Prédica: Lucas 20.9-19
Leituras: Salmo 28.1-3,6-9 e Filipenses 3.8-14
Autor: Werner Wiese
Data Litúrgica: 5º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 28/3/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema:
1. Aspectos do contexto
a – Os três primeiros evangelistas relatam a perícope: Mt 21.33-46; Mc 12.1-12 e Lc 20.9-19. Lucas a traz de forma mais compacta. Os três evangelistas a inserem no mesmo cenário de acontecimentos: a entrada de Jesus em Jerusalém e sua atuação no templo, o que levou à pergunta da legitimação dessa atuação.
b – O cenário deixa transparecer uma relação tensa entre Jesus e os principais líderes religiosos do judaísmo (Lc 19.47; 20.19s). A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Lc 19.28s) provoca diferentes reações: enquanto a multidão dos discípulos aplaude Jesus (Lc 19.36-38), alguns dos fariseus pedem pela correção da conduta dos discípulos (Lc 19.39). A intervenção de Jesus na rotina do templo (Lc 19.45-46) leva os principais sacerdotes, os escribas e anciãos a pedirem explicação plausível para essa atitude: “Com que autoridade fazes estas coisas? Ou quem te deu esta autoridade?” (Lc 20.1-2).
c – Essa indagação evidencia que Jesus tocou num ponto vulnerável da sociedade judaica: a relação entre prática piedosa e economia de mercado, produzida e legitimada no coração da piedade judaica, o templo em Jerusalém (para mais informações, cf. Martin Volkmann. Jesus e o Templo). O próprio Jesus percebe que sua intervenção na ordem econômico-religiosa do templo deixou os líderes religiosos em estado de alerta máximo. Por isso Jesus responde a pergunta feita a ele com uma contrapergunta: “Dizei-me: o batismo de João era dos céus ou dos homens?” (Lc 20.3b-4). Também esta fica sem resposta.
2. Aspectos exegéticos
a – A parábola dos lavradores maus é uma resposta indireta de Jesus à pergunta dos principais sacerdotes, escribas e anciãos. Diferente de Mt 21.33s e Mc 12.1s, no relato de Lucas Jesus não dirige a parábola diretamente a seus interrogadores, mas ao povo (Lc 20.9a). Contudo, os líderes religiosos (membros do Sinédrio) também se encontram entre o povo como ouvintes, pois só assim o v. 19 adquire sentido no texto em destaque.
b – A parábola usa várias figuras de linguagem. Todas elas são inteligíveis por si só:
v. 9 – 1) O ser humano que plantou uma vinha representa o próprio Deus. No Antigo Testamento, Deus é comparado várias vezes a um vinhateiro (Sl 80.8s; Is 5.1s; Jr 2.21).
2) A vinha representa Israel, o povo de Deus desde o Antigo Testamento, no qual Deus investiu com muito cuidado (Is 5.1s; Mt 20.1s; Lc 13.6-13).
3) Os lavradores representam os líderes do povo de Deus. Às vezes, eles também são chamados de pastores (Jr 23.1s; Ez 34.1s).
4) Ausentar-se por prazo considerável não é sinal de que o dono da vinha – Deus – não tenha interesse por seu povo. Ao contrário, Ele é longânimo e tem expectativa pelo fruto da vinha cultivada pelos lavradores. O envio dos servos aos lavradores e de seu próprio filho é sinal claro de que o dono da vinha conta com frutos.
v. 10-12 – Os servos enviados aos lavradores e o maltrato que estes lhes infligiram são o retrato da história de Israel/Judá, contanto que seja a história de Deus com seu povo até os dias de João Batista e Jesus. Boa parte dessa história é marcada pela rebelião dos líderes do povo contra a reivindicação de Deus sobre seu povo, incluídos os líderes. Servo(s) é uma caracterização dos profetas de Deus (Js 14.7; 2 Rs 21.10; Jr 7.25; 25.4). O tratamento dos servos espelha o tratamento que profetas de Deus receberam dos líderes do povo de Deus ao longo de sua história (Jr 20.1s; 37.15; 1 Rs 19.14; 22.7s).
v. 13 – O envio de seu filho amado é a última e mais paciente investida do dono da vinha para obter fruto dela (cf. Lc 13.6-9). O dono tem consciência do risco que esse empreendimento representa: “Que farei? Enviarei o meu filho amado; talvez o respeitem” (v. 13a). “O meu filho amado” é uma referência ao envio de Jesus, o Cristo de Deus.
v. 14-15a – O filho amado do dono, em vez de ser respeitado, torna-se objeto da cobiça dos lavradores: “Este é o herdeiro; matemo-lo, para que a herança venha ser a nossa” (v. 14b). Nestas palavras, a morte de Jesus de Nazaré está prefigurada de forma incômoda até para os próprios protagonistas dela (cf. Lc 20.19).
c – Conseqüências e reações às palavras sobre o assassinato do herdeiro (v. 15b-19):
v. 15b-16a – Esse assassinato – exceto em caso de falência do senso de direito e justiça – requer necessariamente que se levante a questão da atitude do dono da vinha diante de tal comportamento egoísta e sem escrúpulo. Jesus mesmo a levanta e responde: Os lavradores/arrendatários serão mortos e a vinha será passada adiante, para outros arrendatários. Com isso o dono da vinha faz muito mais do que justiça; ele arrisca um novo empreendimento: a vinha continuará com a finalidade de trazer frutos.
v. 16b – A reação do povo é de espanto e perplexidade: “Tal não aconteça!” Esta expressão pode conter vários sentimentos, tais como: Isto não pode ser. O ungido de Deus não pode morrer. Nosso Deus não nos pode entregar ao arbítrio dos adversários (cf. G. Maier. Lukas-Evangelium, p. 477s).
v. 17-18 – Curiosamente, Jesus não justifica a atitude do dono diante do povo perplexo, mas simplesmente aponta para uma dimensão paradoxal na qual ele passa da figura da vinha e dos lavradores para a figura dos construtores e da construção: a pedra que os líderes de Israel lançaram fora, exatamente esta tornou-se a pedra principal, tanto para o bem como para o mal (Sl 118.22; Is 28.16; 8.14; cf. Dn 2.24s). O Novo Testamento vê nessa pedra uma indicação clara para Jesus Cristo: nele se cumprem as promessas de Deus em juízo e graça (At 4.11-12; Rm 9.33; 2 Co 1.20; Ef 1.10).
v. 19 – As autoridades religiosas (escribas e sacerdotes) novamente entram em cena. Sua reação em relação à parábola é de indignação. Com isso atestam duas coisas: a primeira é que a sorte de Jesus está definitivamente selada; a segunda é que a postura das autoridades confirma a veracidade daquilo que foi dito sobre os lavradores, os líderes do povo de Deus nessa parábola (cf. 19.47-48; 20.6). A partir das observações exegéticas surgem algumas reflexões teológicas, que sintetizaremos a seguir.
3. Aspectos teológicos
a – A perícope toda trata de Deus e de seu povo: Israel/Judá. A partir de Jesus de Nazaré – o Cristo de Deus –, a parábola transcende limites étnicos e passa a ser como que um extrato da história de Deus com seu povo de todos os tempos, composto de judeus e gentios (cf. Rm 1.16; 2.9-11). É verdade, Deus não faz acepção de pessoas. Da sua longanimidade, no entanto, não se pode zombar.
b – O povo de Deus de fato é de Deus. É Deus quem toma a iniciativa para reunir um povo chamado de comunidade/igreja de Deus (ekklesia tou Theou). Também é Deus quem confia sua causa às mãos humanas. Desde os primórdios isto é assim (Gn 1.26-29; 2.15). Disso de forma alguma se deduz que Deus não levava sua causa a sério. Bem pelo contrário. O ser humano investido de qualquer autoridade na terra nunca deveria esquecer que ele apenas é administrador interino de “bens alheios”, sobre os quais deverá prestar contas ao dono legítimo e último – Deus. A consciência desse fato deveria fazer de nós trabalhadores transparentes e responsáveis entre o povo de Deus.
c – Deus corre risco com o ser humano, mas sua causa não frustra. Deus não está preso a um grupo étnico ou a uma confissão de fé, por mais rica que sua herança teológica possa ser. Deus não desiste, mas investe no ser humano e pede prestação de contas da forma como o ser humano lida com os bens que lhe confiou. Este fato é um ponto de interrogação que nos pode guardar da segurança fatal e nos proporcionar certeza do cuidado de Deus com seu povo, do qual também nós fazemos parte.
d – Graça e juízo de Deus como elementos inerentes ao Evangelho. Numa época em que seres humanos se arrogam ser juízes sobre a terra e os povos, nossos sentimentos resistem à expressão graça e juízo de Deus. Contudo, ambos os elementos estão contidos em nosso texto e fazem parte do Evangelho. Como encará-los sem os deturpar? Não devemos esquecer duas coisas: 1) o sujeito de graça e juízo é o próprio Deus. Embora Ele possa usar circunstâncias diversas para manifestar e contextualizar graça e juízo, o ser humano nunca é detentor deles, mas está debaixo deles sem mérito e direito; 2) graça e juízo de Deus não são uma relação mecânica automática, de modo que o ser humano, individual ou coletivo, que reconhece e confessa sua culpa adquira direito de perdão por ser ofício obrigatório de Deus perdoar pecados. Ao se tratar de culpa e pecado, resta-nos pedir: Kyrie eleison!
4. Aspectos homiléticos
Antes ou depois da leitura do texto pode ser mencionado que estamos a duas semanas da Páscoa. Em vários momentos dessa época, somos lembrados dos sofrimentos de Jesus. O texto da pregação situa-se nos últimos dias de vida de Jesus. Dias estes carregados de fatos inesperados, que causam um clima tenso mesmo entre as pessoas mais próximas de Jesus: a indicação do traidor e que Pedro negaria Jesus. Remetemos ao item Aspectos do contexto. A pregação poderia ser desenvolvida nos seguintes termos:
Tema: Deus investe em seu povo (A introdução prepara o caminho para essa temática.)
1 – Por isso ele lhe dá tempo e líderes. Deus usa seres humanos para realizar sua obra na terra. Para viabilizar isso, Deus é bondoso e longânimo. Ele dá tempo para o crescimento. Neste item pode-se usar um ou dois exemplos, extraídos da história de Deus com Israel/Judá (cf. 1 Co 10.1-13) ou tomar um exemplo da realidade hodierna. A bondade e a longanimidade de Deus não devem ser entendidas como graça barata negociável. Pelo contrário: Deus espera fruto de seu povo. A essa altura, a pregação se encaminha para o item seguinte:
2 – Por isso Ele o visita. O envio dos servos, e especialmente do filho, são como visita de Deus para buscar o fruto “produzido” pelos trabalhadores, os líderes, na lavoura de Deus. Aqui os líderes do povo de Deus são submetidos a um interrogatório teológico: O que Deus encontrará em “nosso ministério”? Ou: O que nós fazemos com a bondade e a longanimidade de Deus durante “nosso ministério”? De qualquer forma, isto é um questionamento pelo qual nós, líderes, passamos primeiro a ouvir e a anunciar a Palavra de Deus (cf. 1 Ts 2.19-20).
3 – Por isso sua causa continua. Independente do comportamento dos líderes, a causa de Deus não será extinta. Extintos ou substituídos podem ser os líderes. O aspecto do juízo do Evangelho pode ser sentido de forma muito existencial: “Tal não aconteça” (Lc 20.16c). Aqui o Sl 28.1-3,6-9 pode ser lembrado, especialmente os pedidos por socorro (cf. v. 2, 8, 9). Deveria-se destacar na prédica que a causa de Deus só pode continuar porque o juízo de Deus – a rigor – abateu-se sobre o filho do dono da vinha – Jesus de Nazaré. Do mal intentado Deus fez surgir o supremo bem: a redenção em Cristo (cf. Gn 50.20). Aqui se pode apontar para o texto de Fp 3.8-14.
5. Recursos litúrgicos
Confissão dos pecados – Senhor, nós nos deixamos servir por tua bondade e longanimidade, mas ignoramos que tu nos visitaste e visitas para achar fruto em nossa vida. Ignoramos o teu juízo, que nos quer guardar da perdição fatal. Por isso rogamos-te: queiras perdoar-nos a nossa negligência e culpa e ajuda-nos a ver e entender a tua visita a nós, especialmente em Jesus Cristo, nosso Salvador. Conceda que o teu investimento em nós não seja em vão, mas produza fruto que te engrandece. Amém.
Intercessão – Senhor, intercedemos por tua imensa criação, que tu manténs até hoje. Ela está profundamente ferida e desfigurada. Tu, porém, a amaste de tal maneira que deste teu Filho por ela. Pedimos-te que não afastes a tua face da terra, mas lhe dês novo alento. Rogamos-te: queiras dar sabedoria aos governantes em nosso país e no mundo inteiro para que exerçam suas funções com humildade e responsabilidade. Guarda o teu povo em toda a terra e concede que ele ande humildemente diante de ti e produza fruto para compartilhá-lo com aqueles que passam necessidades. Senhor, desperta em nós a coragem e a alegria para testemunhar o Evangelho por meio de palavras e ações, para que haja sinais de esperança no mundo. Recomendamos-te especialmente os doentes e todos os que estão desenganados pelos médicos e pedimos-te que consoles os enlutados. Sim, pedimos-te que nos venhas visitar em tua misericórdia. Amém.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament, vol 3. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1974.
MAIER, Gerhard. Lukas-Evangelium. 2. Teil. In: Bibelkommentar, vol. 5. Neuhausen-Stuttgart: Hänssler, 1992.
RENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas. In: Das Neue Testament Deutsch, vol. 3. Göttingen: Vandenhoek & Ruprecht, 1978.
VOLKMANN, Martin. Jesus e o Templo. São Leopoldo/São Paulo: Sinodal&Paulinas, 1992.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia