teus amigos (…) nem teus vizinhos ricos (…) pelo contrário, quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos” (v. 12 e 13).
Não necessitamos de regras de etiquetas, nem de poder, tampouco de cargos para exercer o serviço e a compaixão, que levam à encarnação no cotidiano dos empobrecidos. E o próprio Evangelho que nos leva a ver o que se passa “nos porões do sofrimento humano” ou mesmo “à luz do sol” (confira o texto-base da CF 2000-Ecumênica).
Fica, pois, o convite de nos colocarmos a serviço e a gastarmos algum tempo para caminhar com quem sofre. O importante é doar-se. Isto é infinitamente mais do que assistencialismo. É resgatar auto-estima. É ajudar alguém a levantar-se e a caminhar.
É assim que estaremos nos assentando nos últimos lugares, é assim que estaremos convidando “os que nada são” para a ceia.
5. Algumas dicas para a prédica
Num primeiro momento e a título de introdução, pode-se falar da tentação do ser humano em buscar o melhor espaço, os primeiros lugares.
A passagem para o texto, então, acontecerá de maneira natural. Aprendemos que a reflexão teológica é feita na escrivaninha e não no púlpito. Mas, no caso especifico, sugiro expor à comunidade brevemente a discussão sobre o gênero literário: é a primeira parte do nosso texto uma simples regra de etiqueta ou uma parábola?
A partir dessas colocações é possível aprofundar os valores do Reino, como humildade, busca das pessoas excluídas, autodoação, enfim, um verdadeiro sacerdócio da vida.
Tudo pode desembocar no convite concreto de nos engajarmos em programas de superação da fome. É preciso alimentar com gestos concretos a esperança de que é possível construir uma sociedade mais justa no Brasil. Deve-se ter o cuidado para que esse convite ao banquete não se resuma apenas à distribuição de alimentos.
6. Subsídios adicionais
Que estou fazendo
1. Que estou fazendo se sou cristão?
Se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres sem lar, sem pão,
há muitas vidas sem salvação.
Meu Cristo veio p’ra nos remir:
o homem todo, sem dividir,
não só a alma do mal salvar,
também o corpo ressuscitar.
2. Há muita gente no meu país,
há tanta gente que é infeliz,
há criancinhas que vão morrer,
há tantos velhos a padecer.
Milhões não sabem como escrever,
milhões de olhos não sabem ler.
Nas trevas vivem sem perceber
que são escravos de outro ser.
3. Aos poderosos eu vou pregar,
aos homens ricos vou proclamar
que a justiça é contra Deus
e a vil miséria insulta os céus.
Meu Cristo veio p’ra nos remir:
o homem todo, sem dividir,
não só a alma do mal salvar,
também o corpo ressuscitar.
(João Dias de Araújo)
Bibliografia
GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. 6. ed. Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1971. p. 292-296.
SPERB, Ulrico. Meditação sobre Lucas 14.7-14 (15º Domingo após Pentecostes). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1997. v. 23. p. 167-171.
WESTHELLE, Vitor. Meditação sobre Lucas 14.7-14 (15º Domingo após Pentecoste). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1991. v. XVII. p. 196-200.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia